terça-feira, 13 de outubro de 2009

trincheiras da crítica de arte para retomar a guerra entre a visão europeia e a americana da modernidade no século 20



Yve-Alain Bois contra Tom Wolfe, o corsário da arte
Autor de livro sobre legado da vanguarda, o historiador critica o jornalista por obra sobre o mesmo tema
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Crack', de Lichtenstein: Wolfe associa pop aos filisteus. Foto: Abergs Museum/Reuters

SÃO PAULO - Dois livros simultaneamente publicados no Brasil voltam às trincheiras da crítica de arte para retomar a guerra entre a visão europeia e a americana da modernidade no século 20. Do lado europeu está A Pintura como Modelo (Editora WMF Martins Fontes, tradução de Fernando Santos, 448 págs., R$ 89), do crítico, professor e historiador de arte argelino Yve-Alain Bois, de 57 anos, coeditor do mais influente periódico sobre arte da atualidade, October. Do lado americano está uma nova edição do livro A Palavra Pintada (Rocco, tradução de Lia Wyler, 128 págs., R$ 25), do polêmico jornalista Tom Wolfe, de 78 anos, inventor do termo "radical chic" para designar o esquerdismo da classe alta.

Bois é um estruturalista de esquerda, nascido numa família de poucas posses. Tom Wolfe cresceu sem problemas financeiros. Na infância, aprendeu sapateado e balé enquanto Bois lavava carros para comprar livros. Wolfe recusou a admissão na Universidade Princeton, onde hoje Bois dá aulas, preferindo ingressar na tradicional Universidade Washington and Lee (de 1749), onde estudou o pintor Cy Twombly. Dois homens, duas visões de mundo. Tom Wolfe, um dos fundadores do new journalism, nunca demonstrou apreço pela vanguarda americana dos anos 1950, formada por pintores do expressionismo abstrato (Jackson Pollock, Willem de Kooning), ou a dos anos 1960, representada pelo segmento pop (Andy Warhol, Lichtenstein). Isso para não falar de Rothko.

Em A Palavra Pintada, sem medo de jogar fora o bebê com a água da bacia, Wolfe diz que todos são frutos do delírio teórico dos críticos. A arte moderna, defende ele, virou literatura nos escritos de Clement Greenberg (1909-1994), Harold Rosenberg (1906-1978) e Leo Steinberg, de 89 anos - três dos mais respeitados críticos americanos do século 20, apesar de enclausurados por Wolfe no depreciativo neologismo "Cultureburg" - modo de dizer que dominavam o mundo das artes com teorias feitas para justificar os altos preços das obras pagos pela elite americana. A pintura "plana" dos expressionistas abstratos, afirma o corsário jornalista, só existiu para ilustrar os textos desses críticos. Deixou de ser uma experiência visual para se tornar literária. Greenberg, segundo ele, teria usado, e não descoberto, Jackson Pollock, assim como Rosenberg criado Willem de Kooning.

Pura desonestidade de Wolfe, diz por telefone, ao Estado, o crítico Yve-Alain Bois, que, nos anos 1980, decidiu trocar a França pelos EUA justamente por identificar nos críticos americanos uma abertura para o diálogo que não encontrava em Paris - foi na América que Bois ficou amigo de Rosalind Krauss e Douglas Crimp, ambos fundadores de October e conceituados críticos ligados a históricos movimentos como o minimalismo, também detonado por Wolfe.

Tom Wolfe, em seu livro, originalmente publicado em 1975, previu que no século 21 - ou seja, hoje - os críticos do expressionismo abstrato seriam expostos em museus como figuras germinais do período (de 1945 a 1975), e não os artistas que promoveram. Errou feito, mas as previsões são feitas para darem mesmo errado. Em janeiro, ninguém lembrou do centenário de nascimento de Greenberg. No ano passado, quando entrevistei Leo Steinberg para o Estado, por ocasião do lançamento brasileiro de seu livro Outros Critérios, o crítico ficou surpreso por alguém ainda lembrar dele. O nome de Steinberg é evocado por Tom Wolfe em A Palavra Pintada apenas para ser acusado de formular um axioma - o de que a grande arte versa sobre a arte - para justificar as "apropriações" dos artistas dos anos 1950 e 1960, empenhados em transferir a meca da modernidade da Europa para os EUA. O movimento expressionista abstrato, diz, não passou de uma estratégia política para colocar Nova York no mapa das artes do pós-guerra. Em seu livro, Wolfe diz ainda que o expressionismo abstrato apenas reciclou o modernismo inicial europeu e que a arte pop não passou de um comentário do expressionismo abstrato - segundo ele, uma relação "incestuosa", questionando se não haveria nisso "algo ligeiramente tacanho, sectário’’.

Bois, que escreveu A Pintura como Modelo em 1990, se encarrega de responder. Ele reprova a interpretação de Wolfe. Não compartilha nem da sua ironia nem da trágica previsão do crítico Arthur Danto sobre o fim da arte. Tampouco acredita em pós-modernismo, contestando a importância dada pelo mercado a artistas cínicos como Jeff Koons e Damien Hirst, "bons comerciantes", segundo Bois. "Minha interpretação do modernismo está, sim, ligada ao mito da morte da arte, mas, como estruturalista, devo dizer que o projeto do modernismo não teria funcionado sem esse mito apocalíptico." Bois lembra que Mondrian, o grande renovador da pintura europeia, a quem dedicou vários estudos e de quem foi curador de uma retrospectiva, tinha plena consciência de que sua pintura "se diluiria na esfera da vida" , ou seja, que morreria para renascer de outra forma, em outro lugar, como profetizou o escritor austríaco Robert Musil (1880-1942).

Tom Wolfe, segundo Bois, agiu de maneira "desonesta" ao generalizar e atribuir o caráter fetichista da mercadoria às obras de arte produzidas pelos expressionistas abstratos. A burguesia americana não erigiu um panteão museológico ao seu próprio poder de compra. Comprou os trabalhos de Pollock e Warhol por reconhecer neles algo que faltava num simples readymade de Duchamp, defende o crítico, contestando Wolfe sobre o "teorismo" - a obrigação de ser teórico - dos críticos da geração de Greenberg. "Devo dizer, como aluno de Roland Barthes, que Wolfe está totalmente equivocado, pois não se ‘aplica’ uma teoria." Opositor da leitura iconológica da obra de arte, ele, além de formalista, é um modernista irredutível, no sentido de acreditar que uma peça contemporânea está historicamente ligada ao passado.

Para Bois, o papel da crítica, hoje, diminuiu. "Não creio que o crítico seja mais importante para o mercado." Talvez um historiador. Em seu livro, ele lembra a lição do marchand Daniel Henry-Kahnweiler (1884-1979), galerista alemão de Picasso e Braque e primeiro teórico do cubismo, para desmontar a tese de Wolfe. O jornalista americano defende que, na época dos dois pintores cubistas, bastava a um artista produzir obras "que intrigassem ou subvertessem a confortável visão burguesa da realidade" para garantir seu sucesso. Bois mostra que, ao contrário, Kahnweiler, pioneiro editor de Apollinaire, batalhou junto à mídia para dar explicações sobre a obra de Picasso e Braque e conquistar o público leigo. "O mais importante é que Kahnweiler tinha uma teoria", arremata Bois. E Tom Wolfe? Passa bem, obrigado. Acaba de ganhar US$ 7 milhões por sua quarta novela, Back to Blood, que fala de imigrantes.

Pontos de vista de cada um:
Clement Greenberg: "Ele usou o sucesso avalizado de Pollock para afirmar a integridade do plano do quadro. Greenberg não descobriu Pollock nem criou sua fama, como posteriormente se disse muitas vezes."
Leo Steinberg: "Atacou o expressionismo abstrato exatamente porque estava dizendo que havia encontrado algo mais novo e melhor, a arte pop."
Arte Pop: "Era, do princípio ao fim, uma afirmação irônica, artificial, intelectual-literária da banalidade, da idiotice, da vulgaridade, et cetera da cultura americana."
Teorias: "Nenhuma das pinturas expressionistas abstratas que restou daquela época florescente de 1946 a 1960 pode ser considerada um monumento tão perfeito ao período quanto as teorias. Teorias? Eram bem mais que teorias, eram construções mentais."
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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

A praga do Curadorismo


A praga do Curadorismo
Sem obras, mostra em SP atesta importância crescente do curador no circuito; críticos e artistas reclamam dessa tendênciaSILAS MARTÍDA REPORTAGEM LOCAL Quase um ano depois do vazio da última Bienal de São Paulo, começa em outubro outra mostra sem obras de arte. O Paço das Artes pretende expor 150 projetos de artistas e curadores -esboços do que seriam obras ou futuras exposições, ainda no estágio do rascunho."Muita gente diz que não aguenta mais exposição sem obra", diz Roberto Winter, um dos curadores da "Temporada de Projetos na Temporada de Projetos", nome redundante da mostra-provocação. "A gente também acha que vai ser chato, uma coisa monótona", adianta.A monotonia se junta no início de outubro à radicalidade do Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna paulistano, que desta vez vetou artistas brasileiros na mostra.São indícios no cenário artístico da influência crescente dos curadores, que às vezes ofuscam os próprios artistas -o que muitos no meio já apelidaram de "praga do curadorismo".Em viagem a Istambul, o curador do Panorama, Adriano Pedrosa, enviou por e-mail considerações sobre curadores-autores. "Uma exposição é sempre determinada ou limitada por experiências de vida, perspectivas, conhecimentos [do curador]", dizia. Não respondia questões da reportagem, mas elencou declarações em inglês sobre o assunto e pediu para conferir a tradução."Existe muito ego", opina Agnaldo Farias, um dos curadores da próxima Bienal de São Paulo. "São esses momentos quando o trabalho se volta muito para o próprio meio artístico."Foi essa a principal acusação contra o gesto dos curadores Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen de deixar vazio um andar inteiro do pavilhão da Bienal no ano passado. "As pessoas querem ver arte, ninguém está muito a fim disso", afirma o crítico Tiago Mesquita, que não autorizou a exposição de seu projeto no Paço das Artes."Fizeram a curadoria da curadoria; era demais", diz Mesquita. "Curador não é artista, ninguém vai lá ver curador."Um dos dois brasileiros a passar pela peneira da curadoria e entrar no Panorama deste ano, Valdirlei Dias Nunes diz que "sem dúvida, o nome do curador aparece muito mais do que qualquer artista até agora". Dias Nunes só entrou para a exposição por indicação de um artista argentino.Nos anos 80, Lisette Lagnado, curadora da Bienal de São Paulo de 2006, já perguntava em artigos se os curadores seriam as novas estrelas da arte. Em texto recente publicado no site "Trópico", afirma que "no Brasil a crescente demanda por curadores independentes alcançou um nível epidêmico desproporcional à realidade das coleções dos museus".À Folha, Lagnado disse depois que nunca recebeu tantos convites para participar de debates sobre curadoria no país. Enquanto isso, universidades e museus vêm turbinando seus cursos para formar curadores."Há um risco hoje em dia de o curador tomar o lugar da obra que ele cura", diz o artista Nuno Ramos. Carlos Fajardo também vê uma importância crescente do curador, mas diz que é "impossível" fugir a essa lógica.Apontado como um dos nomes centrais dessa nova geração, o titular da próxima Bienal de São Paulo, Moacir dos Anjos, tenta definir melhor os papéis. "Curador é curador, artista é artista", resume Anjos. "Sempre existe um grau de autoria numa exposição, mas isso não faz do curador um artista."Mesmo quando esse curador acaba mais falado do que a própria exposição. Ivo Mesquita não se desvencilhou do pavilhão vazio. Sheila Leirner pôs a Bienal de São Paulo no mapa quando decidiu expor lado a lado as grandes telas da geração 80, num compêndio expressivo da volta à pintura. Teixeira Coelho atiçou a ira de público e artistas quando espalhou telas pelo chão do Itaú Cultural."Nossa proposta é mais autoral mesmo", admite Luiza Proença, parceira de Roberto Winter na curadoria da mostra de projetos no Paço. "É provocativo, mas artistas dependem dessa provocação", diz ela, que quando não ocupa o papel de curadora, também é artista.
Curadoria é um novo poder no sistema da arte
MARCOS AUGUSTO GONÇALVESDA REPORTAGEM LOCAL A multiplicação em escala global de museus, galerias, bienais, feiras e coleções -além, obviamente, de artistas- veio a consagrar, nas últimas décadas, a figura do curador como um novo poder no sistema da arte.É ele quem orienta a formação de acervos públicos e coleções privadas, propõe conceitos e seleciona artistas e obras para grandes mostras.A curadoria tornou-se rapidamente uma nova possibilidade de inserção no mercado para intelectuais e especialistas em arte. Um aspecto positivo desse processo é que, em tese, essas atividades tornam-se mais qualificadas. Uma das desvantagens é que em outras circunstâncias esses profissionais poderiam dedicar-se à crítica de arte -que parece cada vez menos influente e mais rarefeita.É verdade que há no exercício da curadoria uma dimensão crítica. Ao selecionar e relacionar, o curador assume um ponto de vista e o defende em entrevistas, artigos ou textos publicados em catálogos. Mas a curadoria não pode substituir a crítica propriamente dita.O poder da curadoria chegou ao ponto de moldar a própria produção de arte e ao extremo de tentar substituí-la. Para o artista Nuno Ramos, a ascensão do curador corresponde a uma fase na qual, como nunca, o discurso institucional tenta prevalecer sobre as obras de arte.Em entrevista à Folha, em 2007, Nuno citou a última edição da Bienal de São Paulo, que deixou vazio um andar do pavilhão, como um símbolo dessa realidade: "Uma Bienal sem obras de arte, como a que foi divulgada com tanto alarde, é uma espécie de realização selvagem de um desejo institucional coletivo -a instituição enfim livre da arte, livre desses chatos desses artistas