quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Arte E Beleza Na Estetica Medieval






   Umberto Eco é um dos teoricos de cultura que foram  largamente editado no Brasil. Quase todas suas obras encontram-se traduzidas e frequentemente ocorre de um novo livro saido no exterior ter lançamento  simultaneamente  aqui.
  No entanto, O livro que acaba de ter sua ediçao brasileira, " Arte E Beleza Na Estetica Medieval" é uma obra lançada a mais de uma decada., uma lacuna imensa que agora é preenchida na bibliografia brasileira do autor de 75 anos. escritor, filósofo e lingüista incansavel!

Basicamente focado sobre a estética durante o período entre os séculos VI e XV., o livro faz um amplo panorama do entendimeto da natureza da  estetica do periodo, um tempo en que a filosofia da  estetica dava as cartas sobre o assunto e as preocupaçoes sobre o conceito de Belo era o norte dos debates na arte. 

O livro corrige a falsa noção de ausência de sensibilidade estética no universo medieval e faz o retrato da época, que ja foi chamada muitas vezes de idade das trevas.

Ao longo das proximas semanas estara disponivel um ensaio sobre o livro .

 Abraços a todos.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

As lendas de Roberto Bolaño











(Leia na edição impressa do Prosa & Verso uma resenha de "2666" por Celina Manzoni, professora de literatura latino-americana da Universidade de Buenos Aires e organizadora do volume de ensaios "Roberto Bolaño. La escritura como tauromaquia")



Numa longa entrevista que deu à "Playboy" mexicana em 2003, já muito debilitado pela doença hepática que o mataria naquele mesmo ano, Roberto Bolaño fez piada com os críticos que o anunciavam como o escritor latino-americano com mais futuro. "Mas eu sou o escritor latino-americano com menos futuro", respondeu, aproveitando para desdenhar da palavra "póstumo" ("Soa a nome de gladiador romano"). Bolaño morreu em julho daquele ano, na mesma semana em que a revista chegou às bancas, e a entrevista, aconchegada entre fotos de mulheres seminuas, acabou sendo seu obituário mais eloquente.



Nos anos que se seguiram à sua morte, as bravatas de Bolaño sobre a posteridade se tornaram, ironicamente, um dos traços mais distintivos de sua imagem póstuma. Imagem que se construiu em velocidade vertiginosa desde a publicação de "2666", o romance no qual trabalhava ao morrer, e que será lançado no dia 20 pela Companhia das Letras (com tradução de Eduardo Brandão, 856 pgs, R$ 55).



Publicado na Espanha em 2004, "2666" sedimentou o prestígio do autor entre leitores e críticos de língua espanhola. Mas foi a chegada de sua tradução aos EUA, em 2008, que detonou o que a britânica "The Economist" chamou de "bolañomania", fenômeno marcado por uma mistura de reconhecimento literário e mistificação biográfica sobre o escritor. O sucesso inesperado do livro num mercado conhecido por ser refratário a traduções despertou curiosidade em todo o mundo e deu nova dimensão à imagem de Bolaño.



Em entrevista ao GLOBO por e-mail, o editor espanhol Jorge Herralde, diretor da Anagrama, que publicou "2666" e os principais títulos de Bolaño, recorre a uma frase do escritor Enrique Vila-Matas para comentar o furor, às vezes exagerado, em torno do chileno.



— Vila-Matas disse que "com a morte de Bolaño, começa uma lenda". Por um lado, há uma lenda literária: para muitos jovens autores latino-americanos, Bolaño é um "farol", o escritor mais influente, desbancando os grandes do boom. Mas também se elaborou uma lenda nos Estados Unidos, onde Bolaño foi aparentado com os beats de "On the road", e sua morte prematura, sua oposição a Pinochet e o suposto vício em drogas reforçaram uma aura maldita e romântica — diz Herralde, lembrando que os boatos sobre drogas surgiram de um conto em primeira pessoa confundido com relato autobiográfico, apesar dos desmentidos.



Entre as lendas e a consagração crítica



A história por trás de "2666" já é quase tão conhecida quanto o cavalo-de-pau que García Márquez teria dado no carro ao vislumbrar subitamente a primeira frase de "Cem anos de solidão". Depois de trabalhar por anos num romance que dava vazão à sua obsessão pelos assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez, Bolaño viu a saúde piorar muito em meados de 2003, quando se aproximava do fim da quinta parte de um livro que já ultrapassava mil páginas. À beira da morte, teria pedido ao editor Jorge Herralde que publicasse a obra em cinco volumes, calculando que assim garantiria o futuro financeiro da mulher e dos dois filhos.



Herralde confirma a lenda em parte, mas em tons menos lúgubres. Lembra o último encontro com Bolaño, quando o escritor apareceu em seu escritório de camisa florida, fragilizado pela doença mas falante e empolgado com o romance. Nestes encontros, diz Herralde, Bolaño costumava provocá-lo ameaçando incluí-lo no livro — o que de fato fez, através do personagem do editor alemão Jacob Bubis, que publica ao longo de quase meio século as obras do recluso escritor Benno von Archimboldi, cuja história se liga de forma misteriosa com os crimes de Ciudad Juárez.



— Ele brincava que Bubis seria inspirado em alguns traços meus e eu respondia "Assim você me assusta" — diverte-se o editor (na foto abaixo, Herralde com Bolaño).



A decisão de contrariar o desejo de Bolaño e publicar "2666" em volume único foi tomada por Herralde e pelo crítico literário Ignacio Echevarría, amigo do autor e encarregado por ele de administrar seu espólio literário. Os dois consideram a escolha um "acerto literário e financeiro", diz Herralde.



Após o lançamento do romance, algumas resenhas levantaram questões sobre o caráter inacabado da obra. Num posfácio incluído na edição espanhola (e reproduzido na brasileira), Echevarría esclarece que o texto publicado corresponde à última versão de cada uma das cinco partes deixadas por Bolaño. Em 2009, porém, o jornal "La Vanguardia", de Barcelona, anunciou a descoberta da suposta "sexta parte" de "2666", que retomaria a narrativa de um dos protagonistas do livro, o professor chileno Oscar Amalfitano.



Em entrevista por e-mail, o crítico Ignacio Echevarría diz que esses rascunhos são apenas "linhas exploratórias descartadas" pelo autor. O crítico também diminui a importância dos textos inéditos encontrados nos arquivos da casa de Bolaño, no balneário catalão de Blanes, como a novela "O Terceiro Reich", recém-lançada na Espanha.



— Até onde eu sei, os inéditos que podem ter sido conservados ou são obras iniciais que ele mesmo decidiu não publicar (como "O Terceiro Reich" e provavelmente "Diorama") ou textos fragmentários, esboços (como "Los sinsabores del verdadero policía o Asesinos de Sonora"). Em todo caso, nada que vá alterar substancialmente a figura e a entidade do escritor que todos já conhecemos — diz Echevarría.







Uma nova geografia literária da América Latina







Relevância literária à parte, os inéditos movimentam a indústria que se ergueu em torno do nome de Bolaño. "O Terceiro Reich" já foi publicado em Portugal e chegará em breve aos EUA e ao Brasil. A tradutora Natasha Wimmer, responsável pelas versões norte-$de "Os detetives selvagens", "2666" e da novela inédita, se diz surpresa com o sucesso do chileno em seu país. Embora reconheça que houve certo exagero nos rumores sobre a vida pessoal do escritor, ela acredita que hoje a atenção de leitores e críticos americanos está mais voltada para sua obra. Natasha cita como exemplo disso o prêmio concedido a "2666" pelo National Book Critics Circle em 2009, feito inédito para um livro póstumo e traduzido.



— Há uma combinação de motivos para o sucesso dele nos EUA. Em primeiro lugar, a fluência sedutora e a ambição estonteante de "Os detetives selvagens" e "2666". Num plano mais abstrato, acho que Bolaño cria uma nova geografia mental para os leitores dos EUA, redefinindo a literatura latino-americana em suas mentes como algo urbano, cerebral e global, em vez de rural, mágico e local. Também acho que Bolaño é lido aqui como uma espécie de visionário, alguém que esteve nas margens esfarrapadas do mundo industrializado e viu o futuro distópico daquele mundo — diz Natasha por e-mail.







A versão brasileira de "O Terceiro Reich", ainda sem data de lançamento, está a cargo do tradutor Eduardo Brandão. Responsável por quase todas as obras de Bolaño publicadas no país (com exceção de "Estrela distante", traduzida por Bernardo Ajzenberg), Brandão vê uma continuidade entre os dois principais livros do chileno:



— São dois romances que contam sagas latino-americanas. "Os detetives selvagens" fala de uma geração de refugiados, que também é a minha, pessoas que deixaram seus países por questões políticas ou sociais. Já "2666" fala de refugiados econômicos, das levas de imigrantes que buscam a fronteira do México com os EUA — diz por telefone Brandão, para quem o público de Bolaño no Brasil é formado por um número crescente e fiel de leitores.



“A posteridade é um mal-entendido”



A esses leitores fiéis, o crítico Ignacio Echevarría recomenda que ignorem as lendas a respeito de um escritor que "não acreditava na posteridade e sentia, por isso mesmo, fascinação pelo esquecimento, pelas empreitadas falidas e pelos poetas ignorados":



— Não é o escritor que inventa sua posteridade e sim a posteridade que inventa os escritores. Como Borges disse a respeito da fama, a posteridade também é um mal-entendido. Mas a obra de Bolaño durará. E chegará o dia em que será preciso abrir espaço através das lendas em busca do verdadeiro Roberto, que terá se tornado, então, um dos escritores secretos que tanto admirava.



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Enviado por Guilherme Freitas - 15.5.2010
8h25m

'2666' e a 'metáfora do horror contemporâneo'



Um dos principais responsáveis pelas denúncias dos assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez, o jornalista mexicano Sergio González Rodríguez tornou-se também a maior fonte de informações de Roberto Bolaño sobre o caso. Autor de "Huesos en el desierto" (2002, inédito no Brasil), livro-reportagem que se tornou referência sobre os crimes, González manteve uma longa correspondência com o escritor chileno durante a escrita de "2666" e acabou sendo incorporado ao romance quando, num misto de piada interna e homenagem, o autor o transformou num de seus personagens. Em entrevista ao GLOBO por e-mail, o jornalista fala sobre sua amizade com Bolaño e sobre a violência em Ciudad Juárez.



Como começou seu envolvimento com o caso de Ciudad Juárez? Você conta em "Huesos en el desierto" que foi sequestrado, agredido e ameaçado durante sua investigação. As ameaças continuam?



SERGIO GONZÁLEZ: Em 1996, chamaram minha atenção as notícias reiteradas sobre cadáveres de mulheres jovens encontrados em Ciudad Juárez. Elas eram vítimas de abusos sexuais depois de desaparecer de locais públicos, foram sequestradas a caminho do trabalho, de casa, da escola. Ou simplesmente desapareciam quando iam fazer compras. Quis indagar a veracidade destes fatos: logo descobri que naqueles casos se encontrava um drama de enorme transcendência. No livro registro as ameaças, sequestros e golpes que sofri enquanto investigava. Uma vez acabei no hospital e fui salvo por pouco. Depois de publicar o livro recebi mais ameaças de morte e sequestro. E vivo sob o assédio constante das intervenções em minha comunicação por telefone e e-mail. Mas tenho sorte. Nos últimos dez anos, foram assassinados 59 jornalistas no México e oito estão desaparecidos. Estudei Letras, trato de fazer muitas outras coisas: escrevo e publico sobre literatura, cinema, artes etc. Acabo de publicar um romance que não tem nada a ver com os femicídios nem com o narcotráfico. E insisto em exigir que as autoridades cumpram suas responsabilidades. As ameaças estão sempre aí, latentes. Não escolhi isso, mas tenho que me manter à altura do desafio.



Como você conheceu Roberto Bolaño? Em que momento ele começou a buscar informações para o romance?



GONZÁLEZ: Conheci Bolaño pessoalmente quando fui apresentar "Huesos en el desierto" em Barcelona, em 2002, mas já trocávamos e-mails há alguns anos. Em 1999, decidi escrever um livro sobre os assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez e comuniquei Jorge Herralde, meu editor na Anagrama e também editor de Bolaño. Ele soube do meu livro por Herralde e quis lê-lo antes que fosse publicado. Enquanto ele trabalhava o tema do ponto de vista ficcional, eu queria escrever um livro de não-ficção. Com o tempo, passei a pensar no meu livro como a contraparte indicial-documental de "2666". Suponho que Bolaño começou a se informar sobre o tema no fim da década anterior. Nas mensagens, ele demonstrava um conhecimento profundo do tema, embora desse um foco romanesco a suas leituras.



Os assassinatos de Ciudad Juárez ocupam um lugar central em "2666" e na cosmogonia de Bolaño: um personagem do romance chega a dizer que "ninguém presta atenção nestes assassinatos, mas neles se esconde o segredo do mundo". Em sua correspondência, Bolaño falava sobre o que Ciudad Juárez significava para ele?



GONZÁLEZ: Para Bolaño, Ciudad Juárez, que em seu romance se chama Santa Teresa, era a metáfora do horror contemporâneo. A extensão do extermínio dos campos de concentração nazistas. A barbárie sem limites. Bolaño me dizia que era contra toda forma de violência. Escrever com detalhes e reconstruir um a um os assassinatos cometidos durante um período específico deve ter sido uma tarefa exaustiva e terminal. Ele morreu pouco depois de entregar o romance a Herralde. É o caso arrepiante de um escritor que dá a vida para escrever um romance, uma obra-prima.



Em uma crônica sobre "Huesos en el desierto", Bolaño escreve que Ciudad Juárez é uma metáfora "do incerto futuro de toda América Latina". Como você interpreta esta declaração?



GONZÁLEZ: O pessimismo de Bolaño era fundamentado: o que acontece em Ciudad Juárez expressa, infelizmente, as diretrizes comuns das sociedades latino-americanas, onde os desejos democráticos são sufocados por inúmeras limitações. E a corrupção, a exploração, a ganância desmedida por parte dos poderes corporativos, as classes políticas corruptas e o auge do crime organizado, entrelaçado com a esfera jurídica. Se a isso acrescentamos a pobreza e a desigualdade seculares, a situação é muito adversa. O diagnóstico de Bolaño a cada dia se torna mais correto.



No livro, você cita o filósofo Paul Ricoeur para justificar sua investigação: "Há crimes que não devem ser esquecidos, vítimas que pedem menos vingança do que narração". Como narrativas de ficção, como a de Bolaño, e não-ficção, como a sua, desempenham esse "dever de memória"?



GONZÁLEZ: Acredito que Bolaño queria escrever um romance global sobre os horrores do século XX. As premissas da ficção lhe permitiram interconectar tempos e espaços distintos, e erguer uma trama expansiva. Distinguem-se ali os imperativos de um romancista. Minha perspectiva e exigência eram distintas: eu tinha que documentar uma série de fenômenos, situar um contexto, reconstruir a atmosfera da época, incluir múltiplos relatos, revelar um processo temporal, fazer com que as vítimas falassem, além de incluir meu ponto de vista. O pano de fundo era a obrigação da memória, sobretudo num país como o México, e como muitos da América Latina. Você sabe que até agora as autoridades mexicanas afirmam que nunca houve assassinatos sistemáticos de mulheres em Ciudad Juárez, que nunca houve esse tipo de vítimas, que tudo aquilo é um mito, uma lenda obscura mal-intencionada? Sem meu livro e os de outros, sem os informes dos especialistas da ONU e da Anistia Internacional, os fatos teriam ficado reduzidos a aquilo que desejam assassinos e autoridades cúmplices: mera fantasia.



Como você se sentiu ao ler "2666"? O que pensa do personagem que leva seu nome?



GONZÁLEZ: Levei meses para conseguir ler "A parte dos crimes". Em cada página eu voltava a enfrentar o horror que tinha vivido. Quando o visitei em Blanes, em 2002, Bolaño me contou, rindo, que ia me incluir em "2666". Era uma brincadeira intertextual que me instalava com um pé na literatura e outro na realidade. Acho que até hoje não saí desse lugar onde Bolaño me deixou. E nem acho que vou conseguir. O personagem com meu nome em "2666" é uma sombra que gravita ao meu redor todos os dias. É o legado de Bolaño que devo resguardar. "Com Sergio, sim, eu iria à guerra", ele escreveu sobre mim. Era como me dizer: "Amanhã na batalha pensa em mim". Não há um dia em que eu não pense em Roberto Bolaño.



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sexta-feira, 14 de maio de 2010

ARTE Inflacionada.


Nova York, setembro de 2008: estoura a bolha do crédito americano. O anúncio da falência da empresa financeira Lehman Brothers culminou numa recessão econômica mundial. Londres, setembro de 2008: por US$ 15 milhões é vendida a obra Bezerro de Ouro, do britânico Damien Hirst, na casa de leilões Sotheby’s. A peça expõe um animal morto e mantido sob formol adornado com chifres e patas de ouro 18 quilates. O leilão foi assistido por milhares de visitantes e massivamente comentado, fechando em US$ 198 milhões em apenas dois dias. Um sucesso muito além das expectativas: quebrou o recorde de vendas para um leilão de um único artista. O momento marcou o início de uma crise econômica global e também, profundamente, o mercado da arte contemporânea, levantando a questão: qual é o valor da arte?




No dicionário, arte é definida como “a expressão ou a aplicação de habilidade criativa e imaginação humana, tipicamente em uma forma visual, tais como pintura ou escultura, produzindo trabalhos para serem apreciados principalmente por sua beleza e poder emocional”. Uma explicação aberta a diversas interpretações.



Muitas vezes, ao visitarmos exposições, nos perguntamos se as obras seriam mesmo dignas de apreciação por sua beleza. Por vezes, fica difícil saber o que é arte. A compreensão de uma obra, por seu poder estético ou emocional, está muito ligada à interpretação individual, que pode ser influenciada por preferências pessoais, pela crítica ou pela mídia em geral. Entretanto, sua valorização monetária tem razões abstratas e coloca cada vez mais em questão o significado das manifestações artísticas. Após o leilão de Hirst, o respeitado jornal britânico The Guardian publicou crítica em que afirmava: “Damien Hirst é uma marca, porque a forma de arte do século 21 é o marketing”.



O mercado viu preços astronômicos serem alcançados desde 2006. Em seu ápice, entre 2007 e 2008, compradores pagaram US$ 19,3 milhões pela Cabine de pílulas de Hirst ou telas rasgadas como Concetto Spaziale, la Fine di Dio, de Lúcio Fontana; US$ 23,6 milhões por um enorme coração brilhante com laços dourados do americano Jeff Koons; US$ 72 milhões por uma impressão em tela de dois carros em colisão de Andy Warhol; US$ 73 milhões pela obra simplista White Center de Mark Rothko e US$ 86 milhões pelo Triptych de Francis Bacon. Mas o recorde pago por uma obra de arte foi para Jackson Pollock com o trabalho n. º 5, 1948, vendido por US$ 140 milhões em 2006.



Estes artistas foram extremamente valorizados, alguns se tornaram mitos, seja por suas habilidades artísticas, seja obras polêmicas, alto investimento financeiro ou grande atenção da mídia. Premiações britânicas como o Turner e programas de TV também impulsionaram o valor de suas produções. Porém, os elevados preços podem acabar, em sentido inverso, destruindo seus significados, reduzindo-os a símbolos do excesso.



A valorização de obras de arte segue algumas regras em que beleza ou emoção parecem não ser o mais importante. “E talento não é requisito para valorização, infelizmente”, comentou o artista plástico Bernardo Pitanguy. Sobre o valor de uma obra, completou: “Alguns trabalhos chegam a preços milionários devido a preferência de um define grupo disposto a comprá-las. O que determina um objeto como obra de arte é o público”. Outra regra lembrada por Pitanguy é sobre o valor que o tempo tem para a arte. “Não se pagam altos valores por obras novas, geralmente elas têm um tempo de vida e uma história até chegarem a ser valorizadas.”



JOVENS ARTISTAS BRITÂNICOS

A geração de jovens artistas britânicos megavalorizados apareceu no início dos anos 1990, sacudindo o mundo com escândalos. Artistas como Tracey Emin, Sarah Lucas ou Marcus Harvey vieram para desafiar o conceito de arte e levantar a questão sobre o significado de expressões artísticas. Obras como Minha cama de Emin, que traz uma cama de casal desarrumada e rodeada por camisinhas usadas, lubrificantes e cinzas de cigarro, ou a tábua com dois ovos fritos e um kebab, de Lucas, que causou controvérsia quanto à nudez feminina, fazem este questionamento.



Entre os artistas desta geração, nenhum foi mais comentado que o homem que apresentou ao mundo um tubarão preservado no formol em uma vitrine como nova forma de arte: Hirst, 44 anos, ficou conhecido por trabalhos que tinham a morte como tema central. Obras utilizando outros bichos no formol (vaca, ovelha e zebra) marcaram época. Em 2007, o artista apresentou uma caveira coberta com diamantes, que custou US$ 21 milhões para ser executada. O valor artístico de sua produção sempre foi muito questionado, assim como as altas cifras alcançadas pela venda de seus trabalhos. Apontado na lista anual do jornal inglês The Sunday Times dedicada aos mais endinheirados, sem dúvida Hirst é o artista britânico mais rico da atualidade, com fortuna estimada em US$ 330 milhões. “Sempre achei que dinheiro é uma ferramenta fantástica para fazer as pessoas levarem você a sério. Assim como os idiomas são algo esplêndido, o dinheiro é como uma chave. Uma chave para o mundo”, afirmou Hirst. “Algo que adorei depois do leilão (em 2008) foi andar no centro comercial de Londres e ser reconhecido por homens de negócios. Eu nunca tive isso antes”.



Mas qual o segredo de tanto sucesso? Os bastidores do prestígio da geração de jovens artistas britânicos ajuda a entender a questão. O milionário colecionador árabe Charles Saatchi, dono de uma galeria de arte em Londres que leva seu sobrenome, foi forte patrocinador desta geração. Saatchi conheceu Hirst durante a modesta exposição Freeze (1991) e encantou-se com a primeira instalação “animal” do artista, em que larvas e moscas rodeavam a cabeça de uma vaca em decomposição dentro de um enorme contêiner de vidro. Ele comprou a obra e virou o principal colecionar de Hirst, além de patrocinador do que veio a ser chamado mais à frente de YBA [sigla em inglês para jovens artistas britânicos]. As compras de Saatchi influenciaram fortemente os altos e baixos do mercado da arte inglesa. Havia grande visibilidade dos trabalhos pelos quais ele se interessasse, motivo de disparo de preços e forte especulação. Em entrevista recente, o homem responsável pela inflação de preços no mercado da arte contemporânea nos últimos dez anos disse que nunca pensa no mercado antes de comprar novas obras e aceita ser o responsável pela especulação de preços. “Artistas precisam de muitos colecionadores, de todos os tipos, comprando suas obras de arte”, comentou. “Às vezes, você tem que comprar arte que não tem valor nenhum para ninguém, mas sim para você, porque você gosta e acredita na obra.”



Hans Ulrich Obrist, curador da charmosa Galeria Serpentine, em Londres, e eleito em 2009 a pessoa mais influente no mundo da arte pela revista Art Review, acredita que os grandes artistas sempre mudam o que se espera da arte. “Há o famoso fator ‘surpreenda-me’. A palavra ‘contemporâneo’ vem do latim ‘contemporanius’, que significa ‘com o tempo’. O que fica sugerido é uma pluralidade de temporalidades que atravessam o espaço e continuam até hoje em escala global.” Obrist alertou também sobre o perigo que existe para o que chama de “homogeneização de práticas”, onde a diferença desaparece. “Todo o mundo fazendo o mesmo leva a um empobrecimento. E, de alguma forma, trata-se como produzir a diferença. É por isso que não pode haver uma receita que diga: ‘Tem que ser dessa maneira. Um artista tem que ser assim’. É algo que tem realmente a ver com encontrar seu próprio caminho.” O curador afirma que estamos vivendo uma grande transformação no mundo da arte. “É possível ver ao longo do século 20, havia uma corrida para ser o centro absoluto do mundo da arte, com Paris, Nova York e Londres disputando, mas agora vemos isso na China, na Índia e em lugares como o Brasil. Existe uma verdadeira polifonia. “É uma mudança importante no mundo da arte”, celebra o suíço.









PREÇO E VALOR

O que torna um objeto uma obra de arte? A resposta está na história recente.



A Pop Art veio com a famosa lata de sopa Campbell’s de Andy Warhol e uma geração de artistas, como Roy Lichtenstein, que nos anos 1950 criava baseada em material de publicidade, quadrinhos e ideias dominantes na cultura de massa - uma reação contrária ao expressionismo abstrato da época. Era pop porque estava no imaginário coletivo. Era arte porque supostamente combinada com outras ideias, levava ao conceito de fine art.



Warhol foi muito valorizado em vida. Ele desafiava a arte pintando produtos de marcas americanas, notas de dólares e celebridades. Sua técnica de impressão em tela trouxe inovação e marcou um estilo. O homem que fez da arte dinheiro assumia sua inclinação capitalista publicamente em citações marcantes como: “Fazer dinheiro é arte; trabalhar é arte; fazer bons negócios é a melhor arte”. Ou então: “Uma senhora amiga minha me perguntou: ‘O que você mais ama? ’ Foi assim que comecei a pintar dinheiro”.



Outros artistas tornaram-se conhecidos por escandalizar o mundo da arte e trazer ideias absurdas como questionamentos, consideradas anti-arte. Com o trabalho Fountain, o francês Marcel Duchamp desafiava a criatividade individual e redefinia arte ao apresentar um mictório como obra artística em 1917, criando o conceito intitulado Readymades (Coisas prontas). Apesar de rejeitado na época, o mictório é um marco, grande atração do Centro de Arte Moderna George Pompidou, em Paris. Em 2009, o Pompidou apresentou, com grande importância, a mostra Vazios. A exposição, uma retrospectiva de 51 anos de exibições, trazia cinco salas completamente vazias. As paredes eram brancas e os pisos, vazios. A iluminação foi arranjada tão cuidadosamente como para qualquer outra exposição temporária. Os guardas olhavam com desconfiança para se certificar de que os visitantes não tocassem em nada - a diferença é que não havia nada para ser tocado. Nove artistas foram responsáveis pela exibição do nada: um passeio de reflexão e alta carga de interpretação. Os visitantes se olhavam sem compreender, entre sorrisos amarelos. O catálogo de 500 páginas era vendido por US$ 50 e o ingresso, em torno de US$ 13. A ideia já havia sido experimentada na Bienal Internacional de São Paulo e, anos antes, no museu Tate Britain, em Londres.



TALENTO BRASILEIRO

Helio Oiticica, José Damasceno, Lygia Clark, Lygia Pape, Vik Muniz, Rivane Neuenschwander e Beatriz Milhazes são alguns nomes de artistas contemporâneos brasileiros reconhecidos internacionalmente. O interesse pelas artes do país pode também estar no preço. “Quando comparados a nomes internacionais, são bastante razoáveis", afirmou Isabel Mignoni, diretora da Galeria Elvira Gonzalez, de Madri, uma das mais prestigiadas da Espanha. A galeria exibiu uma mostra individual do carioca Waltércio Caldas em que as esculturas mais caras estavam na faixa dos US$ 73 mil.











Beatriz Milhazes, também carioca, é reconhecida pelo uso de cores vibrantes e sedutoras, muito influenciada pela natureza e o carnaval do Rio de Janeiro. Seus quadros foram exibidos em museus de Nova York e Paris, e um de seus trabalhos estará no próximo leilão da Christie’s, neste mês, com valor inicial de US$ 200 mil.



Lygia Pape, falecida em 2004, foi citada por Hans Olbrist como exemplo de talento brasileiro na arte contemporânea. Ao lado dos colegas Helio Oiticica e Lygia Clark, foi uma das fundadoras dos movimentos Concretismo e Neoconcretismo, que visava expandir as dimensões da arte. A escultura geométrica de alumínio Bicho (1960) esteve em leilão na Inglaterra mês passado pelo valor de US$ 275 mil.



Outro artista de sucesso e exemplo de criatividade é Vik Muniz, que desafia conceitos usando material comestível. Assim já fez duas réplicas de Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, usando geleia e manteiga de amendoim. Também trabalhou com açúcar, fios, arame e xarope de chocolate para uma recriação da Última Ceia, de Da Vinci. Ele registra seus trabalhos em fotografia e apresenta as imagens em suas exposições. Vik teve obras exibidas no museu Victoria & Albert, em Londres, e no MOMA, em Nova York, além de outros renomados museus e galerias.



ESTRELA DA MORTE

Recentemente, Damien Hirst citou Van Gogh como talvez o exemplo mais pungente de um artista pouco apreciado em vida e cuja fama e valorização surgiram somente muitos anos após sua morte. O holandês ficaria orgulhoso ao ver as filas gigantescas na porta da Academia Real de Artes, em Londres, para a exposição que revela sua correspondência. “Sempre foi meu desejo pintar para aqueles que não sabem o lado artístico da pintura”, revelou Van Gogh em uma de suas cartas. Entre autorretratos, paisagens, girassóis e ciprestes, ele tem os trabalhos mais caros e famosos do mundo na atualidade.



Outros exemplos de sucesso póstumo são os britânicos William Hogarth, Thomas Gainsborough e Joseph Mallord William Turner, este último famoso por suas pinturas de paisagens e marinhas. Todos tiveram muito poucos admiradores em vida e foram duramente criticados e condenados. Sobre o valor da morte para o sucesso, Warhol dizia: “A morte significa muito dinheiro, querido. A morte pode realmente fazer você virar uma estrela”.













LIQUIDAÇÃO

De acordo com o anuário publicado pela Sotheby’s em março deste ano, 2009 trouxe queda de 30% nas vendas de obras de arte. Um novo efeito Damien Hirst parece improvável. Desde o famoso leilão em 2008, Hirst não tem vendido seus trabalhos com a mesma força e muitos preços caíram pela metade em leilões mundo afora.



Durante os primeiros seis meses do ano passado, nenhum trabalho foi vendido por mais de US$ 10 milhões. O preço mais alto alcançado foi de US$ 7,9 milhões, em maio, por uma pintura de David Hockney (1966), Beverly Hills Housewife, negociado na Christie's.



“Na época da crise, as pessoas não sabiam o que a arte ou eles mesmos valiam", explicou Francis Outred, diretor europeu do Departamento de Arte Contemporânea da Christie's. "Os compradores estavam trocando olhares na sala de vendas do leilão e esperando que alguém desse o lance."



Uma tela do pintor britânico Jenny Saville, conhecido por seus retratos de pessoas nuas um pouco acima do peso, foi colocada à venda pela Christie's na Feira de Arte de Maastricht, em 2007, por US$ 1,4 milhão. Acabou leiloada em Londres em fevereiro de 2009 por metade desse valor. Em abril de 2008, uma pintura do artista chinês Zhang Xiaogang, Bloodline (Big Family) Número 3, foi vendida por US$ 6,1 milhões, um recorde para um artista chinês contemporâneo. Mas, em novembro do mesmo ano, outra pintura dessa série alcançou “apenas” US$ 3,4 milhões.



200 notas de um dólar, de Andy Warhol, tornou-se a obra contemporânea mais cara vendida em 2009: US$ 43,7 milhões. "Foi o acontecimento mais importante da temporada", comentou Tobias Meyer, diretor mundial do Departamento de Arte Contemporânea da Sotheby’s. "Até então, nada era negociado acima de 20 milhões de dólares no mercado.”



O boom da arte contemporânea estava associado ao estouro da oferta de crédito. Assim como os valores do sistema econômico foram abalados com a crise, também foram as artes nesse período. A recessão não só refletiu nos preços, mas na maneira como a crítica define suas preferências. Na lista dos 100 nomes mais poderosos do mundo da arte, publicada anualmente pela revista Art Review, Damien Hirst tombou do topo para o 48º lugar. O artaholic Charles Saatchi, hoje muito associado com a arte de dez anos atrás, caiu do 14º para 72º. ©











O LIXO DA ARTE



Um experimento provocante do artista Michael Landy chegou ao fim mês passado em Londres: O lixo da arte. Durante seis semanas ele convidou pessoas a jogarem fora trabalhos colecionados, usando uma enorme vitrine transparente de 2 metros. A curiosidade era saber do que o público estaria disposto a se livrar. Mais de mil peças foram descartadas por mais de 400 pessoas. Era a celebração do fracasso artístico. Landy, que faz parte da geração de jovens artistas britânicos (YBA), iniciou o experimento rejeitando o que não o satisfazia, entre eles um gigante quadro de Damien Hirst, uma caveira resplandecente que parecia estar sorrindo à destruição acumulada em torno dela. Havia algo de bonito em ver a maneira como aquelas obras voavam em queda livre se espatifando em pedaços. Era a aniquilação da arte.



Estudantes, pessoas comuns e galerias deram sua contribuição enviando artes consideradas inúteis e sem valor. No fim do experimento, todo o material foi enviado para reciclagem e a maior parte doada para estúdios e escolas de arte.



Apesar de ter acumulado muita coisa, poucas obras mostraram-se profundas o bastante para fazer o experimento bem sucedido. “Não acho que poderia fracassar nunca”, comentou Landy. “Não importa o número de obras de arte na lixeira. Esses trabalhos descartados podem ter sido fracassos individuais, mas acho que todos juntos são um grande sucesso.” Landy ficou famoso por seu gosto pela destruição. Em Break Down (2001), ocupou uma área vazia de uma loja de departamentos na movimentada Oxford Street de Londres e destruiu sistematicamente mais de sete mil objetos pessoais, incluindo seu carro e passaporte.

sábado, 8 de maio de 2010

A república digital das letras O passado e o futuro do livro – e do ideal iluminista de torná-lo acessível a todos – são examinados em ensaios pelo diretor da biblioteca de Harvard Jerônimo Teixeira William Manning/Corbis/Latinstock CENTRO DO SABER Biblioteca Pública de Nova York: bem mais do que um depósito de livros Desculpe se o que estou dizendo parece cheio de santimônia", diz o historiador americano Robert Darnton, 71 anos, depois de uma apaixonada defesa da atualidade do livro em papel. Ao longo de sua entrevista a VEJA (veja o quadro abaixo), Darnton esboçou várias desculpas do mesmo teor: seu tom estaria muito sentencioso, ou até mesmo pio, como o de um pregador religioso. É compreensível. Darnton é uma autoridade na história do livro, autor de O Iluminismo como Negócio e Edição e Sedição, entre outros estudos fundamentais sobre o mercado livreiro na França do século XVIII – e sua relação com o explosivo contexto político que culminaria na Revolução de 1789. O objeto de seus estudos propicia o tom elevado: veículo de vários textos sagrados, o livro é também o centro de um certo culto laico, celebrado em bibliotecas como a da Universidade Harvard, da qual Darnton é diretor. Mas o historiador não se vale dessas metáforas religiosas: nos termos do Iluminismo do século XVIII, ele prefere falar na República das Letras – um país desprovido de fronteiras, no qual todos, leitores e autores, poderiam discutir e trocar ideias sem censura ou restrições. A internet, com sua capacidade inaudita de divulgar textos e imagens, tem, sem dúvida, o potencial de expandir essa república virtual – e Darnton examina essas possibilidades ao mesmo tempo com entusiasmo e ponderação em A Questão dos Livros (tradução de Daniel Pellizzari; Companhia das Letras; 232 páginas; 42,50 reais), coletânea de ensaios recém-lançada no Brasil. "Este é um livro sobre livros, uma apologia descarada em favor da palavra impressa e seu passado, presente e futuro", anuncia a introdução da obra. Consumado rato de arquivos (em um dos ensaios, ele relata a experiência de ler, na íntegra, o arquivo de 50 000 cartas referentes aos negócios de uma editora franco-suíça do século XVIII), Darnton é amante do papel, do prazer visual e tátil que se extrai do contato com um livro (em particular, com obras antigas e raras). Ele aposta na sobrevivência do códice, o formato de livro que surgiu em torno do século III – com páginas que são viradas, e não desenroladas, como nos rolos de pergaminho que até então conservavam a palavra escrita – e alcançou um público leitor cada vez maior a partir da invenção da imprensa, na década de 1450. Será simplista, argumenta ele, imaginar que uma nova tecnologia vai substituir completamente e de imediato formas mais antigas. A televisão não acabou com o rádio, e nem o YouTube acabou com a TV. O livro em papel, portanto, deverá conviver muito tempo com leitores eletrônicos como o Kindle e o iPad. Os formatos eletrônicos, porém, configuram um desafio para os bibliotecários, que terão de desenvolver novos métodos e protocolos para conservar o conhecimento em forma digital. "Os arquivos digitais são compostos de números binários, que se corrompem e degradam. E a tecnologia avança rapidamente. Muitos formatos de arquivo se tornam obsoletos e difíceis de acessar em um prazo de poucos anos", alerta Darnton. Outro grande esforço exigido das bibliotecas – o de tornar seus acervos acessíveis on-line – esbarra em problemas não só tecnológicos, mas também legais. A Questão dos Livros faz um exame crítico do ambicioso projeto do Google para digitalizar as obras de algumas das maiores bibliotecas universitárias do mundo, inclusive a de Harvard. O Google Book Search foi contestado por associações americanas de autores e editores, que reclamavam o respeito aos direitos autorais das obras digitalizadas que ainda não se encontram em domínio público. O entrave foi contornado, em 2008, por um acordo entre o Google e essas associações – o qual, no entanto, ainda depende de aprovação judicial. Darnton observa que o acordo, por sua extensão, tornaria o Google Book Search imune à concorrência. O próprio Departamento de Justiça americano já contestou a iniciativa, por seu caráter monopolista. O Google Book Search é o tópico mais "momentoso" de A Questão dos Livros. Mas a coletânea não se esgota aí: é rica em digressões saborosas sobre as diferentes edições de Shakespeare ou as leituras de Thomas Jefferson. Darnton é, sobretudo, um historiador, um homem que oferece perspectivas amplas para seus temas. E seu assunto central exige isso mesmo: não há objeto mais amplo do que o livro. Uma missão civilizadora O historiador Robert Darnton falou a VEJA sobre o papel das bibliotecas e a polêmica iniciativa de digitalização de livros do Google. Catherine Helie/Gallimard/Opale PRAZER DO PAPEL Robert Darnton: "Apologia descarada da palavra impressa" O senhor afirma que a biblioteca é o centro da vida universitária. Faz sentido falar nesses termos quando os estudantes hoje contam com a internet, que não tem um "centro"? Não devemos pensar nas bibliotecas como meros depósitos de livros, ou como museus em que exemplares raros são expostos em cúpulas de vidro. A biblioteca é um centro de organização do conhecimento – o que se torna ainda mais importante em um universo confuso e sem forma como a internet. Sei que isso pode soar sentencioso, mas acredito nessa missão central das bibliotecas. E a biblioteca de bairro ou de cidade pequena ainda cumpre a mesma função para o leitor comum? Sim, e está incorporando novas funções. Faço parte do conselho da Biblioteca Pública de Nova York, que, além de seu conhecido prédio central na Quinta Avenida, administra várias unidades de bairro. A visitação delas aumentou depois da crise econômica. Os trabalhadores que perderam o emprego e não têm computador em casa vão lá para buscar empregos on-line. O senhor é um crítico do Google Book Search, projeto que pretende digitalizar o acervo de grandes bibliotecas – inclusive a de Harvard – e oferecer acesso aos livros na internet. Por quê? O Google tem feito um trabalho maravilhoso de digitalização do acervo dessas bibliotecas. Mas, como toda empresa privada, tem por objetivo dar lucro a seus acionistas. Os objetivos das bibliotecas são distintos – entre eles, oferecer conhecimento público. Esse conhecimento não pode ser detido por uma empresa só. O acordo sobre direitos autorais do Google configura uma situação de monopólio.

A república digital das letras

O passado e o futuro do livro – e do ideal iluminista de torná-lo
acessível a todos – são examinados em ensaios pelo diretor
da biblioteca de Harvard


Jerônimo Teixeira
William Manning/Corbis/Latinstock
CENTRO DO SABER
Biblioteca Pública de Nova York: bem mais do que um depósito de livros

Desculpe se o que estou dizendo parece cheio de santimônia", diz o historiador americano Robert Darnton, 71 anos, depois de uma apaixonada defesa da atualidade do livro em papel. Ao longo de sua entrevista a VEJA (veja o quadro abaixo), Darnton esboçou várias desculpas do mesmo teor: seu tom estaria muito sentencioso, ou até mesmo pio, como o de um pregador religioso. É compreensível. Darnton é uma autoridade na história do livro, autor de O Iluminismo como Negócio e Edição e Sedição, entre outros estudos fundamentais sobre o mercado livreiro na França do século XVIII – e sua relação com o explosivo contexto político que culminaria na Revolução de 1789. O objeto de seus estudos propicia o tom elevado: veículo de vários textos sagrados, o livro é também o centro de um certo culto laico, celebrado em bibliotecas como a da Universidade Harvard, da qual Darnton é diretor. Mas o historiador não se vale dessas metáforas religiosas: nos termos do Iluminismo do século XVIII, ele prefere falar na República das Letras – um país desprovido de fronteiras, no qual todos, leitores e autores, poderiam discutir e trocar ideias sem censura ou restrições. A internet, com sua capacidade inaudita de divulgar textos e imagens, tem, sem dúvida, o potencial de expandir essa república virtual – e Darnton examina essas possibilidades ao mesmo tempo com entusiasmo e ponderação em A Questão dos Livros (tradução de Daniel Pellizzari; Companhia das Letras; 232 páginas; 42,50 reais), coletânea de ensaios recém-lançada no Brasil.
"Este é um livro sobre livros, uma apologia descarada em favor da palavra impressa e seu passado, presente e futuro", anuncia a introdução da obra. Consumado rato de arquivos (em um dos ensaios, ele relata a experiência de ler, na íntegra, o arquivo de 50 000 cartas referentes aos negócios de uma editora franco-suíça do século XVIII), Darnton é amante do papel, do prazer visual e tátil que se extrai do contato com um livro (em particular, com obras antigas e raras). Ele aposta na sobrevivência do códice, o formato de livro que surgiu em torno do século III – com páginas que são viradas, e não desenroladas, como nos rolos de pergaminho que até então conservavam a palavra escrita – e alcançou um público leitor cada vez maior a partir da invenção da imprensa, na década de 1450. Será simplista, argumenta ele, imaginar que uma nova tecnologia vai substituir completamente e de imediato formas mais antigas. A televisão não acabou com o rádio, e nem o YouTube acabou com a TV. O livro em papel, portanto, deverá conviver muito tempo com leitores eletrônicos como o Kindle e o iPad.
Os formatos eletrônicos, porém, configuram um desafio para os bibliotecários, que terão de desenvolver novos métodos e protocolos para conservar o conhecimento em forma digital. "Os arquivos digitais são compostos de números binários, que se corrompem e degradam. E a tecnologia avança rapidamente. Muitos formatos de arquivo se tornam obsoletos e difíceis de acessar em um prazo de poucos anos", alerta Darnton. Outro grande esforço exigido das bibliotecas – o de tornar seus acervos acessíveis on-line – esbarra em problemas não só tecnológicos, mas também legais. A Questão dos Livros faz um exame crítico do ambicioso projeto do Google para digitalizar as obras de algumas das maiores bibliotecas universitárias do mundo, inclusive a de Harvard. O Google Book Search foi contestado por associações americanas de autores e editores, que reclamavam o respeito aos direitos autorais das obras digitalizadas que ainda não se encontram em domínio público. O entrave foi contornado, em 2008, por um acordo entre o Google e essas associações – o qual, no entanto, ainda depende de aprovação judicial. Darnton observa que o acordo, por sua extensão, tornaria o Google Book Search imune à concorrência. O próprio Departamento de Justiça americano já contestou a iniciativa, por seu caráter monopolista.
O Google Book Search é o tópico mais "momentoso" de A Questão dos Livros. Mas a coletânea não se esgota aí: é rica em digressões saborosas sobre as diferentes edições de Shakespeare ou as leituras de Thomas Jefferson. Darnton é, sobretudo, um historiador, um homem que oferece perspectivas amplas para seus temas. E seu assunto central exige isso mesmo: não há objeto mais amplo do que o livro.

Uma missão civilizadora

O historiador Robert Darnton falou a VEJA sobre o papel das bibliotecas
e a polêmica iniciativa de digitalização de livros do Google.
Catherine Helie/Gallimard/Opale
PRAZER DO PAPEL
Robert Darnton: "Apologia descarada
da palavra impressa"

O senhor afirma que a biblioteca é o centro da vida universitária. Faz sentido falar nesses termos quando os estudantes hoje contam com a internet, que não tem um "centro"?

Não devemos pensar nas bibliotecas como meros depósitos de livros, ou como museus em que exemplares raros são expostos em cúpulas de vidro. A biblioteca é um centro de organização do conhecimento – o que se torna ainda mais importante em um universo confuso e sem forma como a internet. Sei que isso pode soar sentencioso, mas acredito nessa missão central das bibliotecas.
E a biblioteca de bairro ou de cidade pequena ainda cumpre a mesma função para o leitor comum?
Sim, e está incorporando novas funções. Faço parte do conselho da Biblioteca Pública de Nova York, que, além de seu conhecido prédio central na Quinta Avenida, administra várias unidades de bairro. A visitação delas aumentou depois da crise econômica. Os trabalhadores que perderam o emprego e não têm computador em casa vão lá para buscar empregos on-line.
O senhor é um crítico do Google Book Search, projeto que pretende digitalizar o acervo de grandes bibliotecas – inclusive a de Harvard – e oferecer acesso aos livros na internet. Por quê?
O Google tem feito um trabalho maravilhoso de digitalização do acervo dessas bibliotecas. Mas, como toda empresa privada, tem por objetivo dar lucro a seus acionistas. Os objetivos das bibliotecas são distintos – entre eles, oferecer conhecimento público. Esse conhecimento não pode ser detido por uma empresa só. O acordo sobre direitos autorais do Google configura uma situação de monopólio.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A crítica como papel de bala


Qual o valor e o lugar da crítica literária hoje? Espremida em meio à celebração geral de festivais, prêmios e campanhas publicitárias, ela se conforma ao papel de guia de consumo e, numa manifestação conservadora, prega o retorno à estabilidade e pureza das belas letras. A opinião é da crítica literária Flora Süssekind, professora de teoria do teatro da UNI-Rio e pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, autora do ensaio "A crítica como papel de bala", capa do Prosa deste sábado. Flora constrói sua análise a partir de obituários sobre o prolífico crítico Wilson Martins, que morreu em janeiro, marcados por um "certo proselitismo agressivamente conservador". E aponta "o apequenamento e a perda de conteúdo significativo da discussão crítica, assim como da dimensão social da literatura no país nas últimas décadas". Um texto profundo e corajoso, que convida a pensar.




A crítica como papel de bala


Reações de ressentimento nostálgico, e certo proselitismo agressivamente conservador, dominaram (até agora, salvo engano, sem maior ressonância) os necrológios de Wilson Martins, desde sua morte em 30 de janeiro deste ano. Mais do que avaliações de fato da trajetória e da prolífica contribuição documental do colunista e pesquisador, ou figurações autoelogiosas minimamente convincentes (mediadas pela do morto) para o crítico enquanto herói solitário e combativo, o que essas manifestações, vindas de segmentos diversos do campo literário, parecem evidenciar, ao contrário, é o apequenamento e a perda de conteúdo significativo da discussão crítica, assim como da dimensão social da literatura no país nas últimas décadas.



Ao lado dessa retração, e em relação direta com ela, manifesta-se fenômeno curioso, espécie de negativo da situação — comentada à época por Roberto Schwarz — de dominância de uma cultura de esquerda durante os primeiros anos de ditadura militar no Brasil dos anos 1960. Agora há um conservadorismo que é francamente hegemônico. E envolve desde o retorno às figuras todo-poderosas do especialista monotemático, do agenciador com capacidade de trânsito inter-institucional e do colecionador de miudezas, às interlocuções preferencialmente de baixa densidade dos minicursos e palestras-espetáculo, do universo das regras técnicas e das normas genéricas e subgenéricas, fixadas acriticamente em oficinas de adestramento, à glamorização midiática de instituições autocomplacentes como a Academia Brasileira de Letras e correlatas, a formas variadas de culto a personalidades literárias, em geral mortas (e Clarice Lispector, Leminski, Ana Cristina Cesar têm sido objeto preferencial de dramaturgias miméticas, curadorias acríticas, ficções e comentários "à maneira de"), mas também em vida veem-se autores, mal lançados em livro, se converterem em máscaras que, com frequência, os aprisionam em marcas registradas mercadológicas de difícil descarte. Como se tornou, a meu ver, a trajetória tão distinta de Marcelo Mirisola e Patrícia Melo, para ficar em dois exemplos de escritores cuja produção poderia ir bem além do exercício automimético.



A idealização de Wilson Martins como imago exemplar do crítico, nesse contexto, não chega propriamente a espantar. Talvez a virulência com que ela tem sido feita nos elogios fúnebres, isso sim seja curioso. Uma virulência que supõe um conflito no entanto invisível, apenas virtual. Nada que se explique, entretanto, via clichê cordial. Pois não há lugar para cordialidade alguma num campo cuja retração e desimportância amesquinham e tornam ainda mais cruenta a disputa por posições, pelos mínimos sinais de prestígio e por quaisquer possibilidades de autorreferendo. Daí a truculência preventiva, propositadamente categórica, emocionalizada, nada especulativa. Espantosa talvez seja a falta de reação mesmo por parte daqueles cuja formação ou experiência crítica seria de molde a articular formas potenciais de dissensão. E que, ao contrário, recebem o autoapequenamento da crítica e do espaço para o debate público com passividade, resignação, quase desinteresse, incapazes de encontrar um campo ativo, mesmo minúsculo, de resistência ou interferência.



Talvez caiba, então, observação mais detida desses necrológios que figuram o colunista como um injustiçado, como uma espécie de herói solitário na pontualidade de suas resenhas semanais, em moldes idênticos, ao longo de cerca de seis décadas. Pois, se podem ser lidos como particularmente sintomáticos de uma redução do potencial de dissenso das intervenções no calor da hora, esses lamentos sinalizam, por outro lado, com singular acuidade, a perda de lugar social da crítica. O que os faz adotarem tom crescentemente exacerbado, agressivo, à medida que se percebem disfuncionais, e dispensáveis, mesmo em meio a um fluxo crescente de lançamentos, no que se refere à divulgação e afirmação de nomes e obras. Por vezes ainda lhes cabe o espaço de cerca de quarenta linhas de uma orelha ou de alguma declaração sobre a importância da obra. Ou o lugar meio envergonhado de um posfácio ou nota introdutória. Não muito mais do que isso ou as duas ou três laudas de uma resenha. Qual o interesse de um comentário crítico quando se pode obter muito mais visibilidade para escritores e lançamentos por meio de entrevistas, notas em colunas sociais e participações em eventos de todo tipo?



Fabricam-se nomes e títulos vendáveis, vende-se, sobretudo o nome das editoras, e sua capacidade de descobrir "novos talentos" semestralmente, ao sabor das feiras literárias. E, nesse sentido, formas dissentâneas de percepção, como a crítica, se mostram particularmente incômodas. Formas personalistas e estabilizadoras, ao contrário, se esvaziadas, parecem continuar benvindas. Se adotado o perfil do colunista que "sabe ficar no seu lugar", que funciona, com voz opiniática, e sem maiores tensões, como moldura quase invisível, inconsequente, para o que o mercado editorial ou o próprio veículo quiser referendar. Se desse lugar sem qualquer ressonância não houver condições reais de intervenção, formulação de questões relevantes e expansão do mínimo espaço público talvez ainda disponível para um exercício crítico que não se confunda inteiramente com busca de prestígio ou com um guia de consumo.



Talvez seja necessário, na discussão de um espaço ainda crítico para a crítica, matar mais uma vez Wilson Martins. Já que sua transformação em imago exemplar parece expor inequívoca vontade de retorno a algo próximo à tradição das Belas Letras, a um regime estável e hierarquizado de vozes e gêneros, a regras fixas de apreciação e prática textual, a um apagamento de novos espaços de legibilidade, espaços ainda não demarcados ou nomeados, e sugeridos por formas de compreensão expansivas, e não exclusivas, do campo da literatura. Um desejo de reierarquização e pureza que não parece sem sintonia com o temor de um universo sóciopolítico menos hierarquizado, com a expansão meio informe de uma classe média cujo imaginário não parece ultrapassar uma coleção inesgotável de bens de consumo. E com uma extraordinária expansão das práticas digitais de escrita, acompanhada, paradoxalmente, no entanto, de uma quase invisibilidade coletiva dessas manifestações, de um encolhimento quase ao absurdo da esfera pública.



Destaco, então, a título de exemplo, dentre os textos sobre a morte de Martins que parecem operar de modo reativo um fechamento auto-afirmativo do campo literário, os de Alcir Pécora, professor da Unicamp, publicado no suplemento "Mais!" da "Folha de S. Paulo"; do escritor Miguel Sanches Neto, divulgado em publicação de circulação menor, e orientação orgulhosamente conservadora, o jornal curitibano "Rascunho"; e, por último, um post incluído no blog de Sérgio Rodrigues no portal de notícias do IG.



Apesar de assemelhar-se aos demais no elogio fúnebre, em que a um velho modelo de crítica — como afirmação personalista do gosto — corresponde um território embelezado do literário, este último é o menos enfático dos três, sublinhando, mais de uma vez, meio a medo, o fato de "quase nunca concordar" com Martins. Desvinculando-se, assim, de maiores filiações, aponta simultaneamente, no entanto, "uma concordância maior", ligada a certa capacidade demarcatória, pois Martins seria alguém "que ousava falar de literatura de dentro", que parecia habitar o campo letrado, posicionando-se na contramão das "verdades importadas de campos fora das letras". O que interessa a ele parece ser a estabilidade identitária, uma garantia de intransitividade para o campo literário, o que a leitura de Wilson Martins invariavelmente oferecia, como uma ilha intemporal, propositadamente cega, sem lugar para a dúvida, em meio ao movimento relacional, autoinstabilizador da parte mais significativa do exercício crítico da segunda metade do século XX.



Ecos de uma vontade de retorno a um literário-apenas-literário se notam, igualmente, nas outras duas notas fúnebres. A de Miguel Sanches Neto não à toa fala de Martins como "o crítico", aquele que seria uma mistura de "bibliotecário" extremamente abrangente, voraz, pois o seu interesse seria por "toda a produção nacional", e de "leitor seletivo", cujo território independente, personalista, seria imune a influências, compadrios, regionalismos.



Uma espécie de “posição sem posição” que, se já passível de discussão pela simples inserção num veículo comercial, pelo exame do conjunto de resenhas produzidas por ele ao longo dos anos, não apontaria, na verdade, para atributo propriamente invejável na experiência analítica. Nesta, ao contrário, são a capacidade de elucidação da própria cadeia argumentativa, e das condições de constituição do sentido e de formulação do juízo, ao lado da articulação de relações críticas significativas com a hora histórica alguns dos fatores preponderantes. E não uma sonhada disponibilidade sem limites ou uma capacidade de exaustiva amostragem e arquivamento da produção editorial.



O texto de Alcir Pécora opera exemplarização semelhante da figura do crítico, a começar do elogio duplo contido no título do artigo publicado na "Folha": "Erudito dissonante". Uma erudição que contrasta às áreas que lhe parecem dominantes nos departamentos de Letras — os estudos teóricos e os estudos culturalistas — e que figuram como oponentes surdos em sua reavaliação do trabalho de Wilson Martins. A vontade de afirmação da importância do crítico morto leva-o, nessa linha, a comparar o seu trabalho ao de Darnton e Chartier, apontando papel antecipador em seu interesse pela cultura material e pela história do livro e da leitura. Uma coisa, porém, é compilar material que poderá se tornar relevante segundo outra perspectiva de leitura, outra bem diversa é constituir conscientemente um objeto de estudo, um ponto de vista anaítico, uma operação crítica, ou a avaliação de um campo disciplinar.



Se não é possível ver crítica ou cronologicamente em Wilson Martins um precursor do trabalho de Henri-Jean Martin e Lucien Febvre ou da teoria das materialidades da comunicação, há outra ordem de atributos que levam Pécora a destacá-lo. Uma não-cordialidade propositada (aspecto talvez discutível, apenas aparente, se observam-se com cuidado os não violentamente criticáveis por ele e o que se resguarda, no seu caso, via antagonização); a truculência verbal (também não exclusiva, bastando observar, nesse sentido, alguns dos colunistas mais populares e longevos em diversas áreas e meios de comunicação); o orgulho de estar sozinho (quando, ao contrário, desde os anos de estabilização democrática, no país, são figuras marcadas exatamente por um conservadorismo ativo que têm se mostrado legião e emprestado a respeitabilidade de nomes já feitos às páginas de entretenimento e opinião dos jornais).



Quando os tempos políticos se mostram outros, e uma homogeneização impositiva parece barrar as cisões necessárias à experiência crítica do próprio tempo, quando já não se constituem, com facilidade, margens articuladas de resistência e situações definidas e consequentes de conflito, talvez seja mais fácil converter a crítica em operação reativa, disfuncional, mas virulenta, cujo motivo condutor passa a ser o retorno autocongratulatório a um passado de glórias, no qual os textos de intervenção podiam ainda provocar controvérsia, e o prestígio das Belas Letras enobrecia igualmente críticos e escritores.



O que parece, no entanto, nostálgico, reativo, talvez não aponte exclusivamente para um período anterior à formação da crítica moderna no Brasil, mas para uma reprodução esvaziada de sentido, e desligada de vínculos efetivos com a experiência histórica, de comportamentos, práticas de escrita e certo culto à autodivulgação e à vida literária que parecem se expandir (em prêmios, concursos, revistas, blogs, antologias, bolsas de criação) em movimento inverso ao da restrição que se opera no campo da produção e da compreensão da literatura, ao da quase total desimportância de livros e mais livros que se acumulam sem maior potencial de instabilização, sem provocar qualquer desconforto, sem fazer pensar. Uma restrição que talvez indique uma incapacidade não só da crítica, mas do campo literário, de modo geral, de reinventar a sua sociabilidade, de produzir condições outras para a própria prática.



Lembro, nesse sentido, a resposta de Jacques Rancière quando indagado, em entrevista recente, a respeito de uma série de escritores contemporâneos. Sem desqualificá-los, comentaria, no entanto, distinguindo a atual da ficção de até meados do século XX: "Penso simplesmente que a literatura não inventa hoje categorias de decifração da experiência comum". E concluindo numa espécie desdramatizada de beco sem saída: "As formas de narratividade, de expressividade, de inteligibilidade que ela inventou foram apropriadas por outros discursos ou outras artes, ou banalizadas pelas formas de comunicação".



Para além do quadro local, o que Rancière sublinha, em perspectiva mundial, é a aparente interrupção de um período de vigorosa contribuição dos estudos literários às ciências humanas (como ocorreu ao longo do século passado), e de poder significativo de interferência e transformação do literário sobre outras práticas artísticas. O que não apenas no Brasil parece encontrar resposta compensatória à sua desnecessidade, e a uma fraca ressonância, em premiações, incentivos, edições de luxo. E numa ficcionalização autotélica de uma espécie de território exclusivo para o literário e sua crítica, de lugar sem condicionamentos ou ecos, que, hipoteticamente sem interferência de outras artes e disciplinas, se mostra, por isso mesmo, incapaz de se repensar e de estabelecer ligações mais consequentes com o próprio tempo.



Curiosamente, como já demonstraram há alguns anos George Kornis e Fábio Sá Earp, e mais recentemente Jaime Mendes, em estudos sobre a economia do livro, se, em termos de oferta, de número de exemplares, o mercado literário vem apresentando um crescimento de mais de 30% desde 2004, isso não se tem feito acompanhar, todavia, nem do aumento de alcance dessa produção, nem de faturamento por parte das editoras, nem de capacidade de absorção por parte de consumidores e bibliotecas. E é como volta a um jogo entre iguais, a um território mais restrito, homogêneo e regulado, de relevância previamente estabelecida, como volta às Belas Letras que se pode compreender a virulenta ressurreição de Wilson Martins, o desejo de Sérgio Rodrigues de um campo puro do literário, a ideia de uma amostragem irrestrita como a de Miguel Sanches Neto (pois previamente demarcada por gêneros, dicções, territorializações diversas), o sonho com um tempo em que "a literatura e o crítico não pareciam ter que sair de cena", para voltar ao texto melancólico e, a meu ver, equivocado, de Pécora.



E, no entanto, talvez seja exatamente desse "lugar estreito demais", e pouco público, desse ponto cego que talvez não se veja em jornais e nas manifestações mais concorridas da vida literária, que caiba à crítica e à literatura definir outros espaços de atuação e trânsito, lugares não demarcados (retroativamente) pelo beletrismo redivivo, nem pelas identidades estáveis do resenhista, do prefaciador, do professor judicativo, do ficcionista auto-mimético. Mas em movimentos de deslocamento nos quais a literatura e a crítica se vejam forçadas, como observa Agamben ao pensar sobre o contemporâneo, a mergulharem "a pena nas trevas do presente". E a saírem de si no sentido da figuração de novas formas de visualização e radicalidade. À maneira do que faz Carlito Azevedo ao reinventar a própria dicção em meio à tensão entre o poema como narrativa e percurso e a sua dramatização interna em estações imagéticas instáveis. À maneira do que fizeram Bia Lessa e Maria Borba, em bela operação crítica, ao amputarem cenicamente, em "Formas breves", a obra de Tchekhov, Kafka, Thomas Bernhard, Sérgio e André Sant’Anna, Almodóvar e mais e mais. À maneira da concepção musical de Rodolfo Caesar, na qual a reflexão em livro sobre a composição "Círculos ceifados", funciona como fator de variação operatória, como obra suplementar por meio da qual escrita e escuta se desdobram e interferem, sem coincidência, potencializando o campo de tensões em que se investiga a experiência composicional. Ou, para ficar em mais um exemplo apenas, como no enfrentamento quase de estrangeiro de Nuno Ramos diante da matéria verbal que, em livros como "Cujo" (Editora 34) e "Ó" (Iluminuras), adquire um nível singular de presença, parecendo intensificar-se exatamente pelo lugar de fora em que se processam essas intervenções.



*FLORA SÜSSEKIND é crítica literária, pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e professora de teoria do teatro da UNI-Rio. Autora de "A voz e a série" e "O Brasil não é longe daqui", entre outros.



RESPOSTA
A crítica de mal com a literatura


O interessante artigo de Flora Süssekind publicado na última edição do Prosa & Verso, sob o título “A crítica como papel de bala”, investe contra o “conservadorismo” e o “beletrismo” que sua autora julga hegemônicos no atual cenário da crítica literária brasileira — ou talvez devêssemos chamá-lo de ambiente de recepção de livros, pois o pensamento crítico anda mesmo um tanto anêmico. Esse ambiente, argumenta ela, vive um momento de certa efervescência com seus festivais, prêmios, oficinas, blogs e resenhas breves, eminentemente jornalísticas, mas falta-lhe o tutano de um pensamento articulado e independente que resgate a “dimensão social” da literatura. O curioso é que, num caso clássico de ponto cego, Süssekind parece sincera ao deixar de perceber que o grande elemento faltante nesse ambiente, a crítica universitária de fôlego que ela própria representa, retirou-se do debate porque quis.



Como bom exemplo do pensamento literário hoje dominante na universidade, inclusive no estilo árido e calibrado para afugentar leigos, Süssekind, reconheça-se logo, está de mal com a literatura contemporânea. Brigou com ela. Os exemplos de novidade estética que aplaude em seu artigo incluem, ao lado do poeta Carlito Azevedo e seu notável “Monodrama” (7 Letras), uma diretora de teatro, um músico e um artista plástico, expondo com candura essa malquerença ao propor quase como uma via de mão única, de fora para dentro das letras, o trânsito de fronteira entre linguagens que é sem dúvida o território artisticamente mais fértil do mundo contemporâneo. É uma pena que a autora de estudos literários clássicos — embora difíceis de ler — como “Cinematógrafo de letras” e “O Brasil não é longe daqui” (Companhia das Letras) encare de forma tão pouco generosa a tarefa de separar o joio do trigo na literatura brasileira de hoje.





A birra não é só dela. Embora mais sofisticada que a maioria de seus pares, Süssekind é produto de um meio que, há pelo menos quatro décadas, vem assistindo à progressiva hegemonia dos chamados estudos culturais. Parte do tsunami politicamente correto, tal predominância transformou em truísmo a ideia de que a literatura como a conhecemos é apenas um instrumento de dominação de classe. Em movimento análogo ao de certas feministas, que viram no próprio ato sexual um emblema de invasão e revoltaram-se contra a anatomia, o passo seguinte foi condenar a literatura e seus circuitos internos — gêneros, técnicas, modos de aferição de valor e, claro, os famigerados autores canônicos — como um complô ancestral de “machos heterossexuais brancos”. De tal ponto de vista, afirmar a especificidade do literário, do jogo que desde Homero gerações de escribas se dedicam a levar adiante a partir dos lances precedentes — um jogo que parece longe de terminar — é o suficiente para embasar denúncias de um artifício “demarcatório” e, claro, conservador.



Beletrista, ofensa suprema, seria aquele que, no atarefado comércio que a esfera literária sempre estabeleceu com outros saberes, saindo mais forte das múltiplas contaminações, reafirma no fim das contas o que a literatura tem de irredutível à política, à antropologia, à psicanálise ou a qualquer outro discurso. Eis o mérito de Wilson Martins, cujos elogios fúnebres, inclusive uma notinha de minha autoria, foram o estopim do artigo de Süssekind: o homem era careta demais para caber no figurino de paradigma da crítica, concordo, mas nunca desistiu do que há de propriamente literário na literatura. Se ao morrer andou sendo saudado por aí como um gigante, em evidente exagero, isso parece se dever menos à sua estatura do que ao cenário liliputiano construído ao seu redor.



Experimente-se, no raciocínio de Süssekind, trocar a ideia de conservadorismo pela de resistência, sutilmente distinta, e teremos um quadro mais condizente com a realidade. A literatura que se faz hoje — e seria um despautério dizer que vivemos no Brasil uma época de ouro, mas o momento é de febril e promissora atividade — tem sido obrigada a lidar com um novo inimigo, que veio se somar àquela velha lista de predadores na qual se incluem desde uma população pouco letrada até a brutal dificuldade intrínseca de produzir algo que preste. Grande parte da universidade, em geral com as ferramentas da indiferença e do silêncio, tem jogado contra.



No lugar do discurso informado que tenta arquitetar o novo levando em conta a tradição, visto como comprometido na raiz, essa crítica passou a valorizar dois novos modelos textuais para a literatura contemporânea, ambos virginais. De um lado, em rendição incondicional à antropologia, o das “vozes” dos despossuídos literários: mulheres, negros, gays, favelados. Do outro, pelo qual parece se inclinar Süssekind, o da “transgressão” que “rompe com tudo o que está aí”, em geral sem ter lido uma fração minimamente aceitável de “tudo o que está aí” — e aqui a rendição do crítico se dá frente ao mito de corte religioso da pureza refundadora. Escrever “mal”, ser incapaz de construir um personagem, reinventar a pólvora modernista, aborrecer o leitor desavisado, tudo isso é considerado preferível a ser mais um a perpetuar aquele jogo ideológico chamado literatura.



Trata-se de uma tomada de partido estético que, a princípio, é tão respeitável quanto qualquer outra. Resta ver aonde nos conduz. A trama se adensa — e neste ponto cabe apontar um traço de desespero no artigo de Süssekind, facilmente enquadrável na categoria de “disputa por posições” que ela busca denunciar — quando se leva em conta que as novidades mais instigantes dos últimos anos no campo das letras não partiram de “despossuídos” nem de “refundadores”, mas de escritores imersos até o último fio de cabelo em cultura literária, como Roberto Bolaño, W.G. Sebald, Enrique Vila-Matas, Pierre Michon e David Foster Wallace. Conservadores ou heróis da resistência? E como explicar uma coisa dessas?



Simples: a literatura, condenada à morte por tantos catedráticos, não morreu. Continua sendo escrita e lida, boa e ruim, mais ou menos experimental, hibridizando-se com o ensaio, o jornalismo e outros discursos, exibindo alguns rasgos brilhantes de novidade em meio às doses costumeiras de mesmice. Sua velha aura de prestígio e nobreza foi para o vinagre no mundo inteiro, paciência, mas o leitor, esquecido leitor, não a desertou de todo. Bem ou mal, ela tem tido força suficiente para movimentar a tal roda de festivais, prêmios, blogs, oficinas etc. que Süssekind menospreza. Só o que não vem aparecendo com muita frequência na arena, lamentavelmente, é a boa crítica universitária, vítima de escolhas que, conscientes ou não, ameaçam encurralá-la num beco sem saída de autismo e irrelevância. Está fazendo falta.





SÉRGIO RODRIGUES é escritor e jornalista, titular do blog literário Todoprosa e autor, entre outros livros, de “Elza, a garota” e “Sobrescritos — 40 histórias de escritores, excretores e outros insensatos

terça-feira, 4 de maio de 2010

O imperador de Inhotim

O imperador de Inhotim



Como Bernardo Paz, empresário da mineração, montou um instituto


de arte tão pitoresco quanto espetacular em um lugarejo mineiro



Marcelo Marthe



Fotos Bruno Magalhães/Nitro



ESTILO TRATOR

Paz e a instalação De Lama Lâmina, cuja cúpula de vidro lembra um óvni na mata: a obsessão

do empresário é criar uma Disneylândia da botânica e da arte contemporânea





Em 2006, o mineiro Bernardo Paz recebeu um especialista em plantas na sua fazenda em Brumadinho, cidade de 34 000 habitantes a 60 quilômetros de Belo Horizonte. Paz havia acabado de transformar seus 97 hectares em uma mescla de jardim botânico e museu devotado à arte contemporânea – o Instituto Cultural Inhotim. Só que, ao se gabar das palmeiras, ouviu uma crítica do engenheiro agrônomo Harri Lorenzi. "Eu o adverti: ‘Meu amigo, essa sua coleção não tem nada de extraordinário. Faltam centenas de espécies nativas’", conta Lorenzi. De imediato, diante do convidado, Paz repreendeu o responsável pelo jardim (que logo seria demitido). Ao retornar ao local, no ano passado, Lorenzi se assombrou: "Até onde sei, ele montou a maior coleção de palmeiras do mundo, com mais de 1 000 espécies". O episódio resume o homem e sua obra. Na aparência, Paz – que cultiva uma juba branca à la Oswaldo Montenegro e recebe os visitantes descalço – é todo zen. Por trás da estampa riponga, contudo, há um leão obcecado em tornar cada vez mais grandiosa aquela que vê como a "obra de uma vida".



No começo da década, o empresário do ramo da mineração ganhou notoriedade como um mecenas agressivo e pitoresco. Mas, para muitos, Inhotim – o destino das obras que comprava – parecia um capricho sem sentido. Distante do eixo Rio-São Paulo e fora de mão mesmo para quem vem de Belo Horizonte, a região era, até poucas décadas atrás, sede de um leprosário. Quatro anos depois de sua abertura, contudo, a instituição já atrai público. Sua exuberância, sustentada por recursos do próprio empresário e também obtidos com leis de incentivo, contrasta com a penúria de boa parte das instituições culturais do país. No ano passado, Inhotim recebeu 130 000 visitantes (além de 21 000 estudantes, a maioria por meio de um convênio com a prefeitura de Belo Horizonte) e inaugurou nove novas atrações. Entre elas contam-se uma

instalação do carioca Hélio Oiticica (1937-1980) e a galeria que abriga De Lama Lâmina, obra do americano Matthew Barney que consiste em um trator suspendendo no ar um tronco de árvore artificial (Barney adora uma esquisitice: é casado com a cantora islandesa Björk). O efeito da obra e do prédio que a abriga sai amplificado pelo cenário – de fora, o conjunto parece um óvni estacionado no meio da mata. Ao inserir a arte contemporânea em um ambiente tropical, Inhotim lhe confere um sentido menos inócuo do que se depreenderia ao observá-la em uma bienal.



A ambição do mecenas é criar uma Disneylândia da arte e da botânica. "Isto aqui não é um museu. É um lugar", diz. Ele quer construir um albergue para estudantes, três hotéis de categorias distintas, um centro de convenções, um teatro e um aeroporto. "Sou da tribo das pessoas que só querem fazer, fazer, fazer. E isso põe todo mundo aqui louco", afirma Paz, que, aos 59 anos, controla a ansiedade com calmantes, antidepressivos e dois maços de cigarro por dia. Inhotim surgiu no fim dos anos 80, quando Paz se tornou próximo do paisagista Roberto Burle Marx (1909-1994) e obteve dele – na base da camaradagem – palpites para montar seu jardim.



A ideia de transformá-lo em uma instituição aberta ao público nasceu em 1995, quando o empresário se viu confrontado com a morte: sofreu um derrame em Paris, durante uma escala em uma viagem de negócios à China. "Percebi que meu legado poderia ser esse ambiente mágico, onde as pessoas vivem uma experiência interior única", diz. Ele concluiu que a melhor forma de imprimir esse significado luminoso a seu jardim seria salpicá-lo de arte, em uma versão radicalizada dos tradicionais jardins de esculturas. Convencido pelo artista pernambucano – e amigo – Tunga de que não deveria investir em "medalhões mortos", ele se desfez de seu acervo de arte moderna e passou a colecionar contemporâneos, como o próprio Tunga, os cariocas Cildo Meireles e Adriana Varejão e o dinamarquês Olafur Eliasson. A galeria mais espetacular é a de Adriana, que tem três andares e parece flutuar sobre um espelho-d’água. "Inhotim é o sonho de todo artista: um lugar que acena com liberdade total e recursos generosos", diz a artista. Ela conseguiu não só um colecionador, mas também um maridão: Adriana e Paz casaram-se em 2005 (ele, pela quinta vez) e têm uma filha de 4 anos.



Ao criar seu "lugar mágico" – inaugurado em uma boca-livre antológica, com dois Airbus fretados para o translado de convivas –, Paz esperava elogios. Não foi assim. Ele enfrentou pressões familiares. "As mães dos meus seis filhos querem me matar por enterrar todo o dinheiro deles aqui", afirma. Uma das ex despachou um médico para sondá-lo. "Ela achava que eu estava doido." O imperador de Brumadinho também teve sua imagem abalada pelo envolvimento do irmão, Cristiano Paz, no escândalo do mensalão petista, em 2005. O publicitário era sócio do nefasto Marcos Valério. "De repente, minha obra foi colocada sob suspeição", diz.



Paz declara ter despejado em Inhotim cerca de 90 milhões de dólares, o que o tornaria um mecenas comparável a Ciccillo Matarazzo, financiador do acervo estupendo do Museu de Arte Contemporânea (MAC), em São Paulo. Boa parte desse montante, de acordo com Paz, provém de uma bolada de 150 milhões de dólares que ele teria recebido no exterior pela venda de uma mina no Brasil. O dinheiro teria sido doado à Horizontes, empresa que administra o instituto, por meio de uma firma no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas. "Pus o grosso do dinheiro em Inhotim. O restante, a Horizontes emprestou a uma empresa minha para saldar dívidas", conta. A empresa em questão era a mineradora Itaminas – que, recentemente, teve sua venda acertada para um grupo chinês por 1,2 bilhão de dólares. Paz pretende usar parte da quantia para quitar seus débitos empresariais, que ele calcula serem da ordem de 400 milhões de dólares. "Como escolhi ser um homem público, não posso dar margem a ilações", afirma.



O mecenas paga comissões entre 80 000 e 100 000 dólares por obra, além de bancar o material para sua confecção. Ele se enfronhou na arte contemporânea para conviver com os artistas, que via como criaturas extraordinárias. A proximidade o fez rever essa ideia: "Artistas cansam. Ninguém aguenta as pirações deles por muito tempo". No casamento com Adriana Varejão, Paz se adapta como pode às injunções da mente criadora. Ela mora no Rio de Janeiro. Ele vive isolado em Inhotim. "Como eu poderia manter essa mulher, uma artista, presa aqui?", diz. Ademais, Paz reconhece não ser um marido fácil. "Sou um ermitão."



Fotos João Marcos Rosa/Ag. Nitro e Bruno Magalhães/Nitro



O PALÁCIO DA PRIMEIRA-DAMA

Uma das galerias de Inhotim abriga obras da artista plástica carioca Adriana Varejão – que, durante a construção, acabaria se casando com o mecenas Bernardo Paz. Dentro do prédio (à dir.), uma estrutura de concreto de três andares que parece flutuar sobre um espelho-d’água, há peças como Linda do Rosário (à esq.) – uma parede de azulejos da qual brotam vísceras feitas de poliuretano e pintadas a óleo







Bruno Magalhães/Nitro



EXUBERÂNCIA TROPICALISTA

Os jardins de Inhotim, com obra de Hélio Oiticica: a maior coleção

de palmeiras do mundo





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quarta-feira, 31 de março de 2010

Festival de Curitiba mostra o esfacelamento de fronteira entre teatro








Festival de Curitiba mostra o esfacelamento de fronteira entre teatro


e artes plásticas; o trabalho de cenógrafos ascende a um primeiro

plano e faz com que cenário, luz e trilha deixem de ser elementos

ilustrativos





Lenise Pinheiro/Folha Imagem





O ator Germano Mello, em cena de ‘Travesties’, com direção de Caetano

Vilela





GUSTAVO FIORATTI

ENVIDADO ESPECIAL A CURITIBA





No momento em que o ator Ranieri Gonzales toma impulso para um

mergulho de cabeça contra a parede cenográfica do espetáculo "Vida",

fica em suspensão não só o ritmo alucinante de uma peça cheia de

dilemas íntimos, com base na obra de Paulo Leminski, mas também uma

espécie de simbologia metalinguística apontando o esfacelamento de

fronteiras entre expressões artísticas, mais especificamente entre

teatro e artes visuais.

Com essa peça sobretudo, mas também em "Cinema", de Felipe Hirsch,

"Travesties", da Companhia de Ópera Seca, e "Um Navio no Espaço ou Ana

Cristina César", dirigida por Paulo José, o festival representou um

grupo de encenadores empenhados em reverter uma tradicional hierarquia

das artes cênicas. Nestes trabalhos, cenário, luz e trilha sonora

deixam de ser elementos ilustrativos.

Sinais dos tempos, estavam presentes na mostra contemporânea desta

edição do festival cenografias assinadas por Daniela Thomas

("Cinema"), William Pereira ("Travesties"), Márcio Medina ("Till, a

Saga de um Herói Torto") e Bia Lessa ("Formas Breves"). São nomes

habituados a lidar com essa quebra; todos eles já exerceram alguma

outra representação artística, ou como diretores, ou como escritores e

intérpretes, ou como escultores até.

"Estive na Bienal de Veneza de 2009, e ali ficou muito evidente que as

fronteiras entre expressões artísticas caducaram", diz Daniela Thomas.

Sua cenografia para "Cinema" praticamente fundamenta a composição

dramatúrgica da peça. É sobre o cenário, pensado também por Hirsch

antes do texto, que surge o protagonista de uma história: o próprio

cinema. Não é literal, mas está ali "o retrato de uma sala de rua de

São Paulo, dessas que estão desaparecendo", define o diretor.

A iluminação reflete no rosto dos personagens, sentados numa plateia,

a luz emitida por um projetor. Foi concebida por Beto Bruel,

iluminador que já venceu três vezes o Shell.

De volta ao ator que se jogou contra o cenário de "Vida", atravessando

uma de suas paredes, rasgando com o próprio corpo um ambiente onírico

e claustrofóbico: quão próximo estaria ele de uma ação performática,

expressão hoje mais relacionada às artes visuais?

Muito próximo, responde o diretor da peça, Márcio Abreu. "A interface

com artes de outra natureza abre o campo de leitura do texto." Por

trás daquela cena, existe um trabalho de materiais. O próprio

cenógrafo, Fernando Marés, ganhou arranhões, testando a possibilidade

de romper a parede com o corpo. Faz lembrar a dupla Marina Abramovic e

Ulay em "Interruption in Space", de 1977, em que ambos se jogam contra

a parede à exaustão.

O cenário de "Travesties" é outro exemplo, chegou ao teatro Guaíra em

dois caminhões. Um amontoado de jornais e livros, além de mesas e

cadeiras, que William Pereira usou para compor um tipo de fundo

grandioso, mais comum em óperas, com estética acentuada pela

iluminação do diretor Caetano Vilela. Impactante, o que era fundo veio

à frente do espetáculo. Especialmente na chuva de livros do primeiro

ato.

Para a curadora do festival, Tânia Brandão, a ascensão do trabalho de

cenógrafos a um primeiro plano reflete o aprofundamento de pesquisas

que, em parte, deriva do suporte financeiro de políticas públicas e

leis de incentivo. "Se não fosse esse inchaço, acho que não teríamos

conseguido fazer essa representação na Mostra Contemporânea", diz.

Para o diretor do festival, o exemplo contrário é a própria edição do

ano passado, que minguou por contra da crise mundial.

O repórter GUSTAVO FIORATTI viaja a convite do Festival de Teatro de

Curitiba





ANÁLISE





Teatro brasileiro foge da tradição

LUIZ FERNANDO RAMOS

ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA





O teatro brasileiro está estranho. Como o teatro no mundo todo,

reflete os impasses de uma época em que a dramaturgia já não é a

mesma, mas resiste o impulso humano de criar narrativas cênicas. A

considerar por uma amostragem do Festival de Curitiba, englobando

tanto espetáculos da Mostra Oficial como do Fringe, percebe-se algumas

recorrências que permitem agrupar em zonas comuns a diversidade

exibida.

Como tendência dominante, estão os espetáculos construídos em processo

colaborativo.

Entre esses, há aqueles em que o encenador assume a dramaturgia, como

é o caso de "Vida", de Márcio Abreu, talvez o grande destaque do

Festival, "Escuro", de Leonardo Moreira, e "Ruído Branco da Palavra

Noite", da dupla Caetano Gotardo e Marina Trajan.

Há também alguns em que o encenador escreve a cena a partir de

material anterior, mas ainda conta com a colaboração dos atores e

atrizes, como nos casos de "Formas Breves", de Bia Lessa, com texto de

Maria Borba, e "De como Me Tornei Bruta Flor", de Cibele Forjaz a

partir de poema de Cláudia Schapira.

Outra vertente de colaborativo é aquela em que um texto dramático é

reprocessado na encenação, como mostram os impactantes "Memória da

Cana" de Newton Moreno, cruzando "Álbum de Família" de Nelson

Rodrigues e "Casa Grande e Senzala" de Gilberto Freyre, ou

"Travesties", de Caetano Vilela, relendo a peça de Tom Stoppard na

chave da Ópera Seca.

Num outro grupo, que confirma de perspectiva distinta a mesma

tendência, agrupam-se peças montadas a partir de dramaturgias fortes e

autônomas, mas que encerram em si a dissolução da estrutura dramática

tradicional. Incluem-se aí "In on It", de Daniel Macivor, encenado por

Enrique Diaz, "Psicose 4h48", de Sarah Kane na leitura de Marcos

Damaceno, ou "Como se Fosse o Mundo", texto do novíssimo Paulo

Zwolinski apresentado em vertente radical por Roberto Alvim.

Ainda há dramas propriamente, mas mesmo esses transpiram os ares do

espírito do tempo, quando mais que histórias acabadas com personagens

bem definidos, o teatro oferece atos performativos que sobressaem às

tramas. É o caso de "Música para Ninar Dinossauros", de Bortolotto,

"Navio Ancorado no Espaço", evocação de Paulo José da poeta Ana

Cristina César, partindo de texto de Maria Helena Kühner e dramaturgia

de Walter Daguerre, "A Idade da Ameixa", de Aristides Vargas, dirigido

por Guilherme Leme, e do bizarro "grand-guinol" de Paulo Biscaia,

"Manson Superstar".

Na tradição do teatro épico, que desde meados do século passado lida

com as alternativas de narrar o mundo para além do drama, destacam-se

"Till", de Luiz Alberto de Abreu, com o grupo Galpão, "Macbeth", de

Shakespeare, na versão de Aderbal Freire Filho, ou a adaptação de

Edson Bueno das crônicas e da biografia de Nelson Rodrigues em "A Vida

como Ela É".

As pulsões antidramáticas, e que chamam o público a se deter na

matéria cênica bruta, poderiam ser apontadas mesmo em trabalhos

irregulares, como os experimentais curitibanos "Chiclete e Som", de

Nina Rosa Sá, e "Primeiro Crime", de Darlei Fernandes, ou os mineiros

"Barba Azul" e "John e Joe", dos grupos Andante e Trama.

De algum modo, percebe-se em toda essa produção, ao lado da vontade de

continuar contando histórias, a dificuldade de fazê-lo com as formas

convencionais. É dessa tensão que advém a estranheza detectada.





O crítico LUIZ FERNANDO RAMOS viajou a convite do festival

sexta-feira, 19 de março de 2010

Andy Warhol, Mr. America


Estação Andy Wahrol


Maior mostra do artista no país explora tom político de sua obra e a relação com os EUA do pós-Guerra

FABIO CYPRIANO

O lado glamouroso e pop nas obras de Andy Warhol (1928-1987) já é bastante conhecido, seja nos retratos de celebridades, como Marilyn Monroe ou Elizabeth Taylor, e mesmo em seus autorretratos, que também prenunciam o culto ao egocentrismo em tempos de Facebook e Twitter.

Com a mostra "Andy Warhol, Mr. America", que será inaugurada neste sábado, na Estação Pinacoteca, outra faceta será explorada: as relações políticas vistas em sua obra, a partir da consolidação do império americano do pós-Guerra.

"Warhol encarnou e expressou vários dos pressupostos que levaram à construção do império americano: a relação entre desejo, fantasia e consumo, ou mesmo a persistência da morte por trás da essencialmente afirmativa iconografia da cultura pop dos EUA", afirma o curador canadense Philip Larratt-Smith, responsável pela exposição.

"Andy Warhol, Mr. America" começou a circular no ano passado, no Museu de Arte do Banco da República, em Bogotá, na Colômbia, seguiu para a Argentina, no Museu de Arte Latinoamericana de Buenos Aires, e termina seu périplo em São Paulo. O tema político da mostra, segundo o curador, foi escolhido graças ao circuito geopolítico: "Devido à longa história das intervenções norte-americanas na América Latina e ao papel fora do comum desempenhado pelas multinacionais americanas".

Para ilustrar a relação política na obra de Warhol, Larratt-Smith dá como exemplo as obras da carreira do artista nas quais ele passou a usar camuflagem, incorporando padrões militares. Nesses trabalhos, segundo o curador, "a camuflagem sugere que as aparências são enganosas, e que existem agendas escondidas". Assim, segue Larratt-Smith, "o império americano é um império travestido, que tem a pretensão de ser o que não é: um supervisor benevolente do sistema financeiro global ou o zeloso policial do mundo".

Nesse sentido, Warhol de fato seguiu na contramão da propaganda do governo dos EUA em defesa do expressionismo abstrato americano de Jackson Pollock e seus contemporâneos, que ainda continuam em voga: na semana passada, o correio norte-americano começou a vender selos de dez artistas desse movimento.

A turma de Pollock, aliás, nunca admirou Warhol. "De Kooning uma vez o chamou de "matador do belo", em uma festa, quando se encontraram", diz Larratt-Smith.

A mostra do artista na Estação Pinacoteca, a maior já vista no país, reúne cerca de 170 obras: 26 pinturas, 58 gravuras, 39 fotografias, duas instalações e 44 filmes, com ênfase para os trabalhos realizados entre os anos 1961 e 1968, período que Warhol trabalhou com intensidade em seu estúdio, a "The Factory", por onde circulava grande parte do meio criativo de Nova York, como Bod Dylan e Mick Jagger e Lou Reed.

Foi na "Factory" que Warhol criou grande parte de seus filmes experimentais, como "Empire", visto na mostra em uma versão curta de 50 minutos com imagens do Empire State Building (Nova York).

O deslumbre de Warhol com o brilho das luzes tem a ver com suas raízes, segundo o curador da mostra: "Um fora do sistema por sua classe social, orientação sexual e aparência, Warhol desejou, com intensidade patológica, viver o sonho americano e assimilar ele mesmo a complexidade dos mitos e narrativas da América".


Crítica/"Andy Warhol, Mr. America"




Mostra revela faceta crítica de Warhol

Exposição aponta sarcasmo do artista em relação aos mitos americanos e exibe obras experimentais, além das famosas

O rótulo "artista pop" é muito pequeno para definir Andy Warhol, como se pode perceber na mostra "Andy Warhol, Mr. America", que será aberta no próximo sábado, na Estação Pinacoteca.

A reportagem da Folha viu a exposição em sua primeira montagem, em Bogotá, na Colômbia, no ano passado.

Obviamente, estão nas obras, como nas gravuras de Marilyn Monroe e nas das latas de sopa Campbell's, os elementos que marcam a chamada arte pop, ou seja, o uso de elementos do mundo das celebridades e da publicidade -nessas imagens, Warhol sempre se apropriou de fotos de jornal.

Mas o que a exposição revela com intensidade é, em primeiro lugar, uma faceta crítica, que até então costuma ser atribuída apenas ao pop inglês, onde o movimento surgiu, com a famosa colagem "O que Exatamente Torna os Lares de Hoje Tão diferentes, Tão Atraentes", de Richard Hamilton, de 1956.

Se Warhol não usava ironias em seus títulos, elas estão presentes, contudo, em suas próprias construções. Suas celebridades são maquiadas com cores fortes e berrantes, outro elemento que o caracteriza como pop, mas exibidas após situações de fraqueza. Na série sobre Jackie Kennedy, por exemplo, ela surge não quando estava gerando um padrão de beleza para o país, mas no momento de luto.

É como se Warhol apontasse para o poder ambivalente da imagem que se torna impressa, afinal ela não é capaz de revelar tudo. Nesse sentido, o custo da fama revela-se perverso e sem glamour. Mesmo assim, ao colorir tais imagens, ele apela para a sedução, uma das razões que o tornou a ser tão reconhecido popularmente.

Outro caráter importante da exposição é exibir, junto com os trabalhos mais famosos, sua obra mais experimental, até então normalmente vista em pequenas mostras ou como trabalhos menores. Warhol produziu filmes alternativos em grande quantidade -há 17 deles na exposição- e trabalhou em vários suportes, chegando até a criar ambientes imersivos, como "Silver Clouds" (nuvens prateadas), de 1966, ou "Cow Wallpaper" (papel de parede de vaca), de 1972.

São trabalhos precursores das instalações contemporâneas, que o levam muito além da mera produção pop.

Finalmente, o curador Philip Larratt-Smith acerta ainda ao apontar o caráter sarcástico de Warhol em relação aos mitos americanos. O artista abordou a violência contra os negros, em "Confrontos Raciais", a miséria, em "Desastres do Atum Enlatado", retratou temas tabus como a homossexualidade, a obsessão pela morte e, como se não fosse suficiente, a sociedade do espetáculo.

Assim, quem observa apenas as cores fortes e as imagens sedutoras, fica apenas na superfície da obra de Warhol, mas quem quiser se aprofundar de fato nessas imagens, vai descortinar um mundo não colorido e tampouco atrativo, o que afinal é o retrato da América. (FABIO CYPRIANO)









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ANDY WARHOL, MR. AMERICA



Quando: abertura, sábado, às 11h; de ter. a dom., das 10h às 18h

Onde: Estação Pinacoteca (lgo. General Osório, 66, Centro, SP, tel.0/ XX/11/ 3335-4990); até 23/5

Quanto: R$ 3 a R$ 6 (sábado, grátis)


Leia íntegra da entrevista do curador da exposição de Andy Warhol em SP


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FABIO CYPRIANO

da Folha de S.Paulo



A mostra "Andy Warhol, Mr. America" foi concebida pelo curador canadense Philip Larratt-Smith como "nova forma de se observar Warhol", através da cultura imperialista norte-americana. Trabalhando como curador "free-lance" em Nova York, ele concedeu entrevista à Folha por e-mail, na semana passada, antes de desembarcar no Brasil, domingo passado.



Seu próximo projeto envolve novamente o país, numa mostra sobre Louise Bourgeois e seu engajamento na psicanálise, que irá começar na Fundação Proa, de Buenos Aires, no próximo ano, e depois será vista no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.



Leia a seguir a íntegra da entrevista sobre a mostra de Warhol.



Folha - A exposição explora a relação entre cultura pop e política nos EUA. Por que você escolheu esse tema para se olhar o trabalho de Warhol na América Latina?



Philip Larratt-Smith - Por várias razões. Primeiro, a exportação da cultura norte-americana pelo mundo tem sido, frequentemente, vista como inseparável da ordem mundial, na qual os EUA funcionam como o império de fato. Devido à longa história das intervenções norte-americanas na América Latina e o papel fora do comum desempenhado pelas multinacionais americanas, estas tensões são muito aparentes na região. Mas, eu não desconheço que a recepção da obra de Warhol na América Latina tem, frequentemente, adquirido a percepção da indiferença, brutalidade, intimidação e hipocrisia. Em segundo lugar, Warhol foi o primeiro artista a perceber e abordar a forma como a cultura popular e o comportamento político se entrelaçaram nos EUA. Em terceiro, Warhol encarnou e expressou várias dos pressupostos que levaram à construção do império americano: a relação entre desejo, fantasia e consumo, ou mesmo a persistência da morte por trás da essencialmente afirmativa iconografia da cultura pop dos EUA. Quarto, o fato de essa exposição ser apresentada em termos da cultura política americana é, em si, um comentário à recorrente tendência americana em se observar a América Latina por meio de lentes políticas. Finalmente, esse aspecto da obra de Warhol nunca foi explorado em tal profundidade antes e minha ambição é apresentar uma mostra na América do Sul que traz uma nova forma de se observar Warhol.



Folha - A obra de Warhol chegou a ser considerada "realismo capitalista" numa forma marxista de se acusar o sistema capitalista. Você concorda com essa tese?



Larratt-Smith - O rótulo "capitalismo realista" foi criado na então Alemanha Ocidental, e ele foi usado na primeira exibição da obra de Gerhard Richter e Sigmar Polke, e apenas depois se aplicou ao trabalho de Warhol. Eu acredito que ele é exato, mas uma descrição insuficiente do que alcançaram as melhores pinturas de Warhol, pois ele esconde as tensões centrais na estrutura desses trabalhos, que são compostos por uma grande riqueza e complexidade. Ele também serviu às necessidades ideológicas da crítica ansiosa em estabelecer um tipo de falsa equivalência ou simetria entre o capitalismo ocidental e o comunismo do leste; vários desses mesmos críticos eram marxistas que se não eram filiados ao partido comunista estavam engajados em suas ideias. Certamente Warhol nunca deixou de estar atento às vítimas do sistema capitalista, como os afroamericanos sendo atacados pela polícia com cachorros, ou às duas idosas que comeram atum estragado, ou mesmo anônimos suicidas e vítimas de acidente de automóvel. Pense apenas nos retratos de Jackie Kennedy antes e depois do assassinato de seu marido.



Folha - Que componente político na obra de Warhol é central nessa mostra?



Larratt-Smith - No fim de sua vida, Warhol começou a usar camuflagem como um estratagema em sua obra (em "Mr. America" há um maravilho autorretrato camuflado em vermelho, branco e azul, as cores da bandeira dos EUA). Isso mostra não apenas a peculiar e extrema forma de autopromoção e exibicionismo de Warhol por um lado e a radical reticência por outro, mas também a divisão entre ilusão e realidade que caracteriza o projeto do império americano. A camuflagem sugere que as aparências são enganosas, e que existem agendas escondidas. Se os EUA são um império, é um império que pretende não se apresentar com tal. Em meu ensaio no catálogo da mostra, argumento que Warhol era um artista que se travestia a partir do trabalho de outros artistas e da cultura popular e, ao fazer isso, produzia romance e surpreendentes combinações, que alcançam longa duração, assim como o império americano é um império travestido, que tem a pretensão de ser o que não é: um supervisor benevolente do sistema financeiro global, por exemplo, ou o zeloso policial do mundo. Um fora do sistema por sua classe social, orientação sexual e aparência, Warhol desejou, com intensidade patológica, viver o sonho americano e assimilar ele mesmo a complexidade dos mitos e narrativas da América.



Folha - O sarcasmo do Warhol em relação ao mercado de arte foi uma forma de revelar seus mecanismos perversos ou ele realmente só queria saber de dinheiro?



Larratt-Smith - Sempre em Warhol o que parece ser uma questão "ou isso ou aquilo" se torna uma proposição "e". Warhol adorava dinheiro e não via porque um artista não podia ganhar tanto dinheiro quanto um astro de rock, um estilista ou uma atriz de Hollywood. Os retratos encomendados dos anos 1970 certamente parecem mais uma forma cínica de se fazer muito dinheiro e, em minha opinião, não devem ser considerados arte. Assim, a esse respeito, ele foi um verdadeiro proletário, livre da atitude ambivalente e desconfiada da classe média a respeito dos ricos: ele simplesmente queria fazer parte da festa.



Contudo, eu creio que Warhol estava abordando o mercado de arte assim como ele abordou tudo o mais, em particular a mistificação que frequentemente esconde as bases econômicas dos cânones de gosto. Em qualquer caso, ele acreditava na onipotência do dólar como último arbitro para produção de sentido, e o que pode ser mais americano que isso?



Folha - O expressionismo abstrato foi considerado uma arma da Guerra Fria, no texto clássico e Eva Cockcroft. Você acredita que a obra de Warhol também se encaixe sob essa ótica?



Larratt-Smith - Esse é um ponto de vista legítimo, apesar de eu não estar seguro que Warhol não foi tão apropriado pelo Departamento de Estado como o foi o expressionismo abstrato. Como Tom Sokolowski, diretor de Museu Warhol, escreveu em sua introdução no catálogo, existe algo irredutivelmente americano na sensibilidade e na iconografia de Warhol, que o faz mais "local" se comparado à internacional linguagem da abstração. Assim como o mundo se tornou crescentemente americanizado no pós-guerra, foi a obra de Warhol e seu padrão de sucesso que excursionou muito, considerando-se que o expressionismo abstrato foi tido como todo uma nova proposta e não o fim do moderno europeu. Voltando a algo que eu já afirmei antes, de Hollywood à transmissão da chegada do homem à Lua, os EUA construíram uma imagem idealizada de sua própria hegemonia. Seria o sonho americano, incorporado por Warhol em sua vida e expresso em sua arte, apenas a série de imagens de um império travestido?



Folha - E qual a importância da obra de Warhol para o imaginário gay do século 20?



Larratt-Smith - Eu tendo a ver Warhol como uma das figuras-chave na liberação gay nos EUA. Em sua palheta e em seu investimento libidinal de imagens de mulheres glamorosas, seu trabalho registra uma sensibilidade muito gay e como isso é codificado pelos ícones da cultura "mainstream", ele conseguiu falar também para uma audiência massiva. O significado dúbio de seu trabalho "Os homens mais procurados", onde "procurados" significa tanto "buscados pela polícia" assim como "desejados", mostra como ele recondicionou cuidadosamente seus desejos, e como ele jogou, de forma astuta, tanto com os desejos gays como heterossexuais. Seus filmes foram inovadores em seu estilo documental ao retratar atos sexuais (novamente gays e heteros), e a forma descomplicada e naturalista de mostrar homossexuais, drag queens e prostituição masculina. Warhol também vivia fora do armário quando outros artistas ainda tinham medo de se assumir. Ele foi muito corajoso e permanece como símbolo da cultura gay.



Folha - Mesmo não tendo sido bem aceito na cena artística dos anos 1960, Rauschenberg e Jasper Johns, por exemplo, não admiravam seu trabalho, Warhol se tornou o mais reconhecido artista americano do século 20. Por que isso foi possível?



Larratt-Smith - Muitos outros artistas o viram de forma suspeita porque ele vinha do mundo da ilustração comercial e não se desculpava por isso, e ele era muito "viado", o que significa muito extrovertido e muito obviamente gay. A turma dos expressionistas abstratos o odiava, particularmente De Kooning, que uma vez o chamou de "matador do belo", em uma festa, quando se encontraram. Apesar de tudo isso, Warhol se tornou no mais importante e mais influente artista americano da história. Isso tem a ver com o amplo espectro de sua atividade: suas inovações formais na pintura e no cinema, seus experimentos na música rock, multimídia, revistas e moda, e na forma como ele se reinventou de forma constante. Warhol quebrou o sistema de produção de trabalhos com obras vanguardistas por populares e com uma audiência massiva, itens de troca mercantil por objetos com requintada excelência visual, jogadas conceituais e obras primas formais. O mundo da arte de hoje é realmente o mundo de Warhol.



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