sexta-feira, 14 de maio de 2010

ARTE Inflacionada.


Nova York, setembro de 2008: estoura a bolha do crédito americano. O anúncio da falência da empresa financeira Lehman Brothers culminou numa recessão econômica mundial. Londres, setembro de 2008: por US$ 15 milhões é vendida a obra Bezerro de Ouro, do britânico Damien Hirst, na casa de leilões Sotheby’s. A peça expõe um animal morto e mantido sob formol adornado com chifres e patas de ouro 18 quilates. O leilão foi assistido por milhares de visitantes e massivamente comentado, fechando em US$ 198 milhões em apenas dois dias. Um sucesso muito além das expectativas: quebrou o recorde de vendas para um leilão de um único artista. O momento marcou o início de uma crise econômica global e também, profundamente, o mercado da arte contemporânea, levantando a questão: qual é o valor da arte?




No dicionário, arte é definida como “a expressão ou a aplicação de habilidade criativa e imaginação humana, tipicamente em uma forma visual, tais como pintura ou escultura, produzindo trabalhos para serem apreciados principalmente por sua beleza e poder emocional”. Uma explicação aberta a diversas interpretações.



Muitas vezes, ao visitarmos exposições, nos perguntamos se as obras seriam mesmo dignas de apreciação por sua beleza. Por vezes, fica difícil saber o que é arte. A compreensão de uma obra, por seu poder estético ou emocional, está muito ligada à interpretação individual, que pode ser influenciada por preferências pessoais, pela crítica ou pela mídia em geral. Entretanto, sua valorização monetária tem razões abstratas e coloca cada vez mais em questão o significado das manifestações artísticas. Após o leilão de Hirst, o respeitado jornal britânico The Guardian publicou crítica em que afirmava: “Damien Hirst é uma marca, porque a forma de arte do século 21 é o marketing”.



O mercado viu preços astronômicos serem alcançados desde 2006. Em seu ápice, entre 2007 e 2008, compradores pagaram US$ 19,3 milhões pela Cabine de pílulas de Hirst ou telas rasgadas como Concetto Spaziale, la Fine di Dio, de Lúcio Fontana; US$ 23,6 milhões por um enorme coração brilhante com laços dourados do americano Jeff Koons; US$ 72 milhões por uma impressão em tela de dois carros em colisão de Andy Warhol; US$ 73 milhões pela obra simplista White Center de Mark Rothko e US$ 86 milhões pelo Triptych de Francis Bacon. Mas o recorde pago por uma obra de arte foi para Jackson Pollock com o trabalho n. º 5, 1948, vendido por US$ 140 milhões em 2006.



Estes artistas foram extremamente valorizados, alguns se tornaram mitos, seja por suas habilidades artísticas, seja obras polêmicas, alto investimento financeiro ou grande atenção da mídia. Premiações britânicas como o Turner e programas de TV também impulsionaram o valor de suas produções. Porém, os elevados preços podem acabar, em sentido inverso, destruindo seus significados, reduzindo-os a símbolos do excesso.



A valorização de obras de arte segue algumas regras em que beleza ou emoção parecem não ser o mais importante. “E talento não é requisito para valorização, infelizmente”, comentou o artista plástico Bernardo Pitanguy. Sobre o valor de uma obra, completou: “Alguns trabalhos chegam a preços milionários devido a preferência de um define grupo disposto a comprá-las. O que determina um objeto como obra de arte é o público”. Outra regra lembrada por Pitanguy é sobre o valor que o tempo tem para a arte. “Não se pagam altos valores por obras novas, geralmente elas têm um tempo de vida e uma história até chegarem a ser valorizadas.”



JOVENS ARTISTAS BRITÂNICOS

A geração de jovens artistas britânicos megavalorizados apareceu no início dos anos 1990, sacudindo o mundo com escândalos. Artistas como Tracey Emin, Sarah Lucas ou Marcus Harvey vieram para desafiar o conceito de arte e levantar a questão sobre o significado de expressões artísticas. Obras como Minha cama de Emin, que traz uma cama de casal desarrumada e rodeada por camisinhas usadas, lubrificantes e cinzas de cigarro, ou a tábua com dois ovos fritos e um kebab, de Lucas, que causou controvérsia quanto à nudez feminina, fazem este questionamento.



Entre os artistas desta geração, nenhum foi mais comentado que o homem que apresentou ao mundo um tubarão preservado no formol em uma vitrine como nova forma de arte: Hirst, 44 anos, ficou conhecido por trabalhos que tinham a morte como tema central. Obras utilizando outros bichos no formol (vaca, ovelha e zebra) marcaram época. Em 2007, o artista apresentou uma caveira coberta com diamantes, que custou US$ 21 milhões para ser executada. O valor artístico de sua produção sempre foi muito questionado, assim como as altas cifras alcançadas pela venda de seus trabalhos. Apontado na lista anual do jornal inglês The Sunday Times dedicada aos mais endinheirados, sem dúvida Hirst é o artista britânico mais rico da atualidade, com fortuna estimada em US$ 330 milhões. “Sempre achei que dinheiro é uma ferramenta fantástica para fazer as pessoas levarem você a sério. Assim como os idiomas são algo esplêndido, o dinheiro é como uma chave. Uma chave para o mundo”, afirmou Hirst. “Algo que adorei depois do leilão (em 2008) foi andar no centro comercial de Londres e ser reconhecido por homens de negócios. Eu nunca tive isso antes”.



Mas qual o segredo de tanto sucesso? Os bastidores do prestígio da geração de jovens artistas britânicos ajuda a entender a questão. O milionário colecionador árabe Charles Saatchi, dono de uma galeria de arte em Londres que leva seu sobrenome, foi forte patrocinador desta geração. Saatchi conheceu Hirst durante a modesta exposição Freeze (1991) e encantou-se com a primeira instalação “animal” do artista, em que larvas e moscas rodeavam a cabeça de uma vaca em decomposição dentro de um enorme contêiner de vidro. Ele comprou a obra e virou o principal colecionar de Hirst, além de patrocinador do que veio a ser chamado mais à frente de YBA [sigla em inglês para jovens artistas britânicos]. As compras de Saatchi influenciaram fortemente os altos e baixos do mercado da arte inglesa. Havia grande visibilidade dos trabalhos pelos quais ele se interessasse, motivo de disparo de preços e forte especulação. Em entrevista recente, o homem responsável pela inflação de preços no mercado da arte contemporânea nos últimos dez anos disse que nunca pensa no mercado antes de comprar novas obras e aceita ser o responsável pela especulação de preços. “Artistas precisam de muitos colecionadores, de todos os tipos, comprando suas obras de arte”, comentou. “Às vezes, você tem que comprar arte que não tem valor nenhum para ninguém, mas sim para você, porque você gosta e acredita na obra.”



Hans Ulrich Obrist, curador da charmosa Galeria Serpentine, em Londres, e eleito em 2009 a pessoa mais influente no mundo da arte pela revista Art Review, acredita que os grandes artistas sempre mudam o que se espera da arte. “Há o famoso fator ‘surpreenda-me’. A palavra ‘contemporâneo’ vem do latim ‘contemporanius’, que significa ‘com o tempo’. O que fica sugerido é uma pluralidade de temporalidades que atravessam o espaço e continuam até hoje em escala global.” Obrist alertou também sobre o perigo que existe para o que chama de “homogeneização de práticas”, onde a diferença desaparece. “Todo o mundo fazendo o mesmo leva a um empobrecimento. E, de alguma forma, trata-se como produzir a diferença. É por isso que não pode haver uma receita que diga: ‘Tem que ser dessa maneira. Um artista tem que ser assim’. É algo que tem realmente a ver com encontrar seu próprio caminho.” O curador afirma que estamos vivendo uma grande transformação no mundo da arte. “É possível ver ao longo do século 20, havia uma corrida para ser o centro absoluto do mundo da arte, com Paris, Nova York e Londres disputando, mas agora vemos isso na China, na Índia e em lugares como o Brasil. Existe uma verdadeira polifonia. “É uma mudança importante no mundo da arte”, celebra o suíço.









PREÇO E VALOR

O que torna um objeto uma obra de arte? A resposta está na história recente.



A Pop Art veio com a famosa lata de sopa Campbell’s de Andy Warhol e uma geração de artistas, como Roy Lichtenstein, que nos anos 1950 criava baseada em material de publicidade, quadrinhos e ideias dominantes na cultura de massa - uma reação contrária ao expressionismo abstrato da época. Era pop porque estava no imaginário coletivo. Era arte porque supostamente combinada com outras ideias, levava ao conceito de fine art.



Warhol foi muito valorizado em vida. Ele desafiava a arte pintando produtos de marcas americanas, notas de dólares e celebridades. Sua técnica de impressão em tela trouxe inovação e marcou um estilo. O homem que fez da arte dinheiro assumia sua inclinação capitalista publicamente em citações marcantes como: “Fazer dinheiro é arte; trabalhar é arte; fazer bons negócios é a melhor arte”. Ou então: “Uma senhora amiga minha me perguntou: ‘O que você mais ama? ’ Foi assim que comecei a pintar dinheiro”.



Outros artistas tornaram-se conhecidos por escandalizar o mundo da arte e trazer ideias absurdas como questionamentos, consideradas anti-arte. Com o trabalho Fountain, o francês Marcel Duchamp desafiava a criatividade individual e redefinia arte ao apresentar um mictório como obra artística em 1917, criando o conceito intitulado Readymades (Coisas prontas). Apesar de rejeitado na época, o mictório é um marco, grande atração do Centro de Arte Moderna George Pompidou, em Paris. Em 2009, o Pompidou apresentou, com grande importância, a mostra Vazios. A exposição, uma retrospectiva de 51 anos de exibições, trazia cinco salas completamente vazias. As paredes eram brancas e os pisos, vazios. A iluminação foi arranjada tão cuidadosamente como para qualquer outra exposição temporária. Os guardas olhavam com desconfiança para se certificar de que os visitantes não tocassem em nada - a diferença é que não havia nada para ser tocado. Nove artistas foram responsáveis pela exibição do nada: um passeio de reflexão e alta carga de interpretação. Os visitantes se olhavam sem compreender, entre sorrisos amarelos. O catálogo de 500 páginas era vendido por US$ 50 e o ingresso, em torno de US$ 13. A ideia já havia sido experimentada na Bienal Internacional de São Paulo e, anos antes, no museu Tate Britain, em Londres.



TALENTO BRASILEIRO

Helio Oiticica, José Damasceno, Lygia Clark, Lygia Pape, Vik Muniz, Rivane Neuenschwander e Beatriz Milhazes são alguns nomes de artistas contemporâneos brasileiros reconhecidos internacionalmente. O interesse pelas artes do país pode também estar no preço. “Quando comparados a nomes internacionais, são bastante razoáveis", afirmou Isabel Mignoni, diretora da Galeria Elvira Gonzalez, de Madri, uma das mais prestigiadas da Espanha. A galeria exibiu uma mostra individual do carioca Waltércio Caldas em que as esculturas mais caras estavam na faixa dos US$ 73 mil.











Beatriz Milhazes, também carioca, é reconhecida pelo uso de cores vibrantes e sedutoras, muito influenciada pela natureza e o carnaval do Rio de Janeiro. Seus quadros foram exibidos em museus de Nova York e Paris, e um de seus trabalhos estará no próximo leilão da Christie’s, neste mês, com valor inicial de US$ 200 mil.



Lygia Pape, falecida em 2004, foi citada por Hans Olbrist como exemplo de talento brasileiro na arte contemporânea. Ao lado dos colegas Helio Oiticica e Lygia Clark, foi uma das fundadoras dos movimentos Concretismo e Neoconcretismo, que visava expandir as dimensões da arte. A escultura geométrica de alumínio Bicho (1960) esteve em leilão na Inglaterra mês passado pelo valor de US$ 275 mil.



Outro artista de sucesso e exemplo de criatividade é Vik Muniz, que desafia conceitos usando material comestível. Assim já fez duas réplicas de Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, usando geleia e manteiga de amendoim. Também trabalhou com açúcar, fios, arame e xarope de chocolate para uma recriação da Última Ceia, de Da Vinci. Ele registra seus trabalhos em fotografia e apresenta as imagens em suas exposições. Vik teve obras exibidas no museu Victoria & Albert, em Londres, e no MOMA, em Nova York, além de outros renomados museus e galerias.



ESTRELA DA MORTE

Recentemente, Damien Hirst citou Van Gogh como talvez o exemplo mais pungente de um artista pouco apreciado em vida e cuja fama e valorização surgiram somente muitos anos após sua morte. O holandês ficaria orgulhoso ao ver as filas gigantescas na porta da Academia Real de Artes, em Londres, para a exposição que revela sua correspondência. “Sempre foi meu desejo pintar para aqueles que não sabem o lado artístico da pintura”, revelou Van Gogh em uma de suas cartas. Entre autorretratos, paisagens, girassóis e ciprestes, ele tem os trabalhos mais caros e famosos do mundo na atualidade.



Outros exemplos de sucesso póstumo são os britânicos William Hogarth, Thomas Gainsborough e Joseph Mallord William Turner, este último famoso por suas pinturas de paisagens e marinhas. Todos tiveram muito poucos admiradores em vida e foram duramente criticados e condenados. Sobre o valor da morte para o sucesso, Warhol dizia: “A morte significa muito dinheiro, querido. A morte pode realmente fazer você virar uma estrela”.













LIQUIDAÇÃO

De acordo com o anuário publicado pela Sotheby’s em março deste ano, 2009 trouxe queda de 30% nas vendas de obras de arte. Um novo efeito Damien Hirst parece improvável. Desde o famoso leilão em 2008, Hirst não tem vendido seus trabalhos com a mesma força e muitos preços caíram pela metade em leilões mundo afora.



Durante os primeiros seis meses do ano passado, nenhum trabalho foi vendido por mais de US$ 10 milhões. O preço mais alto alcançado foi de US$ 7,9 milhões, em maio, por uma pintura de David Hockney (1966), Beverly Hills Housewife, negociado na Christie's.



“Na época da crise, as pessoas não sabiam o que a arte ou eles mesmos valiam", explicou Francis Outred, diretor europeu do Departamento de Arte Contemporânea da Christie's. "Os compradores estavam trocando olhares na sala de vendas do leilão e esperando que alguém desse o lance."



Uma tela do pintor britânico Jenny Saville, conhecido por seus retratos de pessoas nuas um pouco acima do peso, foi colocada à venda pela Christie's na Feira de Arte de Maastricht, em 2007, por US$ 1,4 milhão. Acabou leiloada em Londres em fevereiro de 2009 por metade desse valor. Em abril de 2008, uma pintura do artista chinês Zhang Xiaogang, Bloodline (Big Family) Número 3, foi vendida por US$ 6,1 milhões, um recorde para um artista chinês contemporâneo. Mas, em novembro do mesmo ano, outra pintura dessa série alcançou “apenas” US$ 3,4 milhões.



200 notas de um dólar, de Andy Warhol, tornou-se a obra contemporânea mais cara vendida em 2009: US$ 43,7 milhões. "Foi o acontecimento mais importante da temporada", comentou Tobias Meyer, diretor mundial do Departamento de Arte Contemporânea da Sotheby’s. "Até então, nada era negociado acima de 20 milhões de dólares no mercado.”



O boom da arte contemporânea estava associado ao estouro da oferta de crédito. Assim como os valores do sistema econômico foram abalados com a crise, também foram as artes nesse período. A recessão não só refletiu nos preços, mas na maneira como a crítica define suas preferências. Na lista dos 100 nomes mais poderosos do mundo da arte, publicada anualmente pela revista Art Review, Damien Hirst tombou do topo para o 48º lugar. O artaholic Charles Saatchi, hoje muito associado com a arte de dez anos atrás, caiu do 14º para 72º. ©











O LIXO DA ARTE



Um experimento provocante do artista Michael Landy chegou ao fim mês passado em Londres: O lixo da arte. Durante seis semanas ele convidou pessoas a jogarem fora trabalhos colecionados, usando uma enorme vitrine transparente de 2 metros. A curiosidade era saber do que o público estaria disposto a se livrar. Mais de mil peças foram descartadas por mais de 400 pessoas. Era a celebração do fracasso artístico. Landy, que faz parte da geração de jovens artistas britânicos (YBA), iniciou o experimento rejeitando o que não o satisfazia, entre eles um gigante quadro de Damien Hirst, uma caveira resplandecente que parecia estar sorrindo à destruição acumulada em torno dela. Havia algo de bonito em ver a maneira como aquelas obras voavam em queda livre se espatifando em pedaços. Era a aniquilação da arte.



Estudantes, pessoas comuns e galerias deram sua contribuição enviando artes consideradas inúteis e sem valor. No fim do experimento, todo o material foi enviado para reciclagem e a maior parte doada para estúdios e escolas de arte.



Apesar de ter acumulado muita coisa, poucas obras mostraram-se profundas o bastante para fazer o experimento bem sucedido. “Não acho que poderia fracassar nunca”, comentou Landy. “Não importa o número de obras de arte na lixeira. Esses trabalhos descartados podem ter sido fracassos individuais, mas acho que todos juntos são um grande sucesso.” Landy ficou famoso por seu gosto pela destruição. Em Break Down (2001), ocupou uma área vazia de uma loja de departamentos na movimentada Oxford Street de Londres e destruiu sistematicamente mais de sete mil objetos pessoais, incluindo seu carro e passaporte.

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