quarta-feira, 30 de setembro de 2009

papa nem é pop, mas quer a arte



O papa nem é pop, mas quer a arte No dia 21 de novembro, Bento XVI tem encontro marcado com 500 artistas do mundo inteiro, de olho no 'processo criativo'
Sérgio Augusto
Será num sábado, no Dia de São Gelásio. E no mais valioso espaço artístico da Igreja, a Capela Sistina. Sob o afresco de Leonardo Da Vinci, Bento XVI terá um encontro com cerca de 500 artistas do mundo inteiro. O Vaticano não esconde o jogo: a Igreja quer melhorar suas relações com o mundo da arte contemporânea, aparar arestas, eliminar tensões e, na medida do possível, "participar mais ativamente do processo criativo" - razão pela qual marcará presença na Bienal de Veneza de 2011.
Por razões protocolares, a lista completa dos convidados de Bento XVI ainda não foi divulgada. O diretor de teatro de vanguarda americano Bob Wilson, o compositor de cinema Ennio Morricone e o cineasta Giuseppe Tornatore já aceitaram o convite. Seria imprudente apostar na presença dos escritores Dan Brown (O Código Da Vinci) e Philip Pullman (A Bússola de Ouro), e, mais ainda, na do escultor milanês Paolo Schmidlin, aquele que há dois anos esculpiu Bento XVI como um transexual chamado "Miss Kitty". O papa abriu-se ao diálogo, não fez restrições religiosas e ideológicas (notórios ateus integrariam a lista), mas para tudo há um limite. O artista plástico alemão Martin Kippenberger, por exemplo, dificilmente seria convidado.
Foi Kippenberger, morto em 1997, quem pregou aquele blasfemo sapo na cruz, que tanto horror causou a Bento XVI quando exposto num museu de Bolzano, no ano passado. Sabina Guzzanti? Tem mais chances, mas é de se supor que se recusaria a confraternizar com o sumo pontífice. A popular comediante italiana tornou-se a maior inimiga pública do atual pontificado. Um ano atrás, durante uma manifestação em Roma contra o conservadorismo da Igreja, mandou o papa para o inferno. Desde Dante nenhuma figura pública italiana condenava um papa ao caldeirão do diabo. Mas o Bonifácio 8 º de Dante ao menos não era atormentado por capetas homossexuais, como na praga que Guzzanti rogou para Bento XVI.
Oficialmente, a data do encontro (21 de novembro) foi agendada meio ao acaso. Não deve, portanto, ser vista como uma homenagem sibilina aos 155 anos do papa Bento 15. A Voltaire, outro aniversariante do dia, muito menos, embora, à luz dos últimos acontecimentos e do atual projeto de distenção artística do Vaticano, talvez fizesse sentido homenageá-lo. Se até Oscar Wilde já foi admitido no rebanho da Igreja, por que não Voltaire?
Porque Voltaire morreu sem aceitar o Vaticano, ao contrário de Wilde, "o homossexual dissoluto" na pleonástica definição de um bispo, que no leito de morte se converteu ao catolicismo. Ninguém podia imaginar que um dia o Vaticano fosse incorporá-lo ao seu rebanho. Logo ele, que além de dissoluto passou boa parte da vida maldizendo o papa e a Igreja católica. De origem protestante, abominava todas as crenças (a verdade religiosa, dizia, nada mais é que a opinião que sobreviveu), e se afinal encantou-se pelo catolicismo foi por considerá-lo uma religião exclusiva para "santos e pecadores". Para as "pessoas respeitáveis", acrescentou, "a Igreja Anglicana serve".
Satisfeito entre os pecadores, nunca, na vida plena, Wilde se esforçou para rever sua posição sobre o Vaticano. Dez anos antes de morrer ainda considerava o papa "um déspota que tiraniza as almas", uma criatura a serviço do mal. "É preferível para o artista não viver com os papas", aconselhou quase ao final do ensaio A Alma do Homem Sob o Socialismo. Claro que nenhuma dessas afirmações entrou na antologia de tiradas do escritor, organizada em 2007 pelo padre Leonardo Sapienza, chefe do protocolo do Vaticano, mas ela marcou o início da reabilitação de Wilde pela Igreja.
Recentemente o jornal oficioso do Vaticano, L"Osservatore Romano, publicou um artigo de Paolo Giuliano pondo Wilde nas alturas. "Ele foi muito mais que "um esteta e um amante do efêmero", muito mais que um inconformista que adorava chocar a sociedade conservadora da Inglaterra vitoriana", escreveu Giuliano. Wilde, prosseguiu, "foi uma das personalidades do século 19 que analisaram com mais lucidez o mundo moderno em todos os seus aspectos, dos mais perturbadores aos mais positivos", sempre a se perguntar "sobre o que era justo e o que era errado, o que era verdadeiro e o que era falso".
Abril ou maio teriam sido meses mais adequados para o encontro de Bento XVI com os artistas, já que o evento é um tributo ao décimo aniversário da Carta aos Artistas, divulgada por João Paulo 2º em 4 de abril de 1999, e aos 45 anos de uma histórica confabulação de Paulo 6º com um grupo de artistas, também na Capela Sistina, em 7 de maio de 1964. Em sua epístola aos artistas, João Paulo 2º alertava para o bem que a arte faz à Igreja, necessidade de que nunca descurou Paulo 6º, ligado na arte contemporânea e mentor da ala moderna do Museu do Vaticano.
Ele próprio artista, do piano, Bento XVI é um tradicionalista assumido, inclusive, dizem, no gosto musical. Ele abriu espaço para a missa em latim, estimulou a presença, nos templos, do canto gregoriano e da música renascentista, e reforçou todos os dogmas do catolicismo. Seu estilo de vestir (mitras, mozetas púrpuras, casulas muito bordadas) é puro vintage, remonta aos séculos 15 e 16. Tais escolhas trazem o seguinte recado: a Igreja não muda, nem nas vestimentas. Sua próxima "volta ao passado" não se destina, felizmente, à Idade Média, mas à Renascença.
Conforme salientou monsenhor Guido Marini, mestre das celebrações litúrgicas pontificiais, "o santo padre apenas deseja que os católicos vejam o amplo espectro de sua tradição cultural". Amplidão que nem o mais ímpio dos ateus é capaz de negar ou, mesmo, subestimar.
Faz pouco tempo o filósofo alemão Jürgen Habermas, de cujo ateísmo ninguém duvida, reconheceu publicamente o cristianismo como "a referência da civilização ocidental, o supremo guardião da liberdade, da consciência, dos direitos humanos e da democracia", passando por cima de seus pecados remotos e recentes. Camille Paglia, pagã juramentada, feroz inimiga do "moralismo e da pudicícia das crenças organizadas", também já se manifestou em favor da recuperação da religião como fonte de inspiração artística. Há dois anos, num ensaio sobre o empobrecimento cultural da América, recomendou aos artistas maior atenção ao "complexo sistema simbólico" das religiões e menor apego ao materialismo narcisístico da sociedade secularizada, herança maldita da iconoclastia puritana.
Eis aí dois intelectuais que mereciam ter sido convidados para o encontro de 21 de novembro. Se é que não foram.

domingo, 27 de setembro de 2009





A aventura do romance
Em cinco volumes e com colaboradores do porte de Vargas Llosa eUmberto Eco, estudo organizado pelo italiano Franco Moretti examina ogênero que melhor traduz a ficção, no mais ambicioso trabalho járealizado até hoje sobre o tema
Antonio Gonçalves FilhoTamanho
A AQuando o professor italiano de literatura Franco Moretti começou aorganizar o primeiro dos cinco volumes que compõem a coleção ORomance, cujo primeiro (A Cultura do Romance) está sendo lançado pelaCosac Naify (1.120 págs., tradução de Denise Bottman, R$ 130), sabiaque contava para o monumental projeto com estudiosos nãonecessariamente alinhados com sua visão - a de que o modelointerpretativo de análise literária isolada de obras (o chamado "closereading") está ultrapassado. Pluralista, Moretti defende um novomodelo analítico, transformando a crítica num verdadeiro laboratório,em que o cientista literário terá de dominar várias disciplinas - daantropologia à geografia, passando pela biologia - para evitar o víciocanônico de um Harold Bloom. Sobre ele e sua coleção, cujos próximosvolumes serão lançados um a cada semestre, Moretti, cujo sobrenometrai seu parentesco com o irmão cineasta Nanni Moretti (O Quarto doFilho), falou pelo telefone com o Estado, destacando a participação dedois dos seus colaboradores brasileiros, Roberto Schwarz e Luiz CostaLima.
São nomes estelares numa constelação de críticos e escritores entre os178 colaboradores de 99 instituições do mundo inteiro. A listaimpressiona: fazem parte do comitê científico que supervisiona acoleção o peruano Mario Vargas Llosa, colaborador do Estado, e ocrítico literário norte-americano Fredric Jameson. Entre os outroscolaboradores, destacam-se o teórico e romancista italiano UmbertoEco, o poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger, o antropólogoinglês Jack Goody, o escritor italiano Claudio Magris e a críticaargentina Beatriz Sarlo. Talvez seja o suficiente para convencer omais cético dos leitores sobre a proposta de fazer dessa uma obra dereferência para a atual e as próximas gerações de estudiosos.
Originalmente publicada em italiano pela Einaudi, entre 2001 e 2003, acoleção teve uma versão reduzida (dois volumes) lançada na Inglaterrahá três anos e foi saudada pelo crítico David Trotter, do LondonReview of Books, como um marco entre os estudos literários. Comjustiça. O gênero romance é dissecado no "microscópio" de Moretti nãosó por especialistas em literatura como por antropólogos, sociólogos efilósofos. Num mundo globalizado, que ignora peculiaridades locais eem que cada vez mais fica difícil distinguir entre literaturafrancesa, angolana ou brasileira, Moretti propõe um seminário decrítica menos parecido com um simpósio da academia platônica e maispróximo de seu laboratório, em que bancos da dados críticos possamsuprir as necessidades teóricas dos estudiosos.
On 27 set, 04:53, Jimmy Avila <jimmy...@gmail.com> wrote:> E com grande emoçao que posto eesa noticia. Depois de mais de 10 anos> finalmente a obra maxima sobre o " Romance" é traduzida pela cosac!>> Coletânea de ensaios sobre o romance, organizada por Franco Moretti, é> lançada no Brasil>> RAFAEL CARIELLO> DA REPORTAGEM LOCAL>> A obra de maior ambição do italiano Franco Moretti, professor de> literatura na Universidade Stanford, nos EUA, ele próprio um dos mais> ambiciosos e ousados críticos literários em atividade, começa a ser> editada no Brasil.> O primeiro dos cinco volumes de "O Romance" ("A Cultura do Romance",> ed. Cosac Naify, trad. Denise Bottmann, 1.120 páginas, R$ 130) chega> às livrarias. Moretti é o organizador dessa coletânea de ensaios de> especialistas de vários países -nomes como Fredric Jameson, Umberto> Eco, Mario Vargas Llosa, Beatriz Sarlo e Roberto Schwarz, entre> outros- que se debruçam sobre a história, em todas as partes do globo,> do gênero literário que dá nome à empreitada.> Na entrevista a seguir, ele fala sobre a versão ocidental do romance,> seu momento de ascensão e definição formal no século 18 e a tarefa do> gênero de apresentar "soluções imaginárias para as contradições reais"> e irreconciliáveis da modernidade.>> FOLHA - Em um artigo recente, o sr. diz que algumas características do> gênero romance, no Ocidente, têm a ver com o padrão de consumo> específico que passou a marcar essas sociedades a partir do século 18.> Poderia explicar?> FRANCO MORETTI - No século 18 houve certamente um aumento> significativo do consumo de "luxos cotidianos", como tecidos,> relógios, móveis, café etc. Também houve um aumento no consumo de> livros, e de romances. Geralmente os historiadores literários buscam> uma explicação para esse aumento de vendas de livros na própria> estrutura dos romances -que seriam mais bem escritos, mais realistas,> mais interessantes para os leitores, e por aí vai.> Procurei uma explicação alternativa para o fato de, de repente, os> romances venderem mais. Defendi que a razão deve ser semelhante àquela> que levou, no mesmo período, a uma produção e a um consumo maior de> relógios, por exemplo.> Um desenvolvimento geral de bem-estar material e de riqueza,> provocando um modo diferente de se relacionar com os romances, que> passam a ser objeto de um tipo de leitura mais distraída.>> FOLHA - O sr. compara o crescimento no número de pessoas capazes de> ler, que teria dobrado, e o crescimento na venda ou no aluguel de> romances, que teria aumentado de forma muito maior...> MORETTI - Sim, isso indica que as pessoas estavam lendo um número> maior de obras, e que essa leitura era feita de uma outra maneira;> elas as liam de forma mais desatenta.>> FOLHA - E isso implica uma nova forma estética para o romance?> MORETTI - Sim. Que relação exata há entre uma coisa e outra, tenho> dúvidas se saberia dizer. De todo modo, os romances passaram a ter que> ser escritos de forma a capturar esse novo tipo de atenção. Por outro> lado, isso não determina um tipo específico de estilo ou de trama. O> que se percebe é que os romances não são tomados como uma arte séria,> como passaram a ser bem mais tarde, já no século 20.>> FOLHA - O sr. faz um contraste com a China na mesma época.> MORETTI - Sim, na China os romances tinham uma estrutura narrativa e> estética muito mais complexa, e isso impossibilitava o tipo de leitura> "desatenta" que se tornou tão importante no Ocidente.>> FOLHA - O sr. chama a atenção para o fato de muitos romances serem, no> fundo, uma história de aventura. Alguém vai para algum lugar novo,> inexplorado, tentar algo que não havia sido feito antes etc. E diz que> isso termina sendo, de certa forma, uma característica "arcaica" do> romance, já que o protótipo dessas aventuras seria o cavaleiro> medieval. Qual é a razão, a seu ver, da força desse arcaísmo?> MORETTI - A maioria dos gêneros mais populares dos últimos 200 anos é> uma variação da história de aventura. Isso vale para a ficção> científica, para as histórias de detetive etc. Isso parece ser um> fato. Mas como se deu isso? Havia, primeiro, um enorme reservatório de> histórias desse tipo, que foram escritas ao longo de séculos e> reutilizadas nos romances.> Mas a verdadeira questão é: por que essas antigas histórias> permaneceram tão vivas, tão importantes na modernidade? Provavelmente> a resposta é parecida com aquela que podemos dar a outras questões> próprias à modernidade, como, por exemplo: por que o poder patriarcal> se manteve tão forte sob o capitalismo, na sociedade burguesa?> O capitalismo -e a modernidade- sempre fez uso, adaptou ou cooptou> formas preexistentes de poder simbólico ou real. Isso vale com a> monarquia, com o patriarcalismo, com a escravidão. Penso que algo> semelhante ocorreu no imaginário ocidental com as histórias de> aventura e o romance. Antigas alianças desaparecem muito lentamente,> se de fato chegam a desaparecer.>> FOLHA - O sr. diz que o próprio fato de a trama aventuresca ser> arcaica serve a um propósito...> MORETTI - Ela recebe uma função a cumprir. Especialmente na> representação da guerra, creio, que é um aspecto fundamental do> imaginário de aventura e do capitalismo. O que acontece quando a> sociedade capitalista moderna tem que ir à guerra? Ela tem que ter uma> cultura da guerra, e o capitalismo moderno, enquanto tal, não dispõe> dessa cultura específica. Ele a herdou de outras formações sociais. A> aventura é uma realização simbólica, idealizada da guerra.> Então, a razão pela qual temos aventura no romance moderno é a mesma> por que temos guerras no capitalismo. Sempre se disse que o comércio> substituiria a guerra, e que, em vez de nos matarmos uns aos outros,> trocaríamos produtos. Isso, claro, nunca aconteceu.>> FOLHA - Por falar em guerra, em um outro livro, o sr. diz que o> romance cumpre a função de nos consolar com compromissos, ajustes> possíveis, em meio a uma época de conflitos incessantes e inevitáveis.> Como a ideia de aventura se reconcilia com essa, de "consolo"?> MORETTI - Ainda penso na literatura como uma forma de "compromisso",> de ajuste simbólico possível, de "solução" para os conflitos de uma> época. Creio que, de fato, os romances permitem às pessoas se sentirem> menos desconfortáveis em meio a esses seus conflitos.> Há esta fórmula de Lévi-Strauss para os mitos: soluções imaginárias> para contradições reais. Creio que isso explica o que acontece com os> romances e o modo como, ao longo do tempo, algumas obras são> selecionadas pelos leitores em detrimento de outras. Há contradições> (sociais, econômicas) que são mais importantes e soluções (nas obras)> que parecem mais plausíveis.> O romance policial, por exemplo, tem muito a ver com o antigo mundo de> aventura -há o desconhecido, há ganância, mistérios-, mas a estrutura> é reapresentada de forma completamente racionalizada. É um gênero de> um mundo de físicos, químicos, advogados, do século 19, da época> vitoriana. É claramente um compromisso, um ajuste entre a antiga> lógica das histórias de aventura e a nova lógica de um mundo racional> e cientificista.--~--~---------~--~----~------------~-------~--~----~

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Bob Wilsom volta ao Brasil com texto de Muller

O encenador americano Bob Wilson sacudiu o Brasil nos anos 70 com um teatro que desprezava o texto. No mês em que ele volta ao país, a atriz Maria Alice Vergueiro lembra do impacto causado por sua primeira vinda
Por Maria Alice Verqueiro

AAA


Isabelle Huppert e Ariel García Valdés em cena de Quartett, que Bob Wilson traz ao país. Em seu teatro, os atores não eram importantes. Como será agora?

Com texto do dramaturgo alemão Heiner Müller (1929-1995) e atuação da francesa Isabelle Huppert, Quartett marca o retorno de Bob Wilson aos palcos brasileiros. Trinta e cinco anos atrás, o diretor americano promoveu um acontecimento no Teatro Municipal de São Paulo com as 12 horas de apresentação de A Vida e a Época de Joseph Stalin, durante o Festival Internacional de São Paulo. Em pleno regime militar, o nome do ditador soviético teve de ser substituído por "Dave Clark", porque a censura achou que ali tinha coisa. O que havia de subversivo, contudo, estava na encenação, que incluía atores imóveis, e na relação anárquica com a plateia — os espectadores tinham a liberdade de, por exemplo, entrar e sair a qualquer momento.

Entre as testemunhas desse frisson estava a atriz Maria Alice Vergueiro. Naquele ano de 1974, Maria Alice era integrante do Teatro Oficina. A atriz escreve sobre o impacto dessa apresentação num país bem mais provinciano do que hoje, sacudido pela contracultura e os movimentos artísticos de vanguarda — e também sobre sua expectativa em relação a Quartett.

Eu tinha 39 anos. Era uma época muita boa, viva, forte — mas complicada. Eu tinha terminado de atuar na peça Gracias, Señor (1972), o José Celso Martinez Corrêa tinha sido preso e estava exilado em Portugal, e o grupo que ele liderava — e do qual eu fazia parte — morava no Teatro Oficina, que estava uma decadência total. No Brasil, vivíamos em plena ditadura. Nesse contexto, a vinda do Bob Wilson foi um baque de modernidade. Com a contracultura em alta, questionava-se o tradicional, o racional e o naturalismo dentro das artes. Era um teatro diferente de tudo, um teatro que reforçava a consciência do corpo, que levava as artes plásticas e a dança para o palco. A intenção era que o espectador tivesse ideias próprias, não se limitando ao que o artista queria passar.

Nessa época, o Oficina já tinha rompido com o naturalismo. A discussão no teatro era sobre o uso da palavra, e Bob Wilson era visto como o homem que brigava com a palavra. Nas suas peças, o ator quase fazia parte do cenário — e o visual era central para ele. Nessa época, ele tinha 33 anos. Agora está com 68 e tem dado mais valor ao texto. Está lidando com Heiner Müller, com Samuel Beckett, e tudo isso é o teatro da palavra.

Apesar disso, ele usa o texto de outra maneira, apenas certos trechos para instigar o espectador, não convencer ou influenciar. Sobre o Bob Wilson, o Zé Celso já disse: "É um grande artista que recebe rios de dinheiro para fazer as pessoas dormirem no teatro". Mas, para o diretor americano, dormir não é necessariamente uma coisa ofensiva — é o relaxamento, pois ao dormir você sonha, e sonhar é receber o espetáculo por outra via.

Por isso, quando A Vida e a Época de Joseph Stalin chegou ao país, ficamos excitados — embora tivéssemos a percepção de que o dinheiro para trazê-lo poderia financiar vários de nossos projetos. Nós estávamos sem nenhum tostão, e havia certa inveja. Mas Bob Wilson fazia uma coisa tão diferente que todo mundo embarcou na dele. E é assim até hoje. Ele ainda está na crista da onda e recebe grandes verbas. Talvez seja mesmo o sujeito que melhor exprimiu nosso tempo. Dentro de um sistema econômico liberal, foi revolucionário nas artes.

Tanto que quase impediram a estreia de A Vida e a Época de Joseph Stalin. Naquele ambiente provinciano em que vivíamos, parecia muito estranho o Teatro Municipal ficar aberto 12 horas, com os espectadores livres para entrar, sair ou dormir — o que quisessem, pois faziam parte do espetáculo. Eram cem atores em cena, mas nunca ao mesmo tempo. Era uma coisa anárquica. Eu, por exemplo, não assisti ao espetáculo inteiro. Fui ao Municipal para vender pôsteres do Richard Nixon vestido de preso, mas tinha polícia à paisana de olho. Durante a peça, eu estava com a turma no foyer do teatro ganhando algum dinheiro. Ali virou um ponto, com gente entrando, saindo, espiando. Com tudo isso, mesmo que o espetáculo não fosse subversivo por si, o evento era.

Como espetáculo, A Vida e a Época de Joseph Stalin não me pegou. Mas eu compreendi que no teatro dele não precisa de ator. É um teatro de diretor. Por isso, muitos não gostam desse trabalho. Mas agora, com Quartett, com a grande atriz francesa Isabelle Huppert, veremos um Bob Wilson bem diferente do dos anos 70.

É justamente essa a minha curiosidade em relação ao espetáculo que irá estrear no Brasil. O que seria a arte do ator no teatro de Bob Wilson? Acho que teremos que esperar para ver a Isabelle Huppert.


Maria Alice Vergueiro é atriz, autora de Tapa na Pantera na Íntegra — Uma Autobiografia Não-Autorizada.



A PEÇA
Quartett. De Heiner Müller. Direção de Bob Wilson. Com Isabelle Huppert. Sesc Pinheiros (rua Paes Leme, 195, São Paulo, SP, tel. 0++/11/3095-9400). Dias 12, 13, 15 e 16/9. Sáb., 3ª e 4ª, às 21h; dom., às 18h. R$ 15 e R$ 30. No 16o festival Porto Alegre em Cena, no Teatro do Sesi (av. Assis Brasil, 8.787, Porto Alegre, RS, tel. 0++/51/3347-8636). De 23 a 25/9. De 4ª a sex., às 21h. R$ 10 e R$

Bob Wilsom volta ao Brasil com texto de Muller

O encenador americano Bob Wilson sacudiu o Brasil nos anos 70 com um teatro que desprezava o texto. No mês em que ele volta ao país, a atriz Maria Alice Vergueiro lembra do impacto causado por sua primeira vinda
Por Maria Alice Verqueiro

AAA


Isabelle Huppert e Ariel García Valdés em cena de Quartett, que Bob Wilson traz ao país. Em seu teatro, os atores não eram importantes. Como será agora?

Com texto do dramaturgo alemão Heiner Müller (1929-1995) e atuação da francesa Isabelle Huppert, Quartett marca o retorno de Bob Wilson aos palcos brasileiros. Trinta e cinco anos atrás, o diretor americano promoveu um acontecimento no Teatro Municipal de São Paulo com as 12 horas de apresentação de A Vida e a Época de Joseph Stalin, durante o Festival Internacional de São Paulo. Em pleno regime militar, o nome do ditador soviético teve de ser substituído por "Dave Clark", porque a censura achou que ali tinha coisa. O que havia de subversivo, contudo, estava na encenação, que incluía atores imóveis, e na relação anárquica com a plateia — os espectadores tinham a liberdade de, por exemplo, entrar e sair a qualquer momento.

Entre as testemunhas desse frisson estava a atriz Maria Alice Vergueiro. Naquele ano de 1974, Maria Alice era integrante do Teatro Oficina. A atriz escreve sobre o impacto dessa apresentação num país bem mais provinciano do que hoje, sacudido pela contracultura e os movimentos artísticos de vanguarda — e também sobre sua expectativa em relação a Quartett.

Eu tinha 39 anos. Era uma época muita boa, viva, forte — mas complicada. Eu tinha terminado de atuar na peça Gracias, Señor (1972), o José Celso Martinez Corrêa tinha sido preso e estava exilado em Portugal, e o grupo que ele liderava — e do qual eu fazia parte — morava no Teatro Oficina, que estava uma decadência total. No Brasil, vivíamos em plena ditadura. Nesse contexto, a vinda do Bob Wilson foi um baque de modernidade. Com a contracultura em alta, questionava-se o tradicional, o racional e o naturalismo dentro das artes. Era um teatro diferente de tudo, um teatro que reforçava a consciência do corpo, que levava as artes plásticas e a dança para o palco. A intenção era que o espectador tivesse ideias próprias, não se limitando ao que o artista queria passar.

Nessa época, o Oficina já tinha rompido com o naturalismo. A discussão no teatro era sobre o uso da palavra, e Bob Wilson era visto como o homem que brigava com a palavra. Nas suas peças, o ator quase fazia parte do cenário — e o visual era central para ele. Nessa época, ele tinha 33 anos. Agora está com 68 e tem dado mais valor ao texto. Está lidando com Heiner Müller, com Samuel Beckett, e tudo isso é o teatro da palavra.

Apesar disso, ele usa o texto de outra maneira, apenas certos trechos para instigar o espectador, não convencer ou influenciar. Sobre o Bob Wilson, o Zé Celso já disse: "É um grande artista que recebe rios de dinheiro para fazer as pessoas dormirem no teatro". Mas, para o diretor americano, dormir não é necessariamente uma coisa ofensiva — é o relaxamento, pois ao dormir você sonha, e sonhar é receber o espetáculo por outra via.

Por isso, quando A Vida e a Época de Joseph Stalin chegou ao país, ficamos excitados — embora tivéssemos a percepção de que o dinheiro para trazê-lo poderia financiar vários de nossos projetos. Nós estávamos sem nenhum tostão, e havia certa inveja. Mas Bob Wilson fazia uma coisa tão diferente que todo mundo embarcou na dele. E é assim até hoje. Ele ainda está na crista da onda e recebe grandes verbas. Talvez seja mesmo o sujeito que melhor exprimiu nosso tempo. Dentro de um sistema econômico liberal, foi revolucionário nas artes.

Tanto que quase impediram a estreia de A Vida e a Época de Joseph Stalin. Naquele ambiente provinciano em que vivíamos, parecia muito estranho o Teatro Municipal ficar aberto 12 horas, com os espectadores livres para entrar, sair ou dormir — o que quisessem, pois faziam parte do espetáculo. Eram cem atores em cena, mas nunca ao mesmo tempo. Era uma coisa anárquica. Eu, por exemplo, não assisti ao espetáculo inteiro. Fui ao Municipal para vender pôsteres do Richard Nixon vestido de preso, mas tinha polícia à paisana de olho. Durante a peça, eu estava com a turma no foyer do teatro ganhando algum dinheiro. Ali virou um ponto, com gente entrando, saindo, espiando. Com tudo isso, mesmo que o espetáculo não fosse subversivo por si, o evento era.

Como espetáculo, A Vida e a Época de Joseph Stalin não me pegou. Mas eu compreendi que no teatro dele não precisa de ator. É um teatro de diretor. Por isso, muitos não gostam desse trabalho. Mas agora, com Quartett, com a grande atriz francesa Isabelle Huppert, veremos um Bob Wilson bem diferente do dos anos 70.

É justamente essa a minha curiosidade em relação ao espetáculo que irá estrear no Brasil. O que seria a arte do ator no teatro de Bob Wilson? Acho que teremos que esperar para ver a Isabelle Huppert.


Maria Alice Vergueiro é atriz, autora de Tapa na Pantera na Íntegra — Uma Autobiografia Não-Autorizada.



A PEÇA
Quartett. De Heiner Müller. Direção de Bob Wilson. Com Isabelle Huppert. Sesc Pinheiros (rua Paes Leme, 195, São Paulo, SP, tel. 0++/11/3095-9400). Dias 12, 13, 15 e 16/9. Sáb., 3ª e 4ª, às 21h; dom., às 18h. R$ 15 e R$ 30. No 16o festival Porto Alegre em Cena, no Teatro do Sesi (av. Assis Brasil, 8.787, Porto Alegre, RS, tel. 0++/51/3347-8636). De 23 a 25/9. De 4ª a sex., às 21h. R$ 10 e R$

Bob Wilsom volta ao Brasil com texto de Muller

O encenador americano Bob Wilson sacudiu o Brasil nos anos 70 com um teatro que desprezava o texto. No mês em que ele volta ao país, a atriz Maria Alice Vergueiro lembra do impacto causado por sua primeira vinda
Por Maria Alice Verqueiro

AAA


Isabelle Huppert e Ariel García Valdés em cena de Quartett, que Bob Wilson traz ao país. Em seu teatro, os atores não eram importantes. Como será agora?

Com texto do dramaturgo alemão Heiner Müller (1929-1995) e atuação da francesa Isabelle Huppert, Quartett marca o retorno de Bob Wilson aos palcos brasileiros. Trinta e cinco anos atrás, o diretor americano promoveu um acontecimento no Teatro Municipal de São Paulo com as 12 horas de apresentação de A Vida e a Época de Joseph Stalin, durante o Festival Internacional de São Paulo. Em pleno regime militar, o nome do ditador soviético teve de ser substituído por "Dave Clark", porque a censura achou que ali tinha coisa. O que havia de subversivo, contudo, estava na encenação, que incluía atores imóveis, e na relação anárquica com a plateia — os espectadores tinham a liberdade de, por exemplo, entrar e sair a qualquer momento.

Entre as testemunhas desse frisson estava a atriz Maria Alice Vergueiro. Naquele ano de 1974, Maria Alice era integrante do Teatro Oficina. A atriz escreve sobre o impacto dessa apresentação num país bem mais provinciano do que hoje, sacudido pela contracultura e os movimentos artísticos de vanguarda — e também sobre sua expectativa em relação a Quartett.

Eu tinha 39 anos. Era uma época muita boa, viva, forte — mas complicada. Eu tinha terminado de atuar na peça Gracias, Señor (1972), o José Celso Martinez Corrêa tinha sido preso e estava exilado em Portugal, e o grupo que ele liderava — e do qual eu fazia parte — morava no Teatro Oficina, que estava uma decadência total. No Brasil, vivíamos em plena ditadura. Nesse contexto, a vinda do Bob Wilson foi um baque de modernidade. Com a contracultura em alta, questionava-se o tradicional, o racional e o naturalismo dentro das artes. Era um teatro diferente de tudo, um teatro que reforçava a consciência do corpo, que levava as artes plásticas e a dança para o palco. A intenção era que o espectador tivesse ideias próprias, não se limitando ao que o artista queria passar.

Nessa época, o Oficina já tinha rompido com o naturalismo. A discussão no teatro era sobre o uso da palavra, e Bob Wilson era visto como o homem que brigava com a palavra. Nas suas peças, o ator quase fazia parte do cenário — e o visual era central para ele. Nessa época, ele tinha 33 anos. Agora está com 68 e tem dado mais valor ao texto. Está lidando com Heiner Müller, com Samuel Beckett, e tudo isso é o teatro da palavra.

Apesar disso, ele usa o texto de outra maneira, apenas certos trechos para instigar o espectador, não convencer ou influenciar. Sobre o Bob Wilson, o Zé Celso já disse: "É um grande artista que recebe rios de dinheiro para fazer as pessoas dormirem no teatro". Mas, para o diretor americano, dormir não é necessariamente uma coisa ofensiva — é o relaxamento, pois ao dormir você sonha, e sonhar é receber o espetáculo por outra via.

Por isso, quando A Vida e a Época de Joseph Stalin chegou ao país, ficamos excitados — embora tivéssemos a percepção de que o dinheiro para trazê-lo poderia financiar vários de nossos projetos. Nós estávamos sem nenhum tostão, e havia certa inveja. Mas Bob Wilson fazia uma coisa tão diferente que todo mundo embarcou na dele. E é assim até hoje. Ele ainda está na crista da onda e recebe grandes verbas. Talvez seja mesmo o sujeito que melhor exprimiu nosso tempo. Dentro de um sistema econômico liberal, foi revolucionário nas artes.

Tanto que quase impediram a estreia de A Vida e a Época de Joseph Stalin. Naquele ambiente provinciano em que vivíamos, parecia muito estranho o Teatro Municipal ficar aberto 12 horas, com os espectadores livres para entrar, sair ou dormir — o que quisessem, pois faziam parte do espetáculo. Eram cem atores em cena, mas nunca ao mesmo tempo. Era uma coisa anárquica. Eu, por exemplo, não assisti ao espetáculo inteiro. Fui ao Municipal para vender pôsteres do Richard Nixon vestido de preso, mas tinha polícia à paisana de olho. Durante a peça, eu estava com a turma no foyer do teatro ganhando algum dinheiro. Ali virou um ponto, com gente entrando, saindo, espiando. Com tudo isso, mesmo que o espetáculo não fosse subversivo por si, o evento era.

Como espetáculo, A Vida e a Época de Joseph Stalin não me pegou. Mas eu compreendi que no teatro dele não precisa de ator. É um teatro de diretor. Por isso, muitos não gostam desse trabalho. Mas agora, com Quartett, com a grande atriz francesa Isabelle Huppert, veremos um Bob Wilson bem diferente do dos anos 70.

É justamente essa a minha curiosidade em relação ao espetáculo que irá estrear no Brasil. O que seria a arte do ator no teatro de Bob Wilson? Acho que teremos que esperar para ver a Isabelle Huppert.


Maria Alice Vergueiro é atriz, autora de Tapa na Pantera na Íntegra — Uma Autobiografia Não-Autorizada.



A PEÇA
Quartett. De Heiner Müller. Direção de Bob Wilson. Com Isabelle Huppert. Sesc Pinheiros (rua Paes Leme, 195, São Paulo, SP, tel. 0++/11/3095-9400). Dias 12, 13, 15 e 16/9. Sáb., 3ª e 4ª, às 21h; dom., às 18h. R$ 15 e R$ 30. No 16o festival Porto Alegre em Cena, no Teatro do Sesi (av. Assis Brasil, 8.787, Porto Alegre, RS, tel. 0++/51/3347-8636). De 23 a 25/9. De 4ª a sex., às 21h. R$ 10 e R$

Bob Wilsom volta ao Brasil com texto de Muller

O encenador americano Bob Wilson sacudiu o Brasil nos anos 70 com um teatro que desprezava o texto. No mês em que ele volta ao país, a atriz Maria Alice Vergueiro lembra do impacto causado por sua primeira vinda
Por Maria Alice Verqueiro

AAA


Isabelle Huppert e Ariel García Valdés em cena de Quartett, que Bob Wilson traz ao país. Em seu teatro, os atores não eram importantes. Como será agora?

Com texto do dramaturgo alemão Heiner Müller (1929-1995) e atuação da francesa Isabelle Huppert, Quartett marca o retorno de Bob Wilson aos palcos brasileiros. Trinta e cinco anos atrás, o diretor americano promoveu um acontecimento no Teatro Municipal de São Paulo com as 12 horas de apresentação de A Vida e a Época de Joseph Stalin, durante o Festival Internacional de São Paulo. Em pleno regime militar, o nome do ditador soviético teve de ser substituído por "Dave Clark", porque a censura achou que ali tinha coisa. O que havia de subversivo, contudo, estava na encenação, que incluía atores imóveis, e na relação anárquica com a plateia — os espectadores tinham a liberdade de, por exemplo, entrar e sair a qualquer momento.

Entre as testemunhas desse frisson estava a atriz Maria Alice Vergueiro. Naquele ano de 1974, Maria Alice era integrante do Teatro Oficina. A atriz escreve sobre o impacto dessa apresentação num país bem mais provinciano do que hoje, sacudido pela contracultura e os movimentos artísticos de vanguarda — e também sobre sua expectativa em relação a Quartett.

Eu tinha 39 anos. Era uma época muita boa, viva, forte — mas complicada. Eu tinha terminado de atuar na peça Gracias, Señor (1972), o José Celso Martinez Corrêa tinha sido preso e estava exilado em Portugal, e o grupo que ele liderava — e do qual eu fazia parte — morava no Teatro Oficina, que estava uma decadência total. No Brasil, vivíamos em plena ditadura. Nesse contexto, a vinda do Bob Wilson foi um baque de modernidade. Com a contracultura em alta, questionava-se o tradicional, o racional e o naturalismo dentro das artes. Era um teatro diferente de tudo, um teatro que reforçava a consciência do corpo, que levava as artes plásticas e a dança para o palco. A intenção era que o espectador tivesse ideias próprias, não se limitando ao que o artista queria passar.

Nessa época, o Oficina já tinha rompido com o naturalismo. A discussão no teatro era sobre o uso da palavra, e Bob Wilson era visto como o homem que brigava com a palavra. Nas suas peças, o ator quase fazia parte do cenário — e o visual era central para ele. Nessa época, ele tinha 33 anos. Agora está com 68 e tem dado mais valor ao texto. Está lidando com Heiner Müller, com Samuel Beckett, e tudo isso é o teatro da palavra.

Apesar disso, ele usa o texto de outra maneira, apenas certos trechos para instigar o espectador, não convencer ou influenciar. Sobre o Bob Wilson, o Zé Celso já disse: "É um grande artista que recebe rios de dinheiro para fazer as pessoas dormirem no teatro". Mas, para o diretor americano, dormir não é necessariamente uma coisa ofensiva — é o relaxamento, pois ao dormir você sonha, e sonhar é receber o espetáculo por outra via.

Por isso, quando A Vida e a Época de Joseph Stalin chegou ao país, ficamos excitados — embora tivéssemos a percepção de que o dinheiro para trazê-lo poderia financiar vários de nossos projetos. Nós estávamos sem nenhum tostão, e havia certa inveja. Mas Bob Wilson fazia uma coisa tão diferente que todo mundo embarcou na dele. E é assim até hoje. Ele ainda está na crista da onda e recebe grandes verbas. Talvez seja mesmo o sujeito que melhor exprimiu nosso tempo. Dentro de um sistema econômico liberal, foi revolucionário nas artes.

Tanto que quase impediram a estreia de A Vida e a Época de Joseph Stalin. Naquele ambiente provinciano em que vivíamos, parecia muito estranho o Teatro Municipal ficar aberto 12 horas, com os espectadores livres para entrar, sair ou dormir — o que quisessem, pois faziam parte do espetáculo. Eram cem atores em cena, mas nunca ao mesmo tempo. Era uma coisa anárquica. Eu, por exemplo, não assisti ao espetáculo inteiro. Fui ao Municipal para vender pôsteres do Richard Nixon vestido de preso, mas tinha polícia à paisana de olho. Durante a peça, eu estava com a turma no foyer do teatro ganhando algum dinheiro. Ali virou um ponto, com gente entrando, saindo, espiando. Com tudo isso, mesmo que o espetáculo não fosse subversivo por si, o evento era.

Como espetáculo, A Vida e a Época de Joseph Stalin não me pegou. Mas eu compreendi que no teatro dele não precisa de ator. É um teatro de diretor. Por isso, muitos não gostam desse trabalho. Mas agora, com Quartett, com a grande atriz francesa Isabelle Huppert, veremos um Bob Wilson bem diferente do dos anos 70.

É justamente essa a minha curiosidade em relação ao espetáculo que irá estrear no Brasil. O que seria a arte do ator no teatro de Bob Wilson? Acho que teremos que esperar para ver a Isabelle Huppert.


Maria Alice Vergueiro é atriz, autora de Tapa na Pantera na Íntegra — Uma Autobiografia Não-Autorizada.



A PEÇA
Quartett. De Heiner Müller. Direção de Bob Wilson. Com Isabelle Huppert. Sesc Pinheiros (rua Paes Leme, 195, São Paulo, SP, tel. 0++/11/3095-9400). Dias 12, 13, 15 e 16/9. Sáb., 3ª e 4ª, às 21h; dom., às 18h. R$ 15 e R$ 30. No 16o festival Porto Alegre em Cena, no Teatro do Sesi (av. Assis Brasil, 8.787, Porto Alegre, RS, tel. 0++/51/3347-8636). De 23 a 25/9. De 4ª a sex., às 21h. R$ 10 e R$