sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Hans Ulrich Obrist - O Todo Poderoso


O suíço Hans Ulrich Obrist foi eleito pela revista inglesa "Art Review" o nome mais influente do mundo da arte em 2009. O fato ilustra como os curadores são importantes hoje - tanto quanto os críticos ou os próprios criadores

Por Marianne Piemonte, de Londres



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Dayanita Singh/Courtesy the artist and Frith Street Gallery, London/© 2008 Dayanita Singh
O CURADOR...

O suíço Hans Ulrich Obrist. Participar de uma exposição dele é uma honra para o artista



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Dayanita Singh/Courtesy the artist and Frith Street Gallery, London/© 2008 Dayanita Singh O CURADOR...

O suíço Hans Ulrich Obrist. Participar de uma exposição dele é uma honra para o artista





Em 1999, o curador suíço Hans Ulrich Obrist, famoso por assinar exposições nada convencionais - em quarto de hotel e biblioteca, por exemplo -, resolveu aproximar a arte da ciência. Durante a temporada de Laboratorium, a cidade da Antuérpia, na Bélgica, virou mesmo um grande laboratório. Convidada para a experiência, a artista alemã Rosemarie Trockel criou a sua versão de uma sala para estudo do sono. O lituano Jonas Mekas fez um filme em que revisitava a lendária Factory, como era chamado o estúdio de Andy Warhol (1928-1987). Foi um período em que artistas e cientistas puderam conversar sobre suas visões de mundo, tudo devidamente documentado e divulgado. Obrist já era bastante conhecido na época justamente por não se conformar em manter a arte restrita ao ambiente das galerias e museus. Mas seria ainda mais.



Hoje, aos 41 anos, o co-diretor e curador da Serpentine Gallery, em Londres, acaba de receber o título de pessoa mais poderosa do mundo da arte pela respeitada revista inglesa Art Review. Pela primeira vez, na oitava edição da lista anual, um curador ocupa o primeiro lugar. Sinal dos tempos. No princípio, eram os artistas - e do contato direto deles com seus mecenas e o público resultava o valor e a relevância de uma obra. Num segundo momento, entraram os críticos. Em seu livro A Palavra Pintada, publicado nos anos 70, o jornalista americano Tom Wolfe mostrou como eles se tornaram relevantes num mundo em que a arte necessitava de "legenda" - nas palavras de Wolfe - para ser entendida. Segundo ele, artistas como Jackson Pollock (1912-1956) inclusive adaptaram seu processo criativo às teorias que críticos influentes, como Clement Greenberg, defendiam. Agora, chegou a era dos curadores. E por que eles são tão importantes?



Em primeiro lugar, porque hoje eles não se limitam a organizar exposições e escrever seus catálogos, como faziam no passado. Por meio das coletivas que montam, expressam suas opiniões sobre a arte contemporânea. Em 2002, por exemplo, Obrist lançou a exposição on-line Do It (Faça Isto). Dela participaram veteranos da arte conceitual, como o americano John Baldessari, e nomes de fora do eixo Londres-Nova York, caso da palestina Mona Hatoum e de Pépon Osorio, porto-riquenho conhecido pelas instalações em grande escala. A idéia do curador era permitir que os próprios espectadores fizessem arte, seguindo as instruções detalhadas dos autores das peças. Durante a temporada, ele gerenciou um blog em que publicava diariamente as alterações sugeridas pelo público, deixando claro o sonho de proporcionar um campo expandido para a arte.



O segundo motivo é que, por exercerem essa função criativa, os curadores ganharam prestígio. Assim, passa a ser uma honra para um artista - e fator de valorização - participar de uma mostra assinada por uma grife como Obrist. O poderoso curador, que já esteve à frente de cerca de 200 exposições, não tem problemas em conseguir um grande nome para um evento seu. O pintor alemão Gerhard Richter e o polonês Gustav Metzger, famoso por sua arte política, já produziram obras especialmente para coletivas promovidas por ele. Aliás, isso ocorreu desde o início. A primeira mostra de Obrist foi feita quando ele tinha 23 anos, na cozinha de sua casa em Zurique, e chamou-se World Soup (Sopa do Mundo). Na seleção, que ficou em cartaz durante três meses e recebeu exatas 29 visitas, havia trabalhos do inglês Richard Wentworth, que hoje leciona na Escola de Desenho e Artes Ruskin, em Oxford, e do escultor e fotógrafo francês Christian Boltanski.



Cappuccino de caramelo



Obrist coloca até hoje a coletiva em sua cozinha entre as preferidas. Sempre vestindo ternos em tons de cinza e azul, ele fala muito rápido, em um inglês com forte sotaque alemão e que ainda mistura palavras em francês. É um suíço que gesticula as mãos como um italiano e sempre pontua uma frase com uma citação de um filósofo ou de um artista. Enquanto conversa, ele rabisca pequenas ilhas sobre papéis e esses desenhos parecem ajudá-lo a encadear os pensamentos. Em sua mesa, pilhas de livros, ilustrações e jornais de diferentes países dividem espaço com o laptop, o BlackBerry e uma xícara gigante de cappuccino de caramelo com creme da rede americana Starbucks.



Obrist gosta de fazer experiências com o tempo. No começo dos anos 90, dormia apenas duas horas por dia e tomava muito café, seguindo o esquema criado pelo escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850). Mais tarde, já no final dos anos 90, tentou o modelo proposto pelo renascentista italiano Leonardo da Vinci (1452-1519). Passou a trabalhar por três horas e dormir 15 minutos. "Funcionou bem por mais de dois anos. Foi quando transcrevi boa parte das minhas entrevistas com artistas e os transformei em livros", conta (Entrevistas Vol. 1 e Vol. 2 saíram no Brasil pela editora Cobogó). Mas a rotina provou-se inviável e anti-social quando Obrist virou o curador do Musée d'Art Moderne de La Ville, em Paris, em 2000.



Desde que aceitou o convite para trabalhar na Serpentine Gallery, em abril de 2006, uma galeria pública e de acesso gratuito em Londres, Obrist diz que está mais "sedentário". Dá expediente na galeria, vai sempre à abertura de exibições de outras galerias e, de sexta a segunda, sai de Londres em busca de novos artistas. Faz questão de fugir do Natal viajando para países que não celebram a data. No ano passado, ele visitou Teerã. "Acho um desperdício parar esses dias. Em 2008, descobri muita gente interessante no Cairo", diz Obrist, que afirma não tirar férias desde 1999 e folgar só no primeiro dia do ano.



Para dar uma movimentada nessa vida "quase tranquila", Obrist inventou as Maratonas Culturais na Serpentine. São duas rodadas de 12 horas, realizadas quatro vezes por ano, em que artistas, poetas, escritores e jornalistas participam com idéias. Catalogadas em um dossiê intitulado Idéias Possíveis, o curador suíço pretende colocá-las em prática no futuro. Há também o Brutally Early Club (Clube Brutalmente Cedo), reuniões em torno de temas como filosofia e arte que acontecem pontualmente às 6h30 da manhã. A modelo Kate Moss, o artista Damien Hirst - número um da lista da Art Review em 2008 -, o escritor Tom McCarthy e o arquiteto Markus Miessen aparecem com frequência. Para quem duvida que Obrist consiga angariar convidados nesse horário, ele pega um cartão e carimba com força: "Você está brutalmente convidado". Só fica então espaço para outra dúvida: quem se atreveria a faltar a um encontro com o todo poderoso da arte?



Brasil e Bienal



O Brasil está no roteiro de viagens do curador neste ano. Além de entrevistas com os músicos Tom Zé e João Gilberto e com o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, o admirador confesso da artista Lygia Pape (1927-2004) pretende visitar ateliês de jovens promessas. Obrist gostou muito da Bienal de São Paulo de 1998, que tinha como tema a Antropofagia, mas critica esse modelo de exposição: "Precisamos de uma nova bienal", diz. Segundo Obrist, hoje há cerca de 150 bienais pelo mundo e cada vez mais elas "se espelham nelas mesmas". O curador teme ainda os eventos assim tão esporádicos: "É como se a arte só acontecesse nos períodos de bienais e depois houvesse um imenso deserto". Ele acredita em ações contínuas e atividades mais "holísticas", que unam diversas áreas.



O homem mais importante do mundo da arte enxerga possibilidades de trabalho em praticamente tudo ao redor: "Hoje se pode fazer curadoria de arquitetura, música, revistas ou tudo isso misturado. O mundo todo pode receber curadoria", diz Obrist que, no entanto, garante não ter se deixado seduzir com o topo do ranking da Art Review: "Eu estava trabalhando quando vi a notícia no meu telefone e continuei a trabalhar".



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Marianne Piemonte é jornalista.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Dois livros narram episódios biográficos de alguns dos principais nomes da arte contemporânea no Brasil e no exterior



Com a voz dos artistas, livro retrata a arte contemporânea


SILAS MARTÍ

Foi pelo outro lado da câmera que Matthew Barney virou artista. Pagou o curso em Yale com o dinheiro que ganhou como modelo, posando para a Ralph Lauren. Cindy Sherman transformou um "divórcio doloroso" em bonecas mutiladas.

No Brasil, Cildo Meireles lembra a alucinação que teve aos seis anos de idade, paralisado numa cama. Cao Guimarães descobriu o "desejo pelo proibido" quando viu o arquivo de fotos do avô médico, com xifópagos e vítimas de barriga d'água. A prisão do marido, na ditadura, também foi motor para a obra de Anna Bella Geiger.

Dois livros lançados agora exploram a biografia dos maiores nomes da arte contemporânea no Brasil e no exterior. Buscam nos relatos desses artistas o lastro para a produção que inundou o mercado e arrebatou a crítica ao mesmo tempo.

Em "As Vidas dos Artistas", Calvin Tomkins, crítico de arte da "New Yorker", perfila dez artistas que viraram grifes, entre eles Matthew Barney, Damien Hirst, Jeff Koons, Richard Serra. Nos trópicos, Felipe Scovino lança "Arquivo Contemporâneo", coleção de 13 entrevistas com gigantes da arte brasileira -Cildo Meireles, Tunga, Adriana Varejão.

Fazem uma análise sintética da última geração de criadores alçados à condição de celebridade. Dão a palavra aos próprios artistas, que esquadrinham desde o sucesso em leilões e galerias à presença nas maiores exposições do planeta e estripulias no plano pessoal.

Tomkins, 84, partiu com a missão de separar o joio do trigo. De milhares de artistas que conheceu, escolheu os que julgou pertinentes. "Um resultado da liberdade ilimitada na arte é a superprodução de coisas medíocres", constata o autor, em entrevista à Folha. "Essa situação tem atraído muitos não artistas, que acham que fazer arte é coisa fácil."

Ele tenta provar o contrário narrando a odisseia de Damien Hirst atrás dos tubarões e vacas que mergulhou em formol.

Lembra a viagem ao deserto do Arizona para ver a cratera de luz de James Turrell, os excessos de maquiagem, roupas e perucas de Cindy Sherman.

No meio do caminho, sobra tempo para falar dos amigos roqueiros de Hirst, como o baixista do Blur, Alex James, do romance de Cindy Sherman com o ator Steve Martin, do egocentrismo embaraçoso de Julian Schnabel, da briga de Richard Serra com Frank Gehry.

São ecos da era que começou com Andy Warhol e o culto à personalidade que passou a valer também nas artes visuais. É um contraste gritante com a situação brasileira. Enquanto os Estados Unidos viveram o boom econômico do pós-guerra, artistas nacionais extraíram forças da repressão militar.

A máxima de Hélio Oiticica -"da adversidade vivemos"- se ajusta quase com perfeição aos relatos dessa geração. Cildo Meireles esmiúça o contexto em que circulou suas garrafas de Coca-Cola com mensagens subversivas. Cao Guimarães lembra como fazia todos os filmes na cozinha de seu apartamento em Londres.

Oiticica e Lygia Clark, pioneiros da arte invendável, surgem como grandes referências dessa geração, mas não evitaram que, mesmo no Brasil, tudo se rendesse ao mercado. Artista que desponta lá fora, Adriana Varejão conta que a única lembrança que tem da primeira vez que viu a obra de Clark é o autógrafo que ganhou da artista. Meireles reduz tudo a um "universo do fetiche".

Na obra de Cindy Sherman, Tomkins vê o que se aplica à situação atual -o desejo de se agarrar "às coisas, à juventude, ao glamour, à esperança".



Em tom literário, Calvin Tomkins investiga de perto a vida e o processo criativo de dez estrelas da produção artística atual




FABIO CYPRIANO

DA REPORTAGEM LOCAL



Poucos são os livros que conseguem abordar a produção atual sem cair em estereótipos ou mesmo forçar a barra ao encaixar certos artistas como meros oportunistas que se aproveitam da recente explosão do mercado de arte contemporânea.

"As Vidas dos Artistas", de Calvin Tomkins, faz parte do seleto grupo que traz uma abrangente visão dos procedimentos de produção contemporânea ao dar a voz, em primeiro plano, aos próprios artistas. Nos últimos dez anos, Tomkins, autor da ótima biografia de Marcel Duchamp, "Duchamp" (Cosac Naify, 2005), publicou perfis de protagonistas da arte contemporânea, como Jeff Koons, Damien Hirst e Matthew Barney para a revista "The New Yorker".

O livro, uma reunião de dez desses perfis, revela-se um típico exercício de jornalismo literário, com textos extensos, que mostram intimidade entre o autor e os artistas: Tomkins vai ao cinema com Cindy Sherman, visita a casa de veraneio de Jasper Johns em St. Martin, no Caribe, anda de táxi com Hirst, caminha pela cratera de James Turrel, no norte do Arizona (EUA).

Em cada situação, o autor revela detalhes que ilustram o procedimento criativo de cada um, acrescentando ainda depoimentos de outros artistas, galeristas, críticos e amigos. Os demais escolhidos são Julian Schnabel, Richard Serra, Maurizio Cattelan e John Currin.



Estrelas contemporâneas

O próprio autor afirma, na introdução do livro, que a seleção não apresenta "nenhum denominador comum, entre eles", mas, na verdade, todos são estrelas de primeira grandeza no cenário atual, afinal Sherman é uma das principais renovadoras da fotografia, Serra, da escultura e Johns, da pintura. No entanto, tal divisão por suporte, como se sabe em arte contemporânea, é inútil, e aí está um dos méritos de Calvin Tomkins, que, em vez de investigar o meio usado pelo artista, interessa-se pela sua própria forma de vida.

Contudo isso não é realizado em um desenrolar de fofocas, como o universo das celebridades tanto preza, mas de forma discreta e contextualizada, onde o autor aborda desde a formação de cada artista até suas relações com museus e galerias.



Momentos-chave

Há muitas passagens intrigantes. Uma das melhores é quando Kim Levin, crítica do "Village Voice", arrasou, em um texto, as pinturas de mulheres um tanto deformadas de Currin, por considerá-las machistas, quando de sua primeira individual na galeria Andrea Rosen, em 1992. Dez anos depois, em 2003, ela assume e diz "Eu estava errada", o que atesta como o escrever da história pode ser alterado quando o artista segue sua carreira.

Claro, há histórias mais extravagantes, como os surtos hedonistas de Hirst, que costumava baixar a calça e mostrar a genitália nas festas, mas tais situações são apenas detalhes de uma inteligente e intrigante narrativa da produção atual, principalmente daquela produzida nos Estados Unidos, para onde os textos foram criados. Quem ler "As Vidas dos Artistas", se usar as lentes corretas, vai compreender muito melhor o que é a arte contemporânea.









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AS VIDAS DOS ARTISTAS



Autor: Calvin Tomkins

Editora: Bei

Quanto: R$ 57 (280 págs.)



ARQUIVO CONTEMPORÂNEO



Autor: Felipe Scovino

Editora: 7Letras

Quanto: R$ 48 (310 págs.)

domingo, 3 de janeiro de 2010

As possibilidades da escrita teatral na cena brasileira contemporanea

As possibilidades da escrita teatral na cena brasileira contemporanea


Daniel Schenker






José Da Costa amplia a noção de texto teatral a partir da análise de espetáculos de diretores de grupo como Gerald Thomas, Antunes Filho, José Celso Martinez Corrêa, Bia Lessa, Enrique Diaz e Antonio Araujo.



Em Teatro contemporâneo no Brasil: criações partilhadas e presença diferida, o autor evidencia como estes encenadores se distanciaram de uma abordagem textocentrista, ao destronarem o texto do posto de elemento soberano. Pelo menos, o texto em seu sentido mais convencional, de literatura dramática, de peça de teatro a ser montada a partir de uma postura subserviente do diretor em relação ao dramaturgo.



Gerald Thomas dessacraliza o texto verbal ao fazer dele um entre os muitos elementos que compõem seus espetáculos, nem mais, nem menos importante que os demais.



Antunes Filho sobrepõe referências, sem necessariamente confinar os trabalhos em contextos específicos, e coloca, vez por outra, o público diante do desafio de uma linguagem ininteligível, caminho também apontado por Enrique Diaz, diretor que aborda as fronteiras entre ator e personagem, realidade e ficção. José Celso Martinez Corrêa cria imagens poderosas na passarela do Teatro Oficina – imagens capazes de exprimir ou de propor novas abordagens em relação ao material original.



Bia Lessa investiga aquilo que o texto não diz (pelo menos, numa perspectiva de análise mais imediata) através da conexão entre teatro e outras manifestações artísticas, principalmente as artes plásticas e o cinema.



E Antonio Araujo aproveita a carga dos espaços não convencionais onde apresenta suas montagens, que exigem dos atores uma disponibilidade ao risco algo kamikaze.



Todos esses encenadores redimensionam a noção de texto, estendido, de certa maneira, aos demais componentes da cena. É como se existisse texto na cenografia, na iluminação, na presença dos atores. Sob este ponto de vista, parece haver uma aproximação entre os conceitos de texto e de cena. Um dos principais tópicos abordados por José Da Costa se refere à distinção entre texto literário e texto cênico. O primeiro visa mais à publicação e sobrevive independentemente da cena; o segundo, não. Foi escrito para o palco e assim deve ser analisado. O principal representante desse segundo estatuto é, de acordo com Da Costa, Gerald Thomas, “um dramaturgoencenador para quem não se pode separar ou distinguir, na escritura teatral, a emergência criativa do aspecto cênico ou imagético-visual em relação à criação dramatúrgicoverbal”. No teatro de Thomas, a noção de texto transcende a esfera verbal: a ela o encenador soma trabalhos de iluminação que parecem verdadeiras esculturas; a utilização de gelo seco, que redimensiona a profundidade do espaço; o emprego de voz gravada, que pode formar uma espessura com aquilo que é dito no palco. Em Rainha mentira, um de seus últimos espetáculos, havia um contraste entre o tom confessional contido na fala de Thomas, em off, e o modo propositadamente exagerado como retratou sua família em cena.



Processo de colaboração As montagens analisadas por José Da Costa em Teatro Contemporâneo no Brasil, livro que conta com introdução consistente de Angela Materno, partiram de textos escritos pelos próprios diretores, de criações de autores inseridos dentro das companhias ou de obras da chamada dramaturgia clássica. No primeiro caso estão, principalmente, os espetáculos de Gerald Thomas, que, como já foi dito, concentra duas escrituras – a de dramaturgo e a de encenador. No segundo, algumas montagens da Cia. dos Atores, concebidas em parceria com o dramaturgo Filipe Miguez, e a trilogia bíblica do Teatro da Vertigem, que surgiu da interação com Sérgio Carvalho, Luís Alberto de Abreu e Fernando Bonassi. José Da Costa aponta aqui para a constância do processo colaborativo no teatro de hoje, no qual o texto é trabalhado de modo impuro, na medida em que escrito dentro da sala de ensaios, no contato direto com os atores. Neste corpo a corpo, o acaso é assimilado como importante matéria-prima. Mas Da Costa toma cuidado para não incorrer num reducionista jogo de contrários ao comprovar que existe conciliação possível entre a imprevisibilidade do acaso e o rigor da construção do espetáculo, muitas vezes revelado diante do espectador.



No terceiro caso, diretores adotam determinadas peças do repertório clássico como ponto de partida para investigações personalizadas, apropriandose delas com o intuito de revelar o que não surge explicitado na leitura. “... o personagem já não é mais apenas o de Shakespeare. A tradução marcada pelo hífen do título impôs à obra e aos personagens de Shakespeare deslocamentos importantes”, assinala Da Costa, em relação a Ham-let, versão de José Celso Martinez Corrêa para a tragédia de William Shakespeare. Num certo sentido, o diretor teria reinventado o texto original, sem, porém, torná-lo aleatório.



José Da Costa estende a noção de escrita cênica para o espectador e para o ator. Não por acaso, o autor selecionou espetáculos que conferem ao público uma posição ativa, distante da de mero apreciador de um trabalho descortinado à sua frente.



Cabe a cada integrante da plateia fazer uma seleção e montagem particularizada a partir daquilo que vê. É claro que os diretores podem deixar mais ou menos lacunas a descoberto para o espectador preencher, mas vale lembrar que para aquele que assiste não é possível abarcar a totalidade do espetáculo. Seja como for, Da Costa destaca a autoria do espectador por meio da peregrinação pelos espaços internos de igrejas, hospitais e presídios nos espetáculos do Vertigem. “Levados a percorrer as várias salas em que se representam os estágios ou paradas na trajetória de João, os espectadores também escrevem, por assim dizer, sua recepção do espetáculo do Teatro da Vertigem, traduzindo reciprocamente os temas bíblicos e as referências sociais e históricas fornecidas tanto pelas dependências do edifício quanto pelas situações ficcionais que nelas se encenam”, observa Da Costa, referindo-se a Apocalipse 1,11, apresentado, no Rio de Janeiro, nas dependências do antigo Dops. Antes mesmo de começar a percorrer os espaços claustrofóbicos, o público é afetado pela carga do lugar escolhido pelo grupo para sediar o espetáculo. Há texto nesta carga, uma espécie de força presente decorrente da realidade do lugar ou de uma herança que não se dissolve com a passagem do tempo.



Ator na primeira pessoa A presença do ator como escrita personalizada também está no foco de José Da Costa. O ator não é aquele que tão-somente diz um texto que não escreveu, mas alguém que busca respaldo em suas próprias experiências com o intuito de conferir credibilidade às vivências que não são as suas. Mais do que isto, Da Costa problematiza o conceito tradicional de personagem ao evocar um ator que se expressa em primeira pessoa.



“O intérprete parecia, em parte, estar falando em nome dele próprio, como um performer e não como um ator que representam um personagem de ficção com um nome definido, com uma identidade especificada e com uma pertinência a contextos sociais, familiares ou profissionais determinados (...) A ausência desses dados nos fazia perceber o ator e aquilo que ele relatava mais como um performer exibindo-se a si mesmo do que como intérprete representando um personagem”, constata Da Costa, acerca de Ventriloquist, de Gerald Thomas.



Teatro contemporâneo no Brasil: criações partilhadas e presença diferida José Da Costa 7Letras 247 páginas, R$ 38

O espectador e a cena





MARIA SÍLVIA BETTI



Jean-Pierre Ryngaert já é conhecido de pesquisadores e estudantes de teatro no Brasil com seu livro "Introdução à Análise do Teatro" (Martins Fontes, 1997). Esse dado representa, sem dúvida, um fator de interesse sobre o livro que, precisamente, vem dar continuidade ao anterior.

Na verdade, ainda que se tratasse de uma obra isolada, o trabalho de Ryngaert já seria merecedor das atenções de todos os que se interessam pelo teatro, uma vez que o autor procura desenvolver, sistematizar e aplicar modelos de abordagem do texto dramatúrgico de forma ao mesmo tempo profunda e simples, evitando os contorcionismos técnicos e conceituais.

Voltando-se basicamente sobre a dramaturgia contemporânea desenvolvida e encenada em contexto francês, Ryngaert preocupa-se em estabelecer premissas para uma leitura produtiva e prazerosa de textos considerados herméticos e pouco propícios à leitura dos não-iniciados. Ao fazê-lo, ilustra fartamente dois aspectos essenciais de seu perfil de autor: o de professor universitário, pelo didatismo com que desenvolve sua abordagem, e o de diretor teatral, pelo fato de estender suas reflexões para além dos limites do texto, voltando-se também para o exercício da encenação e da criação dramatúrgica.

O aspecto do didatismo se faz sentir principalmente na forma como o autor conduz a discussão do conceito de teatro contemporâneo, empreendendo um percurso que vai da leitura aplicada de cinco trechos escolhidos de peças à discussão mais ampla das teorias e das escritas dramatúrgicas. Ryngaert encerra o trabalho com uma pequena e representativa antologia de textos críticos, um quadro cronológico para contextualização histórica e um glossário de noções fundamentais. Esse cuidado dá bem a medida de sua preocupação em propiciar um conhecimento mais rico do texto contemporâneo em todas as suas instâncias estruturais, temáticas e contextuais.

Para Ryngaert, a dramaturgia que surge com as vanguardas dos anos 50 é vítima de um mal-entendido de base: a idéia generalizada de que o cerne expressivo do texto reside no enredo e de que a ausência ou rarefação deste é sinal de deficiência qualitativa que restringe e, às vezes, inviabiliza a leitura, pelo menos por parte do leitor comum, que se debruça sobre o texto com a expectativa de encontrar uma história -um eixo narrativo central na criação.

Partindo do pressuposto de que todo texto é "legível", quando se têm as ferramentas adequadas, Ryngaert defende a idéia de que a "legibilidade" imediata não é critério de valor e de que o interesse maior, tanto técnico como temático, reside na forma de organização, ou seja, no modo como se desenvolve o diálogo implícito entre autor e leitor. O teatro contemporâneo não prioriza a representação abrangente do mundo em seu interior: a cena mostra-se como concretização provisória do texto e nela tudo é representável sem o ser de forma absoluta ou definitiva. Com isso, cresce em importância o papel a ser exercido pelo leitor diante do texto e do espectador diante da cena.

São esses os pressupostos que fornecem a Ryngaert o fio da meada de seu trabalho, ou seja, a investigação de como conduzir a leitura de peças que se mostram, desde o início, resistentes a uma compreensão linear e imediata, preocupada em responder à velha pergunta: "Qual é a história?" ou "De que trata a peça?".




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A OBRA

Ler o Teatro Contemporâneo Jean-Pierre Ryngaert Tradução: Andréa Stahel M. da Silva Martins Fontes (Tel. 011/239-3677) 252 págs., R$ 27,50

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Há, porém, o outro lado da questão, ou seja, o de quem encena: Ryngaert é claro e preciso ao referir o impasse de quem dirige e produz o teatro contemporâneo e se vê dividido entre o desejo de inovar e romper com as estruturas preexistentes e a necessidade de sobreviver comercialmente, diante de um público pagante ou de subsídios estatais (lembremos que Ryngaert refere-se, todo o tempo, ao que acontece no contexto francês, especificamente).

Preocupado em discutir essas questões sem a pretensão de esgotá-las, ele estende o debate para o campo mais amplo do confronto entre o épico e o absurdo, as duas correntes dramatúrgicas centrais do século 20.

Embora empreenda, neste ponto, um interessante panorama das formas que nortearam as criações entre 68 e os anos 80, seu olhar analítico encontra-se, aqui, direcionado sobre os efeitos que a desagregação do enredo e a fragmentação de categorias essenciais ("tempo", "espaço", "diálogo") exercem sobre o texto.

Para Ryngaert, o processo de dissolução da grande narrativa, que havia vigorado até o final do século 19, atingiu, em nossa época, o seu limite pelo recurso a formas como o monólogo, com suas numerosas variantes, as colagens e a hibridização das falas e das técnicas. Brincar com a linguagem, com suas contradições e inconsistências, à maneira consagrada pelo teatro do absurdo, é algo que perdeu, nos dias de hoje, sua virulência. A vanguarda dos anos 50, de Becket, Ionesco e Adamov, já frequenta, nos dias de hoje, a lista de leituras das academias, em que, aliás, esses autores tendem a ser estudados como se integrassem um grupo coeso e homogêneo.

Entrar nos textos -nesses, fragmentados e desprovidos de eixo narrativo, criados entre os anos 50 e os 80- implica desafio: é necessário medir o quanto cada um negaceia e resiste ao ato interpretativo e saber lidar com a descontinuidade, com a rarefação do enredo, já que tempo, espaço e linearidade de diálogos foram relativizados ou desapareceram em suas formas convencionais. É necessário, ainda, ousar tocar certos limites da criação dramatúrgica: aqueles para além dos quais ela desaparece enquanto tal, engendrando formas que suscitam ao mesmo tempo recusa diante de sua opacidade e fascínio por sua ousadia.

Embora de forma velada, Ryngaert deixa implícita, num breve momento de sua análise, a perspectiva da volta às grandes narrativas, latente na criação de obras chamadas por ele de "textos-limite", em que a própria língua é desconstruída e reinventada e para além dos quais já não há mais criação.

A antologia de textos críticos inserida no final do volume ilustra, no vetor teórico, o desenvolvimento das formulações, inventariando de forma concisa e abrangente os editoriais dos principais periódicos críticos voltados ao teatro e as principais questões relativas à encenação e à dramaturgia discutidas por figuras representativas do panorama dramatúrgico e teatral da França de 1953 a 1985: Bertolt Brecht, Jean Genet, Eugène Ionesco, Michel Vinaver, Michel Deutsch e Nathalie Sarraute são apenas algumas dessas figuras.

Exercitando seu olhar analítico sobre o panorama teatral e dramatúrgico francês, Ryngaert acaba por abrir o apetite de seu leitor brasileiro para o exercício de uma análise de igual teor, direcionada ao contexto da dramaturgia e da encenação nacional.

Seu trabalho vem, assim, auspiciosamente, abrir perspectivas para que desenvolvamos um debate crítico sobre o teatro contemporâneo no ano que se inicia, e -acima de tudo- para que leiamos textos, assistamos a espetáculos e alimentemos, assim, um processo de reflexão no qual o teatro tem um papel fundamental a cumprir.









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Maria Sílvia Betti é professora de literatura inglesa na USP, coordenadora do Núcleo de Estudos Teatrais do Centro Ángel Rama e autora de "Oduvaldo Vianna Filho" (Edusp).