terça-feira, 9 de fevereiro de 2010


Gabriel Garcia Márquez - O Escritor e o Ditador


Uma nova biografia de Gabriel García Márquez traz detalhes reveladores sobre sua amizade com Fidel Castro. E relança uma velha polêmica - como os escritores devem se relacionar com os poderosos?

Por André Lahóz


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Ben Martin//Time Life Pictures/Getty Images / Rolls Press/Popperfoto/Getty Images
O escritor colombiano Gabriel García Márquez e o ditador cubano Fidel Castro. Na Macondo imaginada pelo autor, as eleições não eram para valer. Na Cuba de Fidel também não



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Ben Martin//Time Life Pictures/Getty Images / Rolls Press/Popperfoto/Getty Images O escritor colombiano Gabriel García Márquez e o ditador cubano Fidel Castro. Na Macondo imaginada pelo autor, as eleições não eram para valer. Na Cuba de Fidel também não





Não há eleições em Macondo, a misteriosa cidade em torno da qual se desenrola a sucessão de tramas que compõem Cem Anos de Solidão, obra máxima do colombiano Gabriel García Márquez. Bem, pelo menos não há eleições para valer - a população até é chamada para votar, mas depois as urnas são esvaziadas e novamente preenchidas com votos ao candidato previamente definido pelo governo. Em compensação, não faltam guerras, fuzilamentos e revoluções. Um único oficial, o coronel Aureliano Buendía, promoveu 32 revoluções armadas após se decepcionar com a farsa eleitoral - foi derrotado em todas. As desventuras do coronel são apenas um capítulo da interminável sequência de rebeliões e lutas que estão sempre recomeçando sem levar a lugar algum - e que contribuem para o nítido sotaque latino-americano da obra. Ela nos recorda o quanto parte de nosso continente ainda se alimenta de heróis e de promessas de refundação da nação. E quanto nos parecem enfadonhos a democracia e o lento processo de evolução que ela enseja. Gostamos de aventura, ainda que, ao fim dela, o que sobre seja pouco mais que um "pavoroso rodamoinho de poeira e escombros", como na Macondo ao cabo de um século de história.



Por tudo isso, há um quê de ironia na polêmica gerada com a recém-lançada biografia autorizada de García Márquez, de autoria do inglês Gerald Martin, a ser publicada no Brasil em março (leia reportagem do livro). Nela, Martin dá detalhes da intensa relação de amizade que une o Nobel de Literatura e o líder cubano Fidel Castro. Sim, Gabo - como García Márquez é chamado pelos amigos - adora o ditador Fidel. A ponto de servir-lhe de guarda-costas em uma visita à Colômbia. Nele vê um homem "de costumes austeros, mas de ilusões insaciáveis". Fidel, segundo o escritor, "tem a convicção quase mística de que a maior conquista do ser humano é a boa formação da consciência, e que os estímulos morais, mais que os materiais, são capazes de mudar o mundo e impulsionar a história". Quando fala às massas, Fidel "é a inspiração, o estado de graça irresistível e deslumbrante, que só nega os que não tiveram a glória de tê-lo visto". E considera o cubano "um dos maiores idealistas do nosso tempo". E, sim, o ditador Fidel também adora Gabo. Deu-lhe de presente uma casa num dos bairros mais imponentes de Havana. E já afirmou que gostaria, numa próxima encarnação, de voltar como escritor - "um escritor como Gabriel García Márquez".



Em sua longa presidência, Fidel recebeu o apoio de inúmeras personalidades, inclusive brasileiras, de Chico Buarque a Oscar Niemeyer (o arquiteto, aliás, foi citado por Fidel como exemplo de coerência em sua carta de renúncia em favor do irmão, em dezembro de 2007). Pouco a pouco, porém, à medida que o número de mortos pelo regime crescia, o paraíso terreno prometido pelos revolucionários perdia o encanto. Demorou, mas até mesmo comunistas de longa data, como o também Nobel José Saramago, decidiram que era hora de pular do barco. Aos 82 anos, um a menos que Fidel, Gabo mantém inalterado seu apoio. Apesar do quase nada que resta ao fim de mais uma aventura latino-americana.



Poderia ser apenas excentricidade de um gigante da literatura - Cem Anos de Solidão, um caso raro de best-seller global que deleitou também o mundo das letras, é apontado por alguns críticos como uma das mais importantes obras da língua espanhola, ao lado de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, O Burlador de Sevilha, de Tirso de Molina, e um punhado de outras. Mas a proximidade de Gabo e Fidel ganha relevo por tratar-se de um fenômeno nada incomum. Não é privilégio do líder cubano ser paparicado por um grande escritor. Antes dele, ditadores de esquerda e de direita receberam a mesma graça. Tome-se o caso de Adolf Hitler, a besta-fera que lançou o mundo no maior conflito da história. Também ele contou com o apoio de inúmeros intelectuais. Martin Heidegger, talvez o principal filósofo do século 20, foi durante 12 anos membro do partido nazista. Günter Grass, também Nobel de Literatura, recentemente admitiu ter participado da Waffen SS, a tropa de elite do nazismo. Outro peso-pesado da literatura, o poeta Ezra Pound, chegou a ler textos homenageando o ditador alemão na rádio italiana durante a Segunda Guerra - nos quais atacava de forma indiscriminada os judeus, o presidente americano Franklin Roosevelt e a intervenção dos Estados Unidos na guerra.



Pound, aliás, apoiou não apenas um, mas dois ditadores - com Benito Mussolini teve certa proximidade, o tendo visitado em seu palácio em Roma e lhe dado livros de poesia. Outro Nobel de Literatura, Camilo José Cela, autor do cultuado A Colmeia, lutou nas trincheiras de Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola e foi posteriormente acusado de servir como informante do regime franquista. E por aí a lista segue. A despeito da imagem que normalmente temos dos grandes escritores - amantes da liberdade, sem vínculos de nenhuma ordem que possam comprometer sua produção artística -, é incômodo constatar quantos deles se embriagaram com os menos esclarecidos dos déspotas.



A QUESTÃO MORAL

Não é de hoje que a relação entre intelectuais e governantes é complexa. Há quase 2500 anos, os gregos já lidavam com essa questão. Por um lado, o anseio de influenciar a sociedade e interferir na construção do futuro é uma tentação recorrente no mundo das letras. Por outro, não é um caminho sem custo. Ao adentrar a política, o intelectual passa a transitar num mundo que não é o seu - e nem sempre acaba bem. Um marco na relação entre estudiosos e o poder ocorreu no famoso julgamento de Sócrates, filósofo grego acusado por Atenas de corromper a juventude. Os poderosos de então exigiam que Sócrates assumisse sua culpa ou aceitasse a morte por envenenamento. Mas ele não conseguia enxergar seu erro. Aceitar a pena seria pactuar com uma mentira. Sua opção pela cicuta entrou para a história ocidental como o primeiro evento em que um intelectual se recusa a aceitar as verdades estabelecidas. Entre a ética de sua cidade-Estado e sua consciência, ele escolheu a segunda - e fundou, assim, a moral. O seu exemplo serve como régua para momentos críticos da história. Em tempos de ditadura, quem se encolheu e quem seguiu os ditames da própria consciência?



Mas a questão é bem mais complicada do que uma luta entre verdade e mentira. Pois, afinal, há os que adotam ditadores não como rendição, mas como expressão de sua verdade pessoal. Gabo, Saramago e tantos outros seguidores de Fidel não passaram a adorar Cuba por medo da repressão ou com vista ao enriquecimento pessoal. Eles realmente acreditavam - e muitos ainda acreditam - que a revolução na ilha foi um exemplo para a humanidade. Se voltarmos aos gregos, veremos que também lá o apoio à democracia não era universal. Platão tinha sérias restrições à ética democrática, pois enxergava nela uma mistura de demagogia, mentira e belicismo. Mas também não gostava de ditadores. Formulou assim a famosa máxima: "A República funcionará bem se os filósofos tomarem o poder - ou se o governador se tornar um filósofo". A partir daí, a tentativa de fazer do ditador um filósofo passou a ser recorrente na história. Platão tentou a sorte com Dionísio de Siracusa. Acabou na prisão. Aristóteles foi o preceptor de Alexandre. Teve de fugir de Atenas. Mas o fracasso maior foi para a conta de Sêneca, outro grande filósofo da Antiguidade. Ele buscou domar Nero, talvez o mais tirânico dos imperadores romanos, com sua sabedoria, seu cosmopolitismo e sua crença na igualdade dos homens. Nero entrou para a história por sua loucura que teria feito arder Roma. E Sêneca, por ordens do tirano, foi obrigado a se matar.



Foi o capitalismo que fez subir às alturas o papel dos homens de cultura, escritores incluídos. Nos últimos 200 anos, diversos fenômenos - urbanização, industrialização, massificação da informação - conspiraram para o surgimento de uma classe de intelectuais. Não é que eles não existissem antes. Segundo o historiador francês Jacques Le Goff, a Idade Média já os conhecia. Mas pode-se dizer que foi no século 19 que eles se constituíram como "classe social" na Europa. É dessa época o mito do intelectual como alguém acima da sociedade e de alguma forma responsável por iluminar o futuro. Contribuiu para isso a enorme repercussão do caso Dreyfus, que envolveu o escritor francês Émile Zola. Em seu famoso artigo J'accuse, de 1898, o autor de Germinal fez uma violenta acusação de antissemitismo ao governo francês em relação ao oficial do Exército Alfred Dreyfus, injustamente tido como traidor. Zola conseguiu, usando apenas sua escrita em um jornal, provocar uma total reviravolta no caso e deixar em má situação a elite do poder na França. Virou um paradigma de pensador livre das amarras do poder.



O renovado poder dos intelectuais não passou despercebido dos poderosos. Não são apenas os escritores que querem um ditador para chamar de seu - também os ditadores adoram ter os escritores por perto. Eles podem ser determinantes na produção do poder ideológico. Segundo o filósofo italiano Norberto Bobbio, é um poder que se exerce "não sobre a posse de bens materiais, mas sobre as mentes pela produção e transmissão de ideias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamento prático, mediante o uso das palavras". Nenhum ditador, por mais poderoso, pode se manter indefinidamente só pela força bruta. É preciso cativar corações e mentes. Não estranha que escritores sejam particularmente interessantes aos governantes, dada sua capacidade de se comunicar com o grande público. Mas não os da mesma estirpe de Zola, claro. Os ditadores preferem aqueles que abracem a causa e sejam fiéis a ela.



A QUESTÃO PARTIDÁRIA

Cabe aqui a importante distinção entre duas categorias de intelectuais feita pelo escritor Jean-Paul Sartre - o filósofo e o ideólogo. O primeiro seria, na tradição de Sócrates e Zola, o pensador sem limites. O segundo apenas repetiria as palavras de ordem dos poderosos. É contra essa categoria de intelectual que se insurge o pensador francês Julien Benda no livro A Traição dos Intelectuais (1927), que se tornou um clássico. Segundo Benda - também ele um defensor de Dreyfus -, os intelectuais se perderam ao abandonar os princípios universais de justiça e verdade em nome de causas específicas de uma determinada facção.



Infelizmente, muitos se desviaram desse papel. No caso brasileiro, um de nossos escritores de maior sucesso no século 20, Jorge Amado, foi durante anos um ardoroso defensor de Josef Stalin, que disputa com Hitler e Mao Tsé-Tung uma espécie de liga especial dos ditadores mais sangrentos da história. Seu livro O Mundo da Paz (1951) é uma verdadeira ode ao stalinismo, com frases como: "Mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu. Sim, eles caluniam, insultam e rangem os dentes. Mas até Stálin se eleva o amor de milhões, de dezenas e centenas de milhões de seres humanos". Um texto digno de alguém que havia se filiado ao Partido Comunista e considerava a União Soviética o paradigma de sociedade perfeita. Mais tarde, em meados dos anos 50, Jorge Amado iria abandonar - felizmente - a temática política e produzir alguns de seus melhores livros.



A figura do intelectual do partido, aliás, é determinante para entender o século passado - e, de certa forma, as heranças que ainda carregamos. O marxismo elevou ao máximo a importância dos intelectuais na definição dos rumos da humanidade. Líder da revolução russa de 1917, Vladimir Lenin foi categórico ao afirmar que, por razões puramente econômicas, o capitalismo tenderia a durar indefinidamente. Não haveria nenhum limite físico à sua expansão. Para Lenin, somente a prática revolucionária poderia criar esse limite. Daí a importância da classe intelectual, que despertaria a sociedade para os novos tempos. Conhecemos o fim dessa história. Mas, nas longas décadas que durou o sonho, os homens de cultura de esquerda foram alçados a um patamar inédito de importância. Não mais seriam responsáveis por ensinar um ou outro governante, como tentaram os filósofos do passado. Agora trariam a chave para a felicidade humana. Nas palavras do sociólogo francês Raymond Aron, Karl Marx virou o ópio dos intelectuais.



Quem mais se aprofundou no papel da nova classe - a dos pensadores - foi o cientista político italiano Antonio Gramsci. É dele outra distinção clássica, a que separa intelectuais orgânicos dos tradicionais. Os tradicionais seriam o que normalmente associamos à palavra: um grupo que tem como objeto as ideias e que atua de forma separada do restante da sociedade. Já os primeiros são aqueles formados organicamente em cada classe social. E têm a função de trabalhar para a construção do partido (o "novo príncipe") e da revolução. A visão gramsciana exacerba o papel de escritores e pensadores na busca da utopia marxista. Uma utopia perigosa, aliás - que consumiu algumas das melhores cabeças e que, em nome de um suposto bem comum, custou dezenas de milhões de vidas. Cabe lembrar que, etimologicamente, a palavra utopia significa "lugar que não existe". Da visão original de Thomas Morus, sobre a ilha onde viveria a sociedade perfeita, ao marxismo persiste a noção de um ideal muito acima da capacidade humana. É um mundo que existe apenas na cabeça... dos intelectuais!



Talvez uma maneira de entender o problema à frente dos homens de letras seja a polêmica envolvendo os gigantes do renascimento italiano, Michelangelo e Leonardo da Vinci. O primeiro reprimia Leonardo por sua indiferença com as desventuras de Florença; o segundo respondia que o estudo da beleza preenchia todo o seu coração. São duas visões de mundo. Gabo deveria limitar-se à sua obra literária? Ou, ao contrário, deveria usar a sua popularidade em favor daquilo que lhe parece melhor? É uma questão que continua em aberto. As duas posturas parecem legítimas, mas apoiar líderes que tentam ceifar a liberdade é algo que não é mais aceito sem reservas. Daí o desembarque de Saramago e outros da canoa cubana. A hora parece ser não dos seguidores de Marx e Lenin mas, espera-se, de John Stuart Mill, Alexis de Tocqueville e outros pilares do pensamento liberal e da democracia. Na América Latina, ainda temos líderes como Hugo Chávez, Evo Morales, Néstor Kirchner e outros empenhados na construção de Macondos continente afora. Eles hoje encontram, no entanto, dificuldades para laçar escritores que os bajulem e legitimem. García Márquez, felizmente, converteu-se de regra em exceção.

André Lahóz é redator-chefe da revista Exame.


Gabriel Garcia Márquez - Gentil, Mas Sóbrio


García Márquez diz que todo mundo deveria ter um biógrafo inglês. O que coube a ele tenta ser sempre favorável, mas não omite - ainda bem - os fatos embaraçosos

Por Sérgio Rodrigues



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Sven Creutzmann/ Polaris/ Other Images
Fidel Castro e Gabriel García Márquez em Havana, Cuba, em 2000. Por conta dessa amizade, o escritor já foi chamado de "lacaio" do ditador cubano



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Sven Creutzmann/ Polaris/ Other Images Fidel Castro e Gabriel García Márquez em Havana, Cuba, em 2000. Por conta dessa amizade, o escritor já foi chamado de "lacaio" do ditador cubano





Pode-se argumentar que, aos 82 anos de idade, a reputação literária do colombiano Gabriel García Márquez está estabelecida. Sua cotação na Bolsa de Valores Literários deverá sofrer oscilações ao longo do tempo, como a de qualquer escritor que não seja simplesmente esquecido, mas poucas vozes - como a do exilado cubano Guillermo Cabrera Infante, um desafeto político morto em 2005 - deram-se ao trabalho de lamentar seu "folclorismo e exotismo realmente desnecessários". Cem Anos de Solidão é um monumento cravado na história da literatura, ponto. E, como seus três ou quatro principais livros depois dele mantêm o sarrafo lá no alto, o solo sob os pés do escritor parece firme. No caso de Gabo, a reputação que falta fixar é a do homem público, a do "político" - papel que o ex-menino pobre e franzino de Aracataca passou a representar de modo praticamente profissional depois de se consolidar como celebridade planetária com o Nobel de literatura de 1982.



Foi essa frente política - ou seriam fundos? - que a crítica internacional atacou com maior apetite em Gabriel García Márquez: Uma Vida, a notável biografia autorizada que o inglês Gerald Martin publicou ano passado, após 17 anos de trabalho, e que chega mês que vem ao Brasil. Não adianta dizer que o homem político interessa pouco, que só se deve julgar um escritor por sua obra: García Márquez se impõe no papel não só por sua estética "terceiro-mundista", influenciadora de gerações de escritores ditos pós-coloniais, mas sobretudo por uma atuação pública de esquerda que sobreviveu à própria ideia de esquerda. Como separar vida e obra de quem prometeu em 1975, após lançar O Outono do Patricarca, que não voltaria a escrever romances enquanto o ditador chileno Augusto Pinochet estivesse no poder - promessa felizmente descumprida?



Admirador de primeira hora de Fidel Castro e seu amigo desde meados dos anos 1970, o escritor ilustre veio a se tornar também seu maior avalista internacional - disparado - à medida que o efeito a longo prazo do bloqueio comercial a Cuba e os novos ares políticos do mundo foram convertendo o ex-líder revolucionário romântico num dinossauro político. Essa amizade custou caro ao conceito de Gabo em certos círculos. Sem esconder sua condição de fã, Gerald Martin encara o tema, mas mesmo assim levou cascudos da maioria dos críticos por se abster de julgar seu personagem, jamais se declarando contra um apoio polêmico que não foi retirado nem quando, no episódio dos fuzilamentos de presos políticos cubanos em 1989 - entre eles um amigo de Gabo, o general Arnaldo Ochoa - o mundo intelectual lhe desabou em cima. O ex-amigo e depois inimigo do peito Mario Vargas Llosa deu-lhe um cruel apelido, que pegou: "Lacaio de Fidel". Natural: será sempre alto - e justo - o preço pago por um artista de peso ao endossar um regime ditatorial que passa sentenças de morte por crimes de opinião. Isso não quer dizer que não haja um tipo de coerência na posição de Gabo - e isso o livro de Martin expõe com clareza, ainda que com economia de adjetivos. Os fatos não são menos eloquentes por serem "autorizados".



A imagem de García Márquez como intelectual público que deles emerge é infinitamente mais complicada que a do escritor consagrado: contraditória, às vezes indefensável e maculada por doses maciças de vaidade e fascínio pelo poder, mas ao mesmo tempo corajosa e com traços de ingenuidade - um escritor, talvez o último de sua linhagem, que sonhou influenciar os rumos da humanidade para além dos livros. Basta levar em conta um mínimo de contexto histórico e cultural para deixar evidente a má vontade da resenha sobre o livro de Gerald Martin que o escritor Paul Berman publicou no jornal The New York Times: "Por que García Márquez escolheu travar tal amizade [com Fidel] é algo que eu não consigo explicar". Quando tenta, Berman só consegue dizer que o escritor "sempre foi fascinado pelo grotesco, pelo patético e pelo improvável." A explicação é outra, claro. Visto por García Márquez - visto, por sua vez, por Martin - Fidel é o maior nome da política latino-americana no século 20, líder de uma revolução que, devido ao bloqueio americano, passou por dificuldades, endurecimentos e erros, mas nada que lhe tirasse o mérito fundamental da auto-afirmação de um continente marcado por séculos de servilismo. Isso é García Márquez puro.



Dickens e Harry Potter



Não se trata de defender sua posição, mas de compreendê-la. Quando narra o famoso caso em que o escritor atuou como guarda-costas de Fidel em visita à Colômbia, em 1994, seu biógrafo não foge da informação e ainda acrescenta ao quadro um detalhe fundamental: ao se prontificar a tomar um tiro no lugar do amigo, o que Gabo expunha, mais do que lealdade cega, era o orgulho de quem se considerava inatingível em sua posição de herói popular - ora, que colombiano arriscaria lhe fazer mal? Com exceção dos trechos em que enaltece os méritos literários do biografado, Martin é um narrador sóbrio, embora nunca menos que gentil com seu personagem. Sóbrio a ponto de, quem sabe a despeito de si mesmo, terminar por ser imparcial. Quando García Márquez brincou que "todo escritor deve ter um biógrafo inglês", talvez não captasse todo o alcance da frase.



Mais embaraçosa sob certos aspectos era sua amizade festiva com Omar Torrijos, ditador populista do Panamá, também detalhada no livro. Desse quebra-cabeça político desponta um García Márquez que, como sua prosa, é mais colorido e barroco do que reto, embora tenda a ser de uma lealdade quase mafiosa a seus amigos - veja-se o modo como se aferrou a Fidel em seus tempos mais difíceis, no momento em que a maré do mundo virava com a ascensão de João Paulo 2º, Margaret Thatcher, Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev. A defesa politicamente incorreta que fez de seu também amigo Bill Clinton no episódio Monica Lewinsky é mais uma confirmação desse estilo.



Personalista e não programático, Gabo cultivou ainda as boas graças de esquerdistas moderados, como o francês François Mitterrand e o espanhol Felipe González - e apoiou até um candidato conservador à presidência da Colômbia, Andrés Pastrana. Em compensação, nunca foi fã de Hugo Chávez, apesar de compartilharem o anti-americanismo. A vaidade transoceânica é a face menos favorável do baixinho Gabo. Fica óbvio o prazer que ele sente no papel de mediador universal: o escritor no labirinto de sua própria influência, sob o peso de uma fama achachapante, brincando de resolver os problemas do mundo.



Esta é a segunda metade do livro, pós-sucesso e pós-Nobel. A primeira, que se lê como um conto de fadas, destrincha a intrincada árvore genealógica que García Márquez se dedicou a espelhar e deformar em suas histórias e o segue passo a passo, quase dia a dia, por meio de uma apuração de rigor maníaco: os primeiros anos de menino praticamente abandonado por pai e mãe, a adolescência entre prostitutas, o horizonte curto de um rapaz pobre perdido na zona bananeira da Colômbia que de repente ganhou uma bolsa de estudos salvadora, virou jornalista e casou-se com seu amor de infância, a discreta Mercedes, com quem teve filhos, correu o mundo e passou por situações de extrema penúria. Até que, em 1967, como se fosse uma pedra filosofal levada a Macondo pelo cigano Melquíades, Cem Anos de Solidão transformou a abóbora em carruagem de ouro. Aqui tem-se a impressão de que Gabriel García Márquez: Uma Vida esgota seu tema - e em certas passagens, reconheça-se, também o leitor. Meticuloso e incansável, Gerald Martin é o tipo de autor que ganha por pontos, mas atravessar suas seis centenas de páginas linha por linha é tarefa recomendada apenas a fãs cascudos.



Uma boa ideia do que foi o impacto de Cem Anos de Solidão pode ser alcançada imaginando-se uma fusão absurda, a de um Charles Dickens moderno com Harry Potter para adultos, temperada por um Jorge Luis Borges que vendesse horrores. Algo que todo mundo era obrigado a ler, que entusiasmava tanto a telefonista do escritório quanto o pós-doutor de Harvard. Nenhum escritor de meio século para cá, talvez mais, chegou perto de operar a mágica desse casamento de alta cultura e cultura de massa com a eficiência de Gabriel García Márquez (talvez Umberto Eco e seu O Nome da Rosa venham em segundo lugar, mas muito longe). Quem, aborrecido com o excesso de informação, resolver zapear o impressionante tijolo de Gerald Martin deve tomar o cuidado de não pular o capítulo 15, com suas 11 páginas comoventes dedicadas ao processo de feitura dessa obra-prima.



Sérgio Rodrigues é jornalista e escritor, autor de Elza, a Garota, entre outros.



O LIVRO

Gabriel García Márquez: Uma Vida, de Gerald Martin. Ediouro, preço a definir.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Don DeLillo troca estilo detalhista e frenético por abordagem íntima ao tratar de conflito no Iraque; livro é engenhoso, mas tem personagens artificiais

Don DeLillo troca estilo detalhista e frenético por abordagem íntima ao tratar de conflito no Iraque; livro é engenhoso, mas tem personagens artificiais




MICHIKO KAKUTANI

DO "NEW YORK TIMES"



Richard Elster, o personagem central de "Point Omega" (ponto ômega), a nova novela de Don DeLillo, é um acadêmico que ajudou o Pentágono a conceituar o quadro intelectual em favor da Guerra do Iraque. Está sendo cortejado por um cineasta chamado Finley, que quer fazer um documentário com ele falando sobre a guerra.

Imagine Paul Wolfowitz, Condoleezza Rice e alguns pensadores do American Enterprise Institute colocados num processador de alimentos, juntamente com Robert S. McNamara do jeito como foi visto no filme "Sob a Névoa da Guerra", de Errol Morris.

Como muitos dos livros anteriores de DeLillo, "Omega" trata da morte, do pavor e da paranoia, e, como muitos desses livros, possui uma arquitetura engenhosa que ganha ressonância quando é vista em retrospectiva. Mas mesmo sua engenharia estrutural inteligente não consegue compensar o retrato atipicamente simplista traçado pelo autor de seu protagonista: um intelectual pomposo que emprega argumentos filosóficos abstratos para descaradamente justificar o envio de milhares de jovens soldados para morrer em uma guerra desnecessária, mas que, de repente, conhece em primeira mão o que significam a morte e a perda, quando sua filha amada desaparece de uma hora para outra.

Em lugar da linguagem agitada, informal e soturnamente espirituosa que empregou com efeito tão eletrizante em "Ruído Branco" e "Submundo", desta vez DeLillo optou pela prosa minimalista, esmaecida, quase beckettiana que empregou em sua novela de 2001, "A Artista do Corpo", e em sua peça "The Day Room", de 1987.

E, em lugar das observações elétricas e altamente detalhadas da vida americana que animam "Libra" e "Mao 2º", ele recorreu a reflexões cansativas e carregadas de presságios sobre a mortalidade e o tempo. Fala-se sobre como o tempo é sentido diferentemente no deserto ou na cidade, fala-se sobre a vida versus a arte e a arte versus a realidade, fala-se sobre um "ponto ômega" em que "a mente transcende toda direção interior", seja lá o que isso possa significar.



Discurso cerebral

De tempos em tempos Elster soa como Donald H. Rumsfeld ou George W. Bush, declarando que "uma grande potência precisa agir", que a América precisa "retomar as rédeas do futuro". Mais frequentemente, porém, DeLillo faz o discurso de Elster sobre a guerra ser propositada -e absurdamente- cerebral: ouvimos que ele escreveu um ensaio sobre a palavra "rendition" (um de cujos significados é a transferência forçada de prisioneiros para serem submetidos a interrogatório em outros países), com "referências ao inglês da Idade Média, francês antigo, latim vulgar e outras origens", e o ouvimos falar sobre seu desejo de uma "guerra haiku", que significaria "nada além do que ela é".

Mais tarde, Elster diz que "alguma coisa está vindo", e prossegue: "Mas não é isso o que queremos? Isso não é o ônus da consciência? Estamos esgotados. A matéria quer perder sua consciência de si. Somos a mente e o coração que a matéria se tornara. É hora de fechar tudo. É isso o que nos move agora".

Os três personagens centrais do romance -Elster, sua filha, Jessie, e o cineasta Finley- são pessoas alienadas, estranhamente desapegadas. São indivíduos que vivem em um estado de limbo, buscando algo que possa dar ordem ou sentido a suas vidas, ou então simplesmente em estado de choque devido ao caráter aleatório e ameaçador da vida moderna.



Personagens irreais

É claro que muitos personagens anteriores de DeLillo compartilham essas características afásicas, mas há algo de desencarnado e genérico nestes três. É difícil acreditar que Elster algum dia foi chamado pelo governo para dar consultoria sobre a Guerra do Iraque, assim como é difícil acreditar que Finley seja de fato um cineasta ou que Jessie faça trabalho voluntário com idosos. Eles mais parecem hologramas que seres humanos.

Após seu período trabalhando para o governo, Elster se isolou em uma casa no deserto "para não fazer nada" exceto ficar sentado e pensar. Ele diz que está lá "para parar de falar". O que ele sente lá "é o tempo envelhecendo devagar. Ficando tremendamente velho. Não a cada dia que passa. Este é um tempo profundo, um tempo que marca época".

Finley foi a esse retiro no deserto para tentar persuadir Elster a estrelar seu filme: o documentário mostrará esse homem em processo de envelhecimento falando sobre a guerra, sobre o período que passou no governo e sobre qualquer outra coisa que quiser falar.

Em Nova York, Finley certa vez apresentou Elster a um filme chamado "24 Hour Psycho", exibido no Museu de Arte Moderna: uma obra de arte conceitual de Douglas Gordon, mostrando o filme de Hitchcock em câmera tão lenta que leva 24 horas para ser exibido. A obra levanta alguns dos mesmos temas que DeLillo parece querer explorar nas páginas do livro -realidade e percepção, identidade e embuste.

É a mesma obra à qual Jessie (e possivelmente, também, um homem que vem seguindo Jessie) assistiu, devido ao desejo de ver um filme em que, nas palavras dela, "nada acontece" parece ser a questão principal. Jessie é uma jovem estranha, com tendência a mergulhar em estados de espírito nos quais "ela parecia estar amortecida para qualquer coisa que pudesse provocar uma reação".

"Seu olhar tinha uma qualidade resumida, ele não alcançava a parede ou a janela", diz Finley. "Achei perturbador observá-la, sabendo que ela não se sentia observada." A mãe de Jessie -a esposa de quem Elster está separado- a enviou para o deserto para afastá-la de um homem que ela conhecera em Nova York.

Embora a chegada de Jessie modifique ligeiramente a dinâmica entre Elster e Finley, pouca coisa acontece por vários dias. Os três ficam sentados, juntos ou separados. Eles comem sanduíches e falam em sair em expedição à procura de carneiros selvagens.

Finley tece fantasias sobre fazer sexo com Jessie; ele pede a ela que se sente com ele e pega em sua mão, mas ela "não dá sinal algum de ter notado". E então, um dia, quando Elster e Finley retornam de fazer compras de comida, a casa está vazia: Jessie desapareceu, não é encontrada em lugar algum.



América estilizada

Embora DeLillo extraia suspense considerável de sua história, erguendo um clima de medo digno de Pinter, há algo de sufocante e sem ar na produção inteira. Diferentemente das pessoas de seus romances mais memoráveis, os três personagens deste livro não vivem em uma América reconhecível ou uma realidade reconhecível.

Eles dão a impressão de serem papéis escritos para uma peça de teatro estilizada e altamente artificial: Elster, um tigre de papel que é preparado para ser derrubado do pedestal; Finley, seu interlocutor, um perdedor esquecível, e Jessie, a vítima que lembra uma sílfide e cujo desaparecimento vai ensinar uma lição a seu pai. São papéis que precisam desesperadamente de atores que lhes deem substância e vida.

Tradução de Clara Allain











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