sábado, 18 de agosto de 2012


DE  TODO PROSA

Sergio Rodrigues

O Twitter, quem diria, pariu uma obra-prima: ‘Caixa preta’

É possível fazer literatura de qualidade no Twitter? Essa pergunta, que tem andado no ar há alguns anos, não teve até agora (terá um dia?) melhor resposta do que a que a escritora americana Jennifer Egan – autora do notável “A visita cruel do tempo”, resenhado aqui – deu em maio deste ano ao publicar no perfil da revista “The New Yorker” uma história de espionagem em forma de flood de tweets chamada Black box.
Quem ainda não leu pode acessar o conjunto inteiro (em inglês) no site da revista. Ou acompanhar a tradução, “Caixa preta”, que a editora Intrínseca publicará a partir desta segunda-feira, dia 20, até o dia 30, sempre das 22h às 23h, em sua conta no Twitter (@intrinseca). Ao fim desse prazo, a narrativa completa será lançada como e-book. A iniciativa é oportuna: uma “Caixa preta” basta para redimir quaisquer “Cinquenta (ou até mais) tons de cinza”.
Na Flip deste ano, em que dividiu uma mesa com Egan, o escritor inglês Ian McEwan não mediu elogios a Black box: “É uma das melhores coisas que leio em anos”. Os espectadores que não conheciam o texto podem ter pensado que o autor de “Serena” estava apenas exercitando uma gentileza de veterano com sua companheira de palestra, que além de escritora menos consagrada é uma mulher bonita.
Errado. McEwan não fez favor algum a “Caixa preta”, um folhetim cibernético que alia o entretenimento de uma estupenda história de espionagem (com laivos de ficção científica) a um tour de force formal. O rigor quase maníaco no tratamento da linguagem – com o uso nada gratuito da narração em segunda pessoa, que em “A visita cruel do tempo” tinha sido menos bem sucedido – reenergiza a arte narrativa em vez de debilitá-la. Como deve ser, mas raramente é.
Recomendado especialmente a quem perdeu tempo com a recente “polêmica” Paulo Coelho/James Joyce. A provocação sobre o “Ulisses” caber num tweet – que alguns escritores tratam hoje na “Folha de S.Paulo” com sábio espírito de gozação – revela toda a sua profundidade de jogada de marketing diante do que Jennifer Egan faz caber numa série deles.

domingo, 22 de julho de 2012



Antologia da 'Granta' afirma novos talentos, mas traz decepções
*Por Felipe Charbel

"Granta — Os melhores jovens escritores brasileiros", com textos de 20 autores. Editora Alfaguara, 288 páginas. R$ 34,90

A seleção de textos para a edição da prestigiosa revista inglesa “Granta” dedicada aos melhores escritores brasileiros com menos de 40 anos causou alvoroço no campo literário nacional, já diagnosticado como carente de espaços de prestígio. Muita coisa estava em jogo: traduções, bons contratos, visibilidade e sobretudo a chancela da marca. Num sistema literário em que as relações de compadrio às vezes falam mais alto que o debate franco, um carimbo desses é extremamente cobiçado.

Mas esta edição da “Granta” é apenas uma antologia de ficção, e não uma ontologia da literatura brasileira atual. Fossem outros os selecionados, outro cenário seria instituído. Por isso é inútil cravar diagnósticos sobre os rumos da literatura brasileira com base nos pontos de convergência entre os textos. A melhor forma de falar sobre a coletânea é comentando os trechos de romances e os contos, tomados individualmente ou no horizonte das obras dos seus autores.

Não é coincidência que os melhores textos venham de escritores que publicaram recentemente trabalhos expressivos: Daniel Galera (“Mãos de cavalo”, 2006), Michel Laub (“Diário da queda”, 2011) e Ricardo Lísias (“O livro dos mandarins”, 2009). São autores que sobressaem pelo rigor formal, o investimento na construção dos personagens, o estilo bem marcado e “detectores de bobagem” eficientes: não deixam passar quase nada que faça o leitor torcer o nariz.

Leia mais: Jurado da 'Granta', Cristovão Tezza diz que antologia aponta renovação


Mesmo sendo parte de um romance inédito, “Apneia”, de Galera, pode ser lido como conto, graças à habilidade do autor de imprimir e sustentar tensão dramática, sem apelar para um desfecho forçado. Não há truques ou guinadas mirabolantes. Apenas sensibilidade e técnica, evidentes já na primeira cena, que insinua todo o conflito. “Animais” seria identificado como sendo de Laub mesmo que não levasse seu nome. O conto tem o estilo seco de “Diário da queda”, os parágrafos curtos numerados, as indecisões de um narrador evasivo que foge do seu centro até atacá-lo num bote certeiro: o efeito alcançado é a vitória por nocaute que Cortázar diz ser própria do conto. Lísias segue a trilha de “O céu dos suicidas” (2012) e investe na autoficção. “Tólia” é narrado por um “Ricardo Lísias” que parou de escrever e se tornou enxadrista. Também aqui é nítida a impressão digital do autor: o conto funciona como amostra representativa da sua poética.

Carola Saavedra poderia formar um quarteto com eles, se não tivesse escolhido enviar o texto “Fragmento de um romance” — estilhaço sem autonomia, extrato pálido de seu universo, muito aquém de “Toda terça” (2007) e “Flores azuis” (2008).

Das apostas da revista — autores que publicaram pouco ou por editoras pequenas — destacam-se, com pequenas ressalvas, os contos de Laura Erber, Cristhiano Aguiar e Vinicius Jatobá. Bem escritos, formalmente sólidos, ainda que gravitando ao redor de outras poéticas, despertam interesse pelo que seus autores virão a produzir.

“Aquele vento na praça”, de Erber, tem uma atmosfera que recende a Bolaño, e nos seus melhores momentos explora com competência as fronteiras entre literatura e artes visuais. Ávido por demonstrar um repertório consistente de técnicas narrativas, Aguiar apresenta em prosa poética uma história que tem como pano de fundo as enchentes do Nordeste. Seu conto, “Teresa”, é bem amarrado, mas de um lirismo às vezes maçante. “Natureza-morta”, de Jatobá, também peca pelo excesso de virtuosismo: bem resolvido exercício de estilo, em que uma “câmera” passeia numa casa e proporciona entradas pela tessitura temporal das histórias vividas ali, o conto me deu a impressão de que não há muito sendo dito, e que o aparato faulkneriano é um fim em si.

Os demais textos ou se enquadram na zona sonolenta entre o irregular e o certinho, ou chamam a atenção pela proposta ruim e a realização ainda pior.

Assim como “Procura do romance” (2011), último livro de Julián Fuks, seu conto “O jantar” me pareceu um simulacro de grande literatura afogado em beletrismo. No texto, o autor do ótimo “Histórias de literatura e cegueira” (2007) se agarra à relevância do seu material — as memórias da ditadura argentina — como se isso, a priori, pudesse dar consistência à narrativa e aos personagens. Não há singularização, só ilustração.

“Violeta”, de Miguel Del Castillo, parte desse mesmo investimento externalista, mas o agravante, aqui, é a idealização da luta armada por um narrador cujos conflitos mal são esboçados. Já ao ler o conto “O que você está fazendo aqui”, de Luisa Geisler, tive dificuldade de visualizar as cenas e dar contorno aos personagens. Para piorar, a autora se vale de um penduricalho tolo, a expressão “[Weltanschauung]” lançada 21 vezes para demarcar sabe-se lá o quê (talvez sua função seja a de conferir sabor sociologizante a uma narrativa insípida, em que a principal constatação do protagonista é a de que as pessoas inspiram e expiram, sobem e descem degraus).

O sociologismo também é a marca de “Antes da queda”, de J. P. Cuenca, quase um panfleto com divagações sobre o mercado imobiliário carioca. No texto, o autor parece mais preocupado em lançar suas “sacadas” do que em construir personagens e tensões. Já em “O Rio sua”, Tatiana Salem Levy se vale de uma constrangedora teoria do ethos carioca (“fala com o corpo”, “não sabe conviver com a dor”, “a tristeza sai pelos poros”) para apresentar um Rio para inglês ver — clichê adequado a uma prosa que acumula clichês: Pão de Açúcar, escola de samba, caipirinha, baile funk, réveillon em Copacabana.

“Valdir Peres, Juanito e Poloskei”, de Antonio Prata, é um conto-placebo: narrativa leve sobre um garoto de classe média nos anos 80, divertida, amarradinha, inócua. Mesmo caso do trecho de romance enviado por Vanessa Barbara, que, com personagens bidimensionais, acaba sendo tão insosso quanto a promessa do título: “Noites de alface”.

Alguns textos começam bem e vão minguando. O humor “Have-you-ever-noticed?” à la Seinfeld de Leandro Sarmatz funcionaria melhor não fossem as generalizações sobre “os filhos da revolução”. “Mãe”, de Chico Mattoso, tem uma premissa interessante — um personagem que não para de imaginar a morte da mãe — mas a realização é duvidosa. Javier Arancibia Contreras, se demonstra competência para criar uma atmosfera claustrofóbica, joga tudo pelo ralo com um desfecho fácil. “Faíscas”, de Carol Bensimon, é correto, bem escrito, mas se perde nos lugares-comuns de road movies.

Por sua vez, “F para Welles”, de Antônio Xerxenesky, começa mal e até que termina bem. A aposta no farsesco destoa da mesmice, mas o resultado final está longe de ser consistente. Já “Temporada”, de Emilio Fraia, não desperta interesse em momento algum, com suas histórias em paralelo conectadas numa imensa forçação de barra. Um conto que dá a impressão de se autodestruir ao fim da leitura. Assim como boa parte dos textos dessa “Granta” — que operam na mediania, às vezes quebrada com momentos de grande literatura. E a grande literatura sempre surge em conta-gotas.


*Felipe Charbel é professor de Teoria da História na UFRJ

sábado, 21 de julho de 2012

Antologia de autores populares se apoia em falso dilema entre narrativa e experimentação

'Geração subzero' mostra impasses da ficção de entretenimento

Antologia de autores populares se apoia em falso dilema entre narrativa e experimentação


*Por João Cezar de Castro Rocha

"Geração subzero: 20 autores congelados pela crítica, mas adorados pelos leitores", organizado por Felipe Pena. Editora Record, 322 pgs. R$ 39,90


A antologia organizada por Felipe Pena, “Geração subzero”, possui um subtítulo muito bem escolhido. Trata-se do primeiro manifesto da literatura brasileira escrito na era do twitter: “20 autores congelados pela crítica, mas adorados pelos leitores”.

Na introdução, o organizador desenvolve o tema: “A literatura brasileira contemporânea tem poucos autores dispostos a contar uma boa história, sem a preocupação de produzir experimentalismos e jogos de linguagem”.

Seria útil nomear esses hipotéticos escritores, ou o espírito polêmico se dilui na generalização estéril. Considero equivocada a avaliação de Pena, pois a novidade mais relevante da literatura brasileira refere-se precisamente à superação do falso dilema entre experimentação e narrativa.

Porém, esse anacrônico hiato é a base de sua crítica, estimulando a publicação programática de escritores comprometidos com a defesa da “literatura que considera o entretenimento um valor estético”. Como se esclarece, entreter é a arte da “sedução pela palavra”.

O poeta, crítico e tradutor José Paulo Paes já havia refletido acerca da necessidade de conquistar o público leitor, em ensaios como “Por uma literatura brasileira de entretenimento” (1990). De igual modo, a crítica Marlyse Meyer realizou estudos pioneiros acerca de uma “ficção popular” no século XIX, assinalando seu diálogo com autores como Machado de Assis. Porém, eles nunca pensaram em termos binários.

Afinal de contas, existe uma única forma de “entretenimento”? E ela se confunde necessariamente com os pressupostos defendidos por Pena?

Daí, a introdução da antologia não pode evitar um involuntário paradoxo, pois Pena valoriza demais a crítica universitária, atribuindo-lhe a capacidade de destruir carreiras! Trata-se de ato falho: hoje em dia, crítico algum possui influência suficiente para determinar o êxito ou fracasso de um autor. O subtítulo da antologia, portanto, alude a um poder que há décadas deixou de existir.

Não é tudo: se, de fato, os postulados do “Manifesto do Grupo Silvestre” — lançado em 2010 por vários autores, entre eles Felipe Pena, “em defesa da narrativa, do entretenimento e da popularização da literatura” — são corretos, então, a “Geração subzero” deveria ter sido publicada sem reflexão alguma! Bastaria uma nota sucinta, pois assim o leitor entraria em contato imediato “simplesmente [com] o prazer da leitura”.

Como definir o prazer da leitura? No juízo de Paul Valéry, por exemplo, ele se encontra na própria dificuldade. Já no critério de Pena, ele reside na fluência da narrativa. Leia-se o oitavo mandamento do “Manifesto do Grupo Silvestre”: “Gostamos de enredos ágeis e cativantes”.

“Geração subzero” possui o mérito de ampliar o horizonte da discussão, por meio da incorporação de autores que se dedicam prioritariamente a gêneros considerados “menores”: terror, thriller, ficção científica, histórias de vampiros etc. Muitos dos selecionados apresentam números eloquentes: Thalita Rebouças ultrapassou a marca de um milhão de exemplares vendidos; André Vianco já vendeu 700 mil livros. Tais números são expressivos e exigem uma reflexão séria. Contudo, dados brutos nem sempre valem o quanto pesam.

Ora, com poucas exceções — e aqui incluiria Thalita Rebouças e Luiz Bras (pseudônimo usado pelo escritor Nelson de Oliveira, organizador das antologias “Geração 90” e “Geração 00”, em alguns livros) — os textos precisariam de um trabalho rigoroso de edição. Há de tudo um pouco nas vinhas desta antologia: lugares-comuns em série; finais previsíveis; escolhas vocabulares difíceis de justificar; estruturas sintáticas que soam como inglês mal traduzido.

Em “O preço de uma escolha”, Ana Cristina Rodrigues imagina uma narrativa à la Blade Runner. Talvez o hábito de leituras em língua inglesa favoreça a dicção de suas frases: “Muito para seu desgosto e constrangimento, Rita também era registrada: neo-humano telepata nível beta e telecinética alfa mais”. A sintaxe e mesmo a pontuação parecem uma tradução literal do inglês. O efeito poderia ser até interessante, mas exigiria consciência artística.

Em “A filha do diabo”, Luis Eduardo Matta cria uma trama de possessão diabólica, reproduzindo ponto por ponto o roteiro de um thriller, cujo final anuncia a sequência do filme: “Da porta do quarto, João assistiu, impassível, ao pai ser dilacerado e morto pela turba furiosa. Não havia mais nenhum ferimento ou mancha em seu corpo. Apenas um olhar gélido e uma insinuação de sorriso”. João, claro, é o próprio demônio.

Sérgio Pereira Couto, em “Dê-me abrigo”, reescreve a trama do clássico de Richard Condon, “The Manchurian Candidate”, ambientando o conto no contexto do terrorismo internacional. A música dos Rolling Stones, “Gimme Shelter”, é transformada em instrumento pavloviano. Afinal, “as músicas despertavam sentimentos guardados em algum recanto esquecido de sua psique”. Lugares-comuns desse nível dominam a escrita de quase todos os textos.


Autores podem aprimorar capacidade de expressão

Aliás, a reescrita é o procedimento-chave da antologia. Carolina Munhóz, em “Outra vez na escuridão”, produz uma fusão do misticismo de Paulo Coelho com a magia de Harry Potter para refletir sobre a carreira e a morte de Amy Winehouse, como as últimas frases sugerem: “Mas ela teimava em dizer não. E não. E não”. Afinal, “muitos humanos talentosos jogavam fora os dons comedidos pelos deuses”. Não seriam dons “concedidos”?

O problema é recorrente em outros textos. No conto de Vera Carvalho Assumpção, o leitor é informado: “Na alba do amanhecer, a cidade toda andou até o rio para ver a cruz”. O pleonasmo involuntário parece traduzir uma sequência cinematográfica.

Paro por aqui, pois não desejo inviabilizar o diálogo. Um crítico honesto deve parabenizar tanto o organizador pela iniciativa inovadora quanto os autores pela comunicação estabelecida com os leitores. Contudo, ele também não pode deixar de se surpreender com a ingenuidade linguística e narrativa da maioria dos selecionados.

Muitos já conquistaram um público numeroso e estão de parabéns. O próximo passo, porém, exige que se dediquem a aprimorar sua capacidade de expressão. Todos terão muito a ganhar: a literatura e o público leitor. No fundo, é só o que importa, pois entretenimento não é sinônimo de descaso.


*João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura da Uerj e autor de “Crítica literária: Em busca do tempo perdido” e “Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo”

segunda-feira, 9 de julho de 2012

DO TODOPROSA

Sergio Rodrigues

Stefan Zweig, Borges e Fernando Pessoa encerram a Flip



Como já é tradição, a mesa de encerramento da 10ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) reuniu alguns dos autores convidados do evento para a leitura de seus livros favoritos. “Essa mesa celebra a razão de ser da festa: a literatura”, disse Miguel Conde, que apresentou a sessão Livro de Cabeceira, mediada pela criadora do evento, Liz Calder. Entre os escritores lidos, estavam o austríaco Stefan Zweig, o argentino Jorge Luís Borges, a brasileira Lygia Fagundes Telles e o português Fernando Pessoa.
Ao todo, nove convidados emprestaram a voz ao encerramento. Os primeiros a ler foram os francófonos Amin Maalouf, libanês, e Dany Laferrière, haitiano. Maalouf selecionou um texto do alemão Zweig, autor de Brasil, País do Futuro, e Laferrière optou pelo pedaço de um conto do argentino Jorge Luís Borges, Lunes, O Memorioso, sobre um rapaz com uma grande memória. “Há 30 anos, quando era um operário, entrei numa livraria e escolhi o livro mais elegante e livre da prateleira”, disse o escritor, lembrando seu encontro com o conto de Borges.
Depois de Laferrière, a portuguesa Dulce Maria Cardoso leu um excerto do livro Os Passos em Volta, de seu conterrâneo Herberto Hélder. Nos contos que compõem a obra, o autor levanta questões sobre identidade. O jornalista Millôr Fernandes, morto este ano, foi lembrado pelo gaúcho Luís Fernando Veríssimo, que apresentou parte do conto Imaginação.
As leituras se seguiram com o espanhol Vila-Matas, em sua terceira mesa só nesta edição. “Vou ler o mesmo poema que li aqui na Flip de 2005, chamado Ao Volante de Chevrolet pela Estrada de Sintra. Não tenho motivos para mudar, porque não encontrei um poema melhor”, disse o catalão sobre o poema feito por Fernando Pessoa sob o heterônimo de Álvaro de Campos. “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra, / Ao luar e ao sonho, na estrada deserta, / Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco.”
Em seguida, a cubana Zoé Valdés recitou um poema da brasileira Lygia Fagundes Telles, que conheceu em Aix-de-Provance. “Sua literatura é música e desejo contido”, disse. O poema escolhido foi O Moço do Saxofone. O espanhol Javier Cercas e o colombiano Juan Gabriel Vásquez escolheram trechos da segunda parte de Dom Quixote e do romance A Estalagem, do chileno Juan Carlos Joanete, respectivamente.
Único a falar inglês na mesa, o britânico Ian McEwan foi buscar no irlandês James Joyce o trecho desejado. “É um dos melhores contos do século XX”, disse, referindo-se a Os Mortos, da coletânea Dublinenses. A mesa fechou a programação oficial da 10ª edição da Flip, que teve público recorde e ainda não tem data fechada para 2013.
Raissa Pascoal

08/07/2012
às 19:56 \ Vida literária

Shteyngart e Kureishi: diversão e arte

Gary Shteyngart, americano nascido na Rússia, e Hanif Kureishi, inglês de ascendência paquistanesa, protagonizaram uma das mesas mais divertidas do ano – mas nem por isso destituída de seriedade. Numa divisão um talvez grosseira – mas não muito – pode-se dizer que coube ao histriônico Shteyngart fazer o auditório gargalhar, com seu humor judaico autodepreciativo à la Woody Allen (com quem tem razoáveis semelhanças físicas), enquanto Kureishi levou a conversa para campos graves como a relevância da literatura – que ele defende com ênfase – no mundo contemporâneo.
Autor de romances satíricos como “Absurdistão” e “Uma história de amor real e supertriste”, Shteyngart apresentou o último como uma história passada num “futuro em que uma América completamente iletrada está prestes a desmoronar. Ou seja, terça-feira que vem”. Como o livro satiriza a cultura digital e as redes sociais, acrescentou, teve que contratar um jovem para lhe ensinar a usar essas coisas. “Foi quando passei a ter um iPhone. É uma troca. Aprendi a usar o iPhone, mas nunca mais li um livro. Não leio há cinco anos.”
Afirmando que terceiriza para escritores indianos a tarefa de escrever seus livros e recebe direitos autorais em queijo parmesão, Shteyngart disse que escrever sobre sexo, em seu caso, foi uma forma de compensação. “Comecei a escrever sobre sexo porque não estava fazendo nenhum sexo. Foi esse o motor dos meus dois primeiros romances. Então, aos 37 anos, eu finalmente fiz sexo. Foi muito bom, melhor do que nos livros.”
Roteirista de “Minha adorável lavanderia” e romancista de “O buda do subúrbio”, Kureishi – que esteve na primeira Flip, em 2003 – disse que começou a escrever “para não enlouquecer”. “Cresci num subúrbio de Londres nos anos 1960, quando a cidade ainda não era multicultural, e sendo filho de imigrantes sofria abusos e perseguições diárias. ‘De onde você é? ‘, me perguntavam. ‘Daquela casa ali’, eu dizia. ‘Não, de onde você é de verdade, de verdade mesmo?’Eram perguntas muito filosoficas”, disse o escritor inglês, deixando claro que a palavra humor abarca efeitos cômicos muito diferentes. “Foi para responder a essas questões a que eu comecei a escrever.”
A suposta irrelevância cultural da literatura – um dos temos preferidos do espanhol Enrique Vila-Matas, outro convidado da Flip 2012 – não é algo com que Kureishi concorde. “É muito fácil ser cínico sobre literatura no Ocidente. No Paquistão, por exemplo, onde o fundamentalismo islâmico é puro fascismo, ninguém espera ouvir a verdade de ninguém, em momento algum. O único lugar em que ela ainda pode ser encontrada é um livro”.

08/07/2012
às 19:05 \ Vida literária

Drummond em alta voltagem emocional


Carlito (centro) entre Eucanaã e o mediador Flavio Moura: poema inédito

O depoimento em vídeo de um poeta que conviveu com Carlos Drummond de Andrade e um poema inédito de outro poeta, mais jovem, que o chamou de “uma espécie de Buda” foram dois dos pontos de maior voltagem emocional de toda a Flip 2012. Ambos se deram em rápida sequência hoje à tarde, na mesa “Drummond – o poeta presente”. O depoimento em vídeo foi de Armando Freitas Filho, autor de “Raro mar”. O poema inédito, de Carlito Azevedo, autor de “Monodrama”. O também poeta Eucanaã Ferraz completou a tarde em tom mais sóbrio – o que o contido Drummond certamente aprovaria.
“Era um homem muito carinhoso, eu às vezes achava até que ele tinha pena de mim”, contou Armando. “ Aquela cara litográfica, limpa, limpa, parecia que tinha saído do banho. Aqueles olhos azuis, duas bolas de gude azuis. Era um homem muito simples, mas escrevia aquelas coisas extraordinárias… Ele escre via como quem faz a barba a seco, sem água, sem espuma e sem sabão… Escrevia com o próprio fígado, tirava dele, mas aquilo se transformava num discurso geral. Drummond não escrevia para ninguém mas escrevia para todos, isso era o que mais me impressionava, como ele conseguia abrir esse arco partindo do próprio fígado. Carlos Drummond, mesmo quando de luto, é uma festa. Você pode esquecer a letra do verso, mas você leva o sentimento que o verso trouxe.”
Carlito Azevedo acentuou o aspecto emocional da mesa. “As pessoas quebram”, disse, esparramado na cadeira sobre o palco, com toda a linguagem corporal de quem fala do fundo de uma depressão. “É quase como se Drummond fosse uma espécie de Buda e a poesia dele me ensinasse a iluminação pelo desapontamento. Lendo Drummond, descobri que as coisas têm que quebrar, e só quando elas quebram você consegue ver como são por dentro se tiver um bom – como ele diz – sentimento do mundo.” Em seguida, leu um poema inédito em homenagem a Drummond, afirmando ser a primeira coisa que escreve desde que terminou, há três anos, o criticamente festejado livro “Monodrama”. “Querido príncipe…”, começa o belo texto, que ao fim foi aplaudido de pé e demoradamente pelo auditório.
Eucanaã Ferraz, autor de “Cinemateca”, veio por último, depois de dois momentos de grande intensidade, e foi mais contido e apolíneo. Falou do percurso acadêmico de suas leituras de Drummond, dando crédito a diversos críticos como guias de leitura. “De certo modo”, afirmou, “o Drummond oferece o mesmo teatro do (Fernando) Pessoa, que leva às últimas conseqüências a fragmentação, a multiplicidade, aquilo a que a moderrnidade nos conduziu. Ao mesmo tempo, é como se Pessoa tivesse dado a isso uma espécie de arrumação. Nesse sentido o Drummond foi ainda mais radical, porque não fez a arrumação. Um livro contradiz o outro, um poema contradiz o outro dentro do mesmo livro, um verso contradiz o outro dentro do mesmo poema. O Drummond sempre nos deixa numa enrascada.”
DE EPOCA

Antonio Girom

O romancista americano Jonathan Franzen, de 52 anos, é a estrela da noite de hoje (6) na Flip. E um dos três destaques da festa, ao lado de Jannifer Egan e Ian McEwan. Os três autores chegaram entre quarta e quinta-feira à cidade. McEwan fez uma aparição discreta na festa da Granta, Jennifer foi com a família (marido e dois filhos) a um passeio de barco – e Franzen, conforme o esperado, ficou longe do burburinho. De fato, está mais fácil avistar bem-te-vis na cidade do que ele. Hospedou-se em uma pousada distante e evitou se exibir em público. Passou a manhã de quinta-feira no mato, observando pássaros. “Estou muito feliz de estar no Brasil”, disse ontem na entrevista coletiva, em uma rara aparição, diante dos poucos repórteres que se dignaram a ficar longe do evento da Granta, o hype da temporada. “Eu imaginava o país, tinha fantasias sobre ele, e agora estou aqui. Rio de Janeiro é uma cidade linda, me lembrou de cara Chicago – que também é linda. Passei a manhã na selva. Meu encontro com os pássaros foi estimulante.”
Na coletiva, Franzen manteve o sorriso e a atitude de bom menino que lhe são características. Respondeu pacientemente a perguntas banais, que ele ia rotulando. “Ah, esta é a famosa pergunta sobre o processo criativo.” “Sim, a pergunta sobre como crio personagens”. Mesmo assim, houve momentos interessantes, como quando foi perguntado sobre religião: “Eu tenho formação religiosa cristã liberal. Até mais ou menos os 13 anos, eu me dediquei à igreja. Daí, entre os 9 e 1 anos, passei da religião ao culto da arte e da literatura. Mas respeito as pessoas religiosas.”