terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Em Defesa da Obra

Em defesa da obra

As corporações da mídia querem que os escritores trabalhem de graça, não façam arte e exponham a vida privada na internet – e contam com o apoio de Paulo Coelho

por Bernardo Carvalho


A primeira coisa que me vem à cabeça quando falam das novas relações entre público e privado é a ideia de autoria. Provavelmente, por vício de escritor – e de escritor anacrônico. Há alguns anos, a revista The New Yorker publicou uma longa reportagem sobre a disputa entre os herdeiros de James Joyce e uma pesquisadora da Universidade Stanford, na Califórnia, pelos direitos de publicação da correspondência do escritor. O artigo pintava um quadro favorável à pesquisadora, apresentada como vítima dos herdeiros de Joyce, que proibiam o acesso à sua correspondência íntima. E a transformava em símbolo da necessidade de uma legislação mais democrática, condizente com as exigências estabelecidas pelo uso da internet. A reportagem estava em sintonia com os princípios do Creative Commons e de outras propostas alternativas ao tradicional, restritivo e cada vez mais insustentável copyright, o direito autoral.



O Creative Commons foi concebido como um desdobramento natural do mundo informatizado. Nele, cada vez mais se consolida o consenso em torno da visibilidade absoluta e do acesso irrestrito às informações e às obras, como valor democrático básico, em conformidade com o que prega o WikiLeaks na esfera da política. A utilidade do Facebook e do Twitter, como ferramentas para burlar a censura e organizar movimentos pró-democracia em ditaduras como Irã, China e, mais recentemente, nos países árabes do Mediterrâneo, é um forte argumento a favor desse consenso.



A reportagem deplorava que uma obra de interesse público (cartas que revelariam a vida privada do escritor) estivesse nas mãos de herdeiros estúpidos, que, por pudor ou ganância, dispunham de seus direitos hereditários contra o bom-senso, a livre-circulação da informação e, em consequência, o progresso da humanidade. O Creative Commons seria, então, uma forma de libertar as obras do controle dos autores e de defender o público. E também restringiria o direito despótico de herdeiros sobre obras com as quais eles não têm, necessariamente, algo a ver.



Não haveria nada errado nesse ajuste de contas, até porque o Creative Commons permite ao autor decidir o quanto deseja ceder dos seus direitos. Não há nada de errado em defender o bem comum e o progresso de todos contra as restrições impostas pela propriedade privada e o privilégio de poucos. Mas quem é que falou em propriedade privada? É aí que começam os problemas e contradições.







Creative Commons – assim como o “licenciamento global”, que propõe ao internauta pagar uma taxa proporcional à quantidade de downloads que fizer – busca adaptar o direito autoral a uma situação de fato e irreversível. Essas iniciativas buscam alternativas a esse direito, condenado à morte pela nova economia da informação. Mas, a despeito das boas intenções, elas só se propõem a agir no lado mais frágil do direito de propriedade, aquele que diz respeito ao trabalho intelectual individual e, sobretudo, ao trabalho intelectual circunscrito às artes e à cultura. Por quê?



Porque é apenas o direito de propriedade intelectual individual que cria obstáculos à “nova” relação de propriedade. Nenhuma empresa abrirá mão de suas patentes científicas ou industriais em nome da visibilidade, do bem comum ou do direito à informação. A começar pelas próprias corporações de mídia eletrônica – elas estão interessadas, isto sim, na adoção de um modelo flexível de licenciamento e difusão de conteúdo.



O Google, por exemplo, não pretende tornar disponível a usuários e competidores o saber por trás de seus serviços – e não é por acaso que mantém sigilo desse saber, a ponto de nenhuma informação sobre a empresa aparecer no próprio Google, que em princípio deveria ter acesso a tudo. Ninguém, a começar pelos fundadores do Creative Commons, pensa em pôr em questão o direito de herança e de propriedade sobre bens materiais e corporativos.



A propriedade intelectual é um instrumento recente do capitalismo: o direito de autor só foi internacionalmente reconhecido e oficializado no final do século xix, a partir da Convenção de Berna. No capitalismo tardio informatizado, entretanto, ela se tornou um problema e uma contradição para as corporações cujo trunfo é a circulação de conteúdo intelectual, não sua produção. Para elas, é fundamental que o trabalho intelectual seja barato ou gratuito. E, para isso, é preciso que ele seja indiferenciado, que o seu valor seja medido unicamente de modo quantitativo, cumulativo – e não qualitativo ou subjetivo. É imprescindível que o valor seja determinado pela regra, e não pela exceção.



A exceção fica ainda mais desautorizada e desprestigiada – e parece ainda mais antidemocrática e elitista – quando já não há lugar para o direito autoral individualizado. Não é fortuito que associações de roteiristas de cinema tenham passado a reivindicar o reconhecimento de seus membros como autores literários – e a defender uma mudança na lei dos direitos autorais que a torne mais abrangente. Com isso, eles reiteram o princípio de indiferenciação que tanto interessa aos grandes conglomerados da internet. Roteiristas trabalham com normas e regras. Há regras para ser um bom roteirista, e elas atendem sobretudo ao modelo do cinema industrial. Não existe bom roteirista para filme experimental, por exemplo. O bom roteirista é o que domina a excelência de uma série de normas dramáticas e narrativas.



A exceção, nas artes, é imponderável e intransmissível. E está necessariamente ligada a um ideal de individualidade, de subjetividade e de autoria individual. A norma faz parte do domínio da indiferenciação, onde todos se equivalem, podem dançar com pequenas variações, mas conforme a mesma música,determinada por uma série de regras e diretrizes. Sem querer, ao reivindicar o mesmo reconhecimento dos autores literários, os roteiristas endossam a vocação do mercado, sob a égide da internet, e a tendência crescente de associar valores subjetivos e qualitativos de exceção ao autoritarismo. O único valor possível e democrático passa a ser o do direito à expressão e à opinião, em nome de uma igualdade sem hierarquias, capaz de tornar equivalente tudo o que se escreve, desde um blog, um roteiro de cinema, até um romance de Joyce.







uma entrevista recente ao New York Times, apresentado como modelo de escritor para os novos tempos, por saber se servir da gratuidade da internet para vender ainda mais livros, Paulo Coelho declarou que Borges foi a sua maior influência. E o entrevistador não o contestou. Seja porque não tinha condições críticas para tanto, seja porque isso não interessava ao objetivo da entrevista. Banidos os critérios da subjetividade, já não há como distinguir entre um texto de Joyce e um Paulo Coelho ou um apócrifo, por mais incoerente que seja a impostura aos olhos de um leitor educado. A única medida de prestígio passa a ser o número de acessos ou de leitores. Até aí, trata-se de um velho princípio de mercado. A única diferença é que, ao suplantar todo e qualquer valor subjetivo, o mercado agora permite a Paulo Coelho dizer que é herdeiro de Borges sem causar espécie.



A consequência é simples: enquanto tudo for percebido como equivalente, não haverá necessidade de pagar (mais) pela diferença. E se o alcance da diferença é sempre restrito, seu valor, pela lógica do mercado, só pode ser insignificante. O valor da diferença é substituído pelo da quantidade. Hoje, temos acesso a tudo, mas sabemos cada vez menos distinguir uma coisa de outra. E é essa substituição, basicamente, que distingue a escola da internet. E a crítica da opinião. E o que faz da educação um paradoxo dentro dessa nova economia.



A escola é o lugar da transmissão e da regra, mas nela somos forçados a aprender o que não sabemos e mesmo o que não queremos, e só essa obrigação é capaz de alargar o nosso conhecimento. O aprendizado depende de esforço. Já na internet, procuramos o que já conhecemos, ou o que tem algo a ver com o que já conhecemos. O interesse das novas corporações é capitalizar esse prazer, não contradizê-lo. Em princípio infinita, a amplitude do campo de conhecimento na internet, pelo próprio modo da busca, passa a ser repetitiva e limitada, homogeneizante. A ausência de hierarquias culturais e subjetivas faz parte do próprio princípio de busca na internet. E é revelador que a grande invenção, imediatamente patenteada pelo Google, tenha sido um algoritmo que permitiu estabelecer uma nova regra de ordenação nos sites de busca, uma nova hierarquia, baseada no cruzamento dos sites e páginas individuais mais acessados, num sistema que se autorreproduz, associando prestígio e valor ao número de links e acessos.







nselm Jappe, um jovem crítico marxista (é difícil pensar hoje numa definição mais anacrônica), mostrou num livro recente, Crédit à Mort, como certa esquerda, na sua luta contra o elitismo, quis “abolir as hierarquias onde elas podem ter um sentido”. Por exemplo, as hierarquias “da inteligência, do gosto, da sensibilidade, do talento”. Só a existência de uma escala de valores subjetivos pode negar e contestar “a hierarquia do poder e do dinheiro, que impera quando negamos toda hierarquia cultural”. O narcisismo é o contrário da diferenciação e da exceção. “Não ajudar alguém a desenvolver sua capacidade de diferenciação significa condená-lo a um infantilismo perpétuo”, escreve Jappe. “A virtualização do mundo é também um estímulo aos desejos infantis todo-poderosos.”



Não é à toa que essa crítica nos soe tão anacrônica. Ela insiste na diferença entre crítica e opinião. E no mundo da internet, a crítica é cada vez mais desvalorizada como autoritária e coercitiva, porque impõe valores, em parte subjetivos, que não são necessariamente os da maioria. A crítica contradiz o mundo do Eu, o mundo da opinião. Ela pressupõe uma hierarquia subjetiva, um sujeito de autoridade, que supostamente sabe mais que os outros, enquanto a opinião passa a representar a igualdade do que é comum e imediatamente acessível a todos. A opinião é o juízo ao alcance de todos, baseado no gosto e na experiência de cada um, sem hierarquias nem coerções. E, se há um consenso em torno da democracia em todas as esferas sociais, não haveria por que não pensar que a arte também deve ser democrática.



É sintomático, nesse sentido, que a avaliação da literatura, ao contestar a imposição arbitrária de um cânone, tenha passado da análise da dimensão subjetiva das obras para o interesse pela experiência (histórica e biográfica) objetivamente mensurável dos autores. Tampouco é casual que essa passagem se faça acompanhar por uma atenção crescente a obras de não ficção, ou baseadas em “histórias reais”. Contra a arbitrariedade subjetiva do cânone ocidental, o espírito democrático do multiculturalismo teve de privilegiar na obra a expressão de uma experiência mensurável e extraliterária (de classe, gênero, raça, origem etc.), reduzindo a produção de subjetividade à representação e expressão da experiência do autor.



Esse novo paradigma acaba gerando desdobramentos perversos, forjando imposturas, oportunismos e contradições nos quais o interesse final das corporações é defendido pelos próprios indivíduos, críticos e consumidores, sempre em nome da democracia e de um suposto bem-estar comum. A obra de arte é reduzida a um serviço à comunidade e à humanidade, conforme a imagem do trabalho voluntário das ONGs e da própria rede de informação. Se os serviços prestados pelo Google são gratuitos, com que direito a obra de arte ou literária exige ser remunerada? A comodidade dos serviços prestados pelo Google lhe garante um paradigma divino e incontestável, sobretudo entre os jovens que desconhecem – mas podem imaginar, como fantasma – os horrores de um mundo sem o Google.







ode soar como piada, mas o mandamento oficial do Google é Don’t Be Evil (Não seja mau). Google e democracia passam a ser sinônimos. E assim, para o bem da humanidade, assumindo o papel de entidade suprema e legisladora, a empresa se sente no direito de digitalizar e oferecer gratuitamente tudo o que estiver publicado no mundo, sem a autorização dos autores, que, sem terem sido avisados de nada, devem tomar a iniciativa de se manifestar a tempo no caso de não concordar com a publicação gratuita de seus próprios livros. Cabe lembrar que o projeto só não foi levado a cabo por interferência do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que entrou em cena para frear as ambições da empresa.



Faz sentido que, nesse mesmo mundo, a ideia do fim do artista, do término do gênio criador individual e da arte como provocação subjetiva e idiossincrática, em nome de uma criatividade generalizada e socializante, também seja promovida por uma parte influente da crítica, sob pretextos políticos e sociais. Se alegam que o artista individual, autor de uma obra de exceção, é um aspecto anacrônico e reacionário do romantismo, é porque de certo modo isso também serve a uma necessidade de sobrevivência da crítica, que precisa se sobrepor ao seu objeto de estudo, negando-lhe autonomia. É o que justifica a passagem do foco do artista para o curador, e o curador reivindicar o papel de coautor de exposições. Em certos casos, o curador pode até substituir os artistas, como na 28ª Bienal de São Paulo, que ficou conhecida como Bienal do Vazio. Entretanto, vai ficando claro que é menos o autor e mais a obra que precisa morrer. Por quê?



Reciclada para os tempos atuais, a ideia da morte do autor, que em Foucault e Barthes se inseria num contexto totalmente diverso, revela uma disputa entre a crítica e o seu objeto. Isso ocorre num momento em que a própria crítica torna-se prescindível pelo mesmo princípio de desautorização das exceções e das hierarquias, em nome de uma “opiniocracia”. A necessidade de estabelecer valores coletivos e generalizados, reduzindo a arte, é a palavra de ordem, aparentemente libertária, de festivais como o Burning Man, em Nevada, nos Estados Unidos. O Burning Man é regido por uma série de mandamentos retóricos, como “autoexpressão, esforço comum, participação, ‘desmercantilização’, doação, inclusão” e outros princípios morais e cívicos. E é especialmente emblemático que as obras criadas no festival acabem sendo queimadas num auto de fé, como manifestação ao mesmo tempo ambientalista (para não abandonar resíduos no deserto) e simbólica, contrária à mercantilização da arte.



Também o consumidor de cultura, cujo narcisismo é alimentado pelo Facebook e Twitter (que o incitam a se expor o tempo inteiro, exercendo não apenas seu direito de participar da vida pública, mas também mimetizar celebridades), pode terminar combatendo toda hierarquia e exceção. Ao se privilegiar as obras, se pressupõe que nem todos podem ser autores, e que nem todas as autorias são iguais. E nada mais natural, depois de tanto esforço de marketing a celebrar a figura do autor, que a obra tenha passado a ocupar um lugar secundário e insignificante.







exemplo da lógica perversa da cultura da celebridade, que, ao se reproduzir indiscriminadamente cria sempre mais anonimato, a autoria também passou a ser vista como sinônimo de visibilidade, uma forma privilegiada de estar e aparecer no mundo, em detrimento das obras. E são as grandes corporações da internet que acabam colhendo os frutos dessa estratégia, são elas que nos proporcionam afinal o sonho de sermos célebres autores de nós mesmos. São elas que nos vendem a miragem de transformar cada detalhe da nossa vida privada em evento público. Por uma razão muito simples: o lucro dessas novas empresas depende unicamente do conhecimento dos desejos íntimos dos consumidores.



Num texto esclarecedor sobre a “Política da Literatura”, Jacques Rancière lembrou que “a constituição da vida privada, que é em si mesma suficientemente satisfatória para que as pessoas renunciem à vida pública”, coincidiu com a noção da arte feita para o indivíduo, pelo indivíduo, o autor. Rancière mostra como a ideia do autor como gênio criador individual, ideia contemporânea ao advento dos direitos autorais e do individualismo da revolução burguesa, acabou associada a uma concepção da arte que foi ultrapassada já por Flaubert e Mallarmé.



No entanto, num pequeno texto (“Autor morto ou artista vivo demais?”) publicado na Folha de S.Paulo ainda em 2003, Rancière explicou que, ao contrário do que se convencionou chamar de culto do autor, a noção de gênio é bem mais complexa e está originalmente ligada ao conceito da obra como expressão de uma força anônima. O gênio não é apenas a representação de uma individualidade – uma força anônima o atravessa e termina por se expressar.



A sentença de morte do autor, contudo, repetida há trinta anos por filósofos e críticos, nunca impediu nenhum artista de reivindicar seus direitos; deve, portanto, ser reavaliada à luz da informática. O que aconteceu desde então? Segundo Rancière, o que sobrou do autor no mundo contemporâneo é justamente a ideia de propriedade. Mas essa propriedade já não pode se referir à obra, seja porque já não se acredita em originalidade, seja porque a obra é resultado da combinação de elementos de outras obras preexistentes, como no caso dos djs, seja porque a obra se tornou conceito, como no caso das artes plásticas.







ideia de obra mudou. O artista passou a ser proprietário da ideia, assim como o inventor detém a patente do seu invento. E é natural que, em reação a essa propriedade, que pode incorporar tudo o que está ao redor, o que já existe no mundo, venha se contrapor um direito de imagem (daquilo que é usado como elemento para compor a obra – como os sujeitos fotografados, no caso da fotografia). E a autoria acaba, assim, correndo o risco de ser confinada à negociação entre proprietários de ideias e proprietários de imagem.



Rancière mostra – e é aí que as coisas ficam mais interessantes, no que diz respeito à literatura – que a autobiografia vem resolver esse impasse, fazendo as duas propriedades coincidirem: “Hoje, o autor por excelência é supostamente aquele que explora o que já lhe pertence, a sua própria imagem.” A propriedade migrou da obra para a biografia, para a vida do artista. Só resta ser autor da sua vida privada e expressá-la como obra. O autor hoje é o que explora a sua própria imagem. Os blogs e páginas pessoais na internet são a expressão generalizada e vulgarizada desse fenômeno.



Se a obra foi reduzida à vida e à visibilidade do autor, é compreensível que já não possa haver herdeiros de um autor morto. Também é compreensível que a obra, já não sendo exceção, tampouco exista, uma vez que foi igualada à vida, ao que é comum a todos. Ao autor só resta tornar-se cada vez mais público. Não é um acidente que não exista autocrítica na internet, a não ser como disfarce de mais autopromoção. É essa a lógica que, encobrindo os interesses corporativos, justifica o fim dos direitos autorais individuais, segundo valores subjetivos da obra, em nome de uma medida baseada em critérios quantitativos de mercado. Como tudo o que existe agora também deve existir na internet, o que não é acessado simplesmente inexiste. É o destino da exceção.



O mais terrível é que, expondo a vida privada como obra pública, e cuja eventual remuneração só pode ser feita com base em dados de acesso e seguidores que se identificam com essa vida e com essa opinião, ao autor cabe negociar o que seriam seus direitos intelectuais segundo a lógica de uma empresa de mídia. É assim que o chamado “valor social” (a capacidade que os indivíduos têm de influenciar uns aos outros através de suas opiniões em blogs, Twitters e páginas pessoais em sites de relacionamento) começa a despertar interesse no mercado virtual. Porque, a partir do momento em que a obra é reduzida à expressão da vida privada e ao marketing do autor, ela também passa a ser veículo potencial de publicidade e encontra no chamado merchandising uma remuneração possível.



Mais de 95% do lucro do Google vem da publicidade. Toda a estratégia da empresa depende do conhecimento, do acesso e da comercialização dos desejos, dos gostos e dos interesses dos usuários. Toda a economia da informação gratuita precisa que a vida privada seja exposta como pública, formando um mapa mundial dos desejos e do gosto, para que haja lucro.



Mais do que o autor, era a obra que precisava morrer como exceção, como produção de subjetividade, exercício de imaginação e transgressão, para renascer como veículo e instrumento de mercantilização da opinião e do gosto, para que todos nós nos tornássemos autores de nós mesmos, e o privado pudesse afinal não apenas ser lido, mas vendido como público. Se a exceção passa a ser sinônimo de injustiça e antidemocracia, a transgressão é reduzida a crime. Mas podemos ficar sossegados, porque onde tudo é público não há lugar para transgressão.

sábado, 10 de dezembro de 2011

The Shallows ou como a NET nos deixa mais superficiais









The Shallows poderia ser livremente traduzido por: "Os Rasos" ou "Os Superficiais". E seu subtítulo é quase um vaticínio: "What the Internet is doing to our brains". Juntando as peças, ficaria assim: "Os Superficiais ou O Que a Internet Está Fazendo com os Nossos Cérebros". É o novo livro de Nicholas Carr ― ex-colaborador do New York Times, da Wired e da Atlantic ―, e tem um título efetivamente poderoso. Carr é um pensador da tecnologia ― se é que podemos chamá-lo assim ―, e, de repente, ficou preocupado com sua falta de concentração, sua crescente incapacidade de penetrar num livro, sua "cultura geral" ameaçada pelo famoso "mar de informação". Carr viveu num mundo antes da internet, antes da "computação pessoal", e, atualmente, não sabe se a civilização ocidental corre o risco de se perder em meio aos brumosos artefatos tecnológicos. A partir desse insight escreveu The Shallows, para entender o que está acontecendo e, mais do que isso, alertar sobre uma possível hecatombe civilizacional. Carr, resumidamente, teme que a "mente letrada" ― que gerou a Renascença, a Reforma, o Iluminismo e até o Modernismo ― esteja se desvanecendo no meio da fumaça de bits e bytes. Carr, por exemplo, não acha que computadores sejam apenas "ferramentas". Pesquisando alterações no cérebro adulto ― ou o que se chama, em inglês, de neuroplasticity ―, chegou à conclusão de que a mudança trazida pelos computadores, e pela internet, não é só aparente: é profunda, permanente e, quiçá, irreversível. Carr se assusta que, hoje, mesmo as nossas experiências do mundo real sejam mediadas por computadores. Sua preocupação pode ser consolidada numa frase: "A humanidade, que estamos sacrificando, pode ser mais valiosa do que toda a tecnologia que estamos implementando". Segundo Tyler Cowen, economista citado no livro, "estamos favorecendo o mais curto, o mais doce e o mais amargo". E, segundo Carr, novamente, "como toda ideia fica em aberto" (não conseguimos finalizar nada), "estamos abandonado o rigor do pensamento e [consequentemente] abdicando do [nosso] aperfeiçoamento". Em sua modesta opinião, estamos forjando algo como uma "mente pós-literária", que resultará em "pensadores" para quem a "tela" será, intelectualmente, mais importante do que a "página". Carr critica, enfim, nossa sociedade "maquinal", obcecada pela eficiência ― cuja bíblica, justamente, é o taylorismo, fruto da revolução industrial, para quem: "o cálculo é superior ao julgamento humano"; "o julgamento humano, portanto, não é confiável"; "a subjetividade é um obstáculo ao pensamento"; e "o que não pode ser medido, não tem valor ou sequer existe". Finalmente, para Carr, estamos perto de confirmar Heidegger, que temia uma era onde o "cálculo" seria a única forma "aceita" de "pensamento"...

Nicholas Carr: a Internet danifica o cérebro


23 de Junho de 2010 às 09:56:23 por computerworld

Veja se isto não lhe é familiar: está a ler um artigo num jornal online sobre o derrame de petróleo no Golfo do México, mas antes de chegar a meio já clicou noutros links que o levam a outras notícias que lhe chamaram a atenção sobre biologia marinha, Sarah Palin ou “Moby Dick”. Quando volta à história original, um par de alertas diz-lhe que um amigo seu actualizou a sua página no Facebook e o seu filho escreve no Twitter algo sobre o mundial de futebol, com um link para um vídeo espectacular com os melhores golos do campeonato. Você não resiste, claro, e quando por fim regressa ao artigo que começou a ler no jornal online, já não se recorda do motivo do seu interesse e não termina de o ler.

Num polémico ensaio que publicou em 2008 no The Atlantic, o autor Nicholas Carr perguntava se “o Google nos está a tornar estúpidos”. Nessa altura, eu sentia que a Web podia distrair-nos ao ponto de nos impedir de realizar outras tarefas importantes, mas daí a tornar-nos mais estúpidos vai uma grande distância. Nicholas Carr apronfundou agora o ensaio que escreveu nessa altura, transformando-o num livro com o título “The Shallows: O que a

Internet está a fazer com o nosso cérebro”, que fala sobre a estrutura do cérebro e os efeitos que a constante estimulação tem na nossa capacidade de nos concentrarmos, recordarmos, racionalizarmos e até mesmo relacionarmos uns com os outros.

Como já deve ter percebido, Nicholas Carr não acredita propriamente que a Internet nos está a tornar mais espertos. “Ao longo dos últimos anos, tenho tido a desconfortável sensação de que alguma coisa tem andado a mexer com o meu cérebro, a mudar os meus circuitos neuronais e a reprogramar a minha memória”, escreve o autor, que atribui ao Google grande parte da culpa.

“Cada clique que damos na Web marca uma paragem na nossa concentração e representa uma fonte de desvio da nossa atenção e o negócio do Google é pôr-nos a clicar o mais possível. O Google está, literalmente, no negócio da

distracção”, acusa Nicholas Carr.

Antes de continuar, devo dizer que o livro “The Shallows” não é um manifesto anti-tecnologia. Aliás, se o livro falha em alguma coisa é na falta de orientações ou soluções para os leitores que concordem com as suas conclusões. Nicholas Carr, um conhecido e prolífero blogger e comentador de assuntos de tecnologia, não pretende com este trabalho alongar-se nalgum tipo de intelectualismo contemplativo dos anos idos, lembrando, aliás, que a generalidade das tecnologias relacionadas com as novas formas de comunicação, da imprensa de Gutenberg à televisão dos nossos dias, é perturbadora da nossa atenção e tem, ao longo dos tempos, gerado todo o tipo de alertas da sociedade.

Consideremos, por exemplo, o que o escritor inglês Barnaby Rich dizia em 1600, mais de 400 anos atrás: “Uma das grandes doenças dos nossos dias é a quantidade exacerbada de livros que existem e que sobrecarregam o mundo, que não é capaz de digerir a abundância de matéria que todos os dias eclode”.

Mesmo se Carr se limitasse a falar da Internet e das tecnologias digitais como fontes de distracção, este livro continuaria a ser interessante, mas não muito significativo. Não é propriamente inovador perceber que escrever mensagens de texto enquanto se conduz é estúpido ou que responder a todos os tweets e clicar em todos os links nos impede de trabalhar. O que Carr faz é compilar elementos probatórios recolhidos a partir de trabalhos experimentais recentes, que mostram, segundo o autor, que o uso da tecnologia digital não só está a mudar a forma como fazemos as coisas, mas também como pensamos.

Um desses trabalhos é o de Patricia Greenfield, uma especialista em psicologia de desenvolvimento da University of California, Los Angeles (UCLA), que estuda o uso dos média e o seu efeito na aprendizagem: “Qualquer meio desenvolve algumas competências cognitivas em detrimento de outras. O uso crescente de equipamentos com

ecrãs, diz esta psicóloga, veio fortalecer a nossa inteligência visual e espacial, o que pode melhorar a nossa capacidade de realizar tarefas que envolvem a monitorização de múltiplos sinais em simultâneo, como por exemplo o controlo do tráfego aéreo. Mas este desenvolvimento traz também novas fraquezas nos processos cognitivos de ordem mais elevada, como por exemplo o vocabulário abstracto, a atenção, a reflexão, a resolução de problemas indutivos, o pensamento crítico e a imaginação”. Ou, como diz Carr, “estamos a tornar-nos cada vez mais ocos”.

Há que dizer, no entanto, que também existem outros trabalhos experimentais que apontam na direcção contrária. Num polémico artigo de crítica literária publicado no New York Times no mês passado, Jonah Lehrer citou um conjunto de outros peritos da UCLA, que, segundo ele, “concluíram que a realização de pesquisas no Google estimula a actividade do cérebro, quando comparada com a leitura de livros, por exemplo”.

Junah Lehrer, editor da Wired, tratou assim de contradizer a tese de Nicholas Carr, escrevendo que “esta área do cérebro controla capacidades específicas, como a atenção selectiva e a análise deliberada, que Carr diz terem sido fortemente afectadas na era da Internet. O Google, por outras palavras, não está a tornar-nos mais estúpidos, mas sim a exercitar precisamente os músculos do nosso cérebro que nos tornam mais espertos”.

Nicholas Carr argumenta que o nosso cérebro é “plástico”, ou seja, que pode ser modificado de acordo com as tarefas que realizamos. “Quando estamos constantemente a ser distraídos e interrompidos, como acontece quando estamos online, o nosso cérebro não é capaz de forjar as conexões neurais fortes e expansivas que dão profundidade e especificidade ao nosso pensamento. Passamos a ser meras unidades de processamento de sinais, transferindo rapidamente pedaços desconexos de informação para dentro e para fora da nossa memória de curto prazo”, escreve o polémico autor.

E, na sua opinião, até mesmo o uso de links que dão aos leitores acesso a informações úteis que não constam do texto tem as suas desvantagens. Erping Zhu, investigadora da Universidade do Michigan, testou a compreensão da leitura de algumas pessoas, pedindo-lhes que lessem o mesmo artigo online, fazendo variar o número de links incluído na passagem. Fez, depois, um teste aos sujeitos, o que lhe permitiu concluir que a compreensão foi caindo à medida que o número de links crescia. Os leitores foram obrigados a prestar cada vez mais atenção e a dedicar mais dos seus cérebros à avaliação dos links e à decisão de os abrir ou não.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Cineastas buscam Amazonas de Hatoum

Cineastas buscam Amazonas de Hatoum


Com ajuda do escritor, Marcelo Gomes e Guilherme Coelho procuraram locações em Manaus e arredores
Os romances "Órfãos do Eldorado" e "Relato de um Certo Oriente" devem ser filmados a partir de 2012 Marcelo Gomes (de chapéu, à esq.) embarca coma equipe para viagem pelo rio Negro

GABRIELA LONGMAN
ENVIADA ESPECIAL A MANAUS

Milton Hatoum trabalha para terminar seu próximo romance, "O Lugar Mais Sombrio", com lançamento para 2012. Longe da sombra, porém, sua literatura se espalha, ganhando novas traduções, ensaios e releituras.



Anunciada em agosto de 2010, a transformação de "Dois Irmãos" em minissérie da Globo demora a sair -não há previsão para o início das filmagens. Enquanto isso, o cinema ocupa seu espaço. Diretor de documentários, Guilherme Coelho ("Fala Tu") viu no romance "Órfãos do Eldorado" o que buscava para sua primeira ficção.



Premiado com "Cinema, Aspirinas e Urubus", o pernambucano Marcelo Gomes encontrou Hatoum num evento e confessou: sonhava em adaptar o "Relato de um Certo Oriente". Ganhou um olhar arregalado -e o consentimento do escritor.



Mas por que filmar justamente o "Relato"? "Porque é infilmável", responde. "É um livro sobre pontos de vista. E o que é o cinema se não isso, um ponto de vista?"



Embora sejam dois projetos distintos, a literatura de Hatoum e a amizade entre os diretores transformou-os numa empreitada conjunta. Ao longo de quatro dias, a Folha acompanhou os dois cineastas por Manaus e arredores, ciceroneados pelo escritor.



Ao grupo juntaram-se Maria Camargo, corroteirista dos dois filmes, Karen Harley, montadora dos filmes anteriores de Marcelo (e codiretora de "Lixo Extraordinário"), e a assistente de direção de Coelho, Letícia Simões.



Entre fotos, anotações, perguntas e registros, cada um tentava, a seu modo, se aproximar ao máximo da paisagem "hatouniana".



Coelho, que pretende filmar em 2012, saiu em busca de possíveis locações; Gomes, ainda em primeira pesquisa e filmagens previstas só para 2013, atrás da "poética do cotidiano" da região -cheiros, cores, sabores da Amazônia recordados por Hatoum. "Não há literatura sem memória. Imaginação e memória são irmãs siamesas", lembra o autor.



A incursão passou pelo centro histórico da cidade, pelo antigo bairro dos ingleses e culminou num passeio de barco pelo rio Negro.



Há uma diferença crucial de ambientação: para o "Relato de um Certo Oriente", Gomes precisa da atmosfera de Manaus, mas precisa sobretudo de um casarão, o velho casarão de Emilie, a matriarca da família libanesa em torno da qual se estrutura o livro -uma casa é um mundo.



Para "Órfãos do Eldorado", Coelho precisa de uma pequena cidade ribeirinha, a Vila Bela do livro, onde vive a dinastia dos Cordovil, em seu palácio branco. Precisa de figurantes indígenas e algumas cenas de porto. Busca ainda um lugar perdido no tempo, a ilha esquecida no meio do rio Negro onde se esconde Dinaura, fonte de todo amor e toda ruína do narrador.



"Costelas de areia branca e estirões de praia em contraste com a água escura; lagos cercados por uma vegetação densa; poças enormes, formadas pela vazante, e ilhas que pareciam continente. Seria possível encontrar uma mulher naquela natureza tão grandiosa?", nos pergunta Hatoum nas últimas páginas de "Órfãos...".



Seria, parece responder o cinema, caminhando em rumo norte.



A jornalista GABRIELA LONGMAN viajou a convite da produtora Matizar

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

COPIADA de Kenneth Goldsmith




Artista e escritor que fundou o site UbuWeb cria o manifesto da escrita não criativa e garante que a literatura do futuro será feita a partir de novas versões e cópias do que já estava escrito
SILAS MARTÍ
DE SÃO PAULO

Kenneth Goldsmith acha que está fazendo arte quando senta e reescreve palavra por palavra a edição do dia do "The New York Times".



Também anda fascinado com a advogada californiana que publica num blog sentenças de condenações por estupro como se fossem poesia, sem alterar uma única linha.



"Ficou claro que a escrita do futuro tem mais a ver com mudar as coisas de lugar do que com criar novos conteúdos", afirma ele. "Samplear [utilizar trechos de obras já prontas] alguma coisas vale mais do que essa coisa em si."



Goldsmith, artista e escritor americano que fundou o site UbuWeb, acredita tanto nisso que escreveu um livro-manifesto. "Uncreative Writing", ou escrita não criativa, ensina como ser um autor em plena cultura do remix.



"Essas ideias não são novas, mas não tinham chegado à literatura", opina. "É um debate ainda muito rudimentar se pensarmos que nas artes visuais a questão de plágio e deslocamento começou com o urinol de Marcel Duchamp, lá atrás, em 1913."



Das artes plásticas à música, em tempos de difusão ultraveloz na internet, o mundo vem redefinindo a ideia de cópia e plágio, dando muitas vezes peso de original a novas versões do que já existia.



Na literatura, a febre do remix causa as distorções que viraram objeto de estudo de Goldsmith, ele mesmo gastando horas do dia em exercícios tediosos como copiar artigos de jornal para ver onde surgem erros espontâneos, frutos de sua desatenção.



"Tudo o que escrevo é horrível, impossível de ler", reconhece. "Mas não estou interessado em leitura, é só um estopim para discussões."



Ao observar falhas de linguagem, Goldsmith concluiu que a raiz disso já estava na poesia concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, na literatura transtornada dos beatniks e na justaposição de tudo, possível só na era da internet.



No ubu.com, por exemplo, é possível ver vídeos dos Beatles e peças de Samuel Beckett. "É um espaço utópico, em que tudo conversa", diz. "Reenquadro o que existe para criar algo novo, um colapso dos gêneros artísticos."



Seu próximo passo é reescrever o clássico ensaio do alemão Walter Benjamin sobre as galerias comerciais da Paris do século 19, só que transpondo a ação para as ruas de Nova York no século 20.



Nessa versão, personagens trocam de pele -Baudelaire, por exemplo, vira o polêmico Robert Mapplethorpe.



UNCREATIVE WRITING



AUTOR Kenneth Goldsmith



EDITORA Columbia University



QUANTO R$ 168,80 (260 págs.)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Exposição central da Europalia exibe panorama da arte brasileira desde o tempos da colônia até o modernismo

Exposição central da Europalia exibe panorama da arte brasileira desde o tempos da colônia até o modernismo

DANIELA ROCHA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE BRUXELAS

Entre aquarelas de Debret sobre o cotidiano dos escravos no Brasil Colônia e uma série de telas de Tarsila do Amaral, Portinari, Di Cavalcanti e Volpi, a exposição "Brazil.Brasil", no Palácio Bozar, em Bruxelas, consegue traçar um fio condutor que revela a arte brasileira e os seus principais movimentos entre os séculos 18 e 20.

Um andar abaixo, a arte brasileira dos anos 50 até hoje está em destaque na exposição "Art in Brazil", que abre ao público amanhã.

As duas mostras integram a programação do festival bienal Europalia, consagrado este ano ao Brasil.

Até 15 de janeiro, o festival oferecerá mais de 600 eventos de artes plásticas, música, teatro, dança, literatura e cinema brasileiros em várias cidades da Bélgica, França, Holanda e Alemanha.

"Brazil.Brasil" pode ser dividida em três movimentos: o barroco como arte religiosa, tendo como emblema o imponente "São Jorge", de Aleijadinho; o Brasil nação, representado no quadro "A Primeira Missa no Brasil" (1860), de Victor Meirelles; e a expectativa de modernização num país ainda agrário.

"O modernismo ocorreu apenas 30 anos após a Abolição da escravatura. Artistas buscaram a compreensão do que somos, no manifesto 'Tupi or not Tupi', destacado na mostra", diz a curadora Ana Maria Belluzzo.

"Foi um exercício de diálogo. Para nós, era importante traduzir ao público europeu o que é o Brasil fora dos seus clichês, conciliando, claro, com a forma como o Brasil quer se apresentar", explica o diretor de exposições da Europalia Internacional, Dirk Vermaelen.

Segundo ele, esta é a primeira vez que a Europa exibe uma perspectiva brasileira sobre a sua arte contemporânea, já que a "Art in Brazil" é assinada por nove curadores, todos brasileiros.

Dividida em quatro módulos cronológicos, a exibição destaca momentos históricos que repercutem na produção artística, como a ditadura militar (1964-1985) e a inauguração de Brasília (1960).

A próxima grande mostra da Europalia é a "Índios no Brasil", a ser inaugurada no dia 14 de outubro, no tradicional Museu do Cinquentenário, que propõe ao visitante uma "exposição que o levará ao coração da floresta amazônica".

Ainda com foco na natureza, a exposição "Terra Brasilis", com cocuradoria do brasilianista Eddy Stols, será aberta no dia 20 e coloca em evidência a influência recíproca entre a Europa e o Brasil no período do Descobrimento e a exploração da fauna e da flora brasileiras.

Para brasilianista, festival ajuda a quebrar estereótipos sobre país




Europalia contribuirá para mudar visão de que Brasil é país só de samba e futebol, diz Eddy Stols



Para estudioso belga, o Brasil teve avanços sociais nas últimas décadas e 'está longe de ser um país coitadinho'



COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE BRUXELAS



O festival Europalia ajuda a quebrar a visão estereotipada que a Europa tem do Brasil, na opinião do brasilianista belga Eddy Stols, 62.

"Quem visita a exposição 'Brazil.Brasil' percebe que a pintura do século 19 é tão adulta e avançada quanto a produção de qualquer país europeu na época", diz.

Professor aposentado de história social e economia da América Latina na Universidade de Louven, Eddy Stols é uma das autoridades belgas quando o tema é Brasil. Por isso, foi o consultor da Europalia Brasil desde a sua concepção, no final de 2008.

"Estou seguro de que o festival contribuirá para quebrar o entendimento de que o Brasil é o país apenas do samba e do futebol", afirma.

Apesar disso, houve desacordo entre os governos do Brasil e da Bélgica em relação a vários nomes da cultura e das artes brasileiras que fariam parte do evento.

Nomes indicados pelo Brasil como Machado de Assis, na literatura, e Luiz Melodia, na música, foram excluídos por temor de que não atraíssem público suficiente.

Segundo Stols, ainda existe uma arrogância de europeus que pensam que o Brasil não pode viver sem eles.

"Muitos ignoram que o Brasil tem uma capacidade científica enorme, é um país que está mais bem situado com seus vizinhos do que o são a Índia e a China e tem uma diplomacia capaz. Eu me considero um isolacionista latino-americano", afirma.



AVANÇOS SOCIAIS

Quando o tema é desigualdade social, Eddy Stols rebate: "Os próprios brasileiros são muito autocríticos e se colocam como subdesenvolvidos. O Brasil está longe de ser um país coitadinho", diz.

"Quando estive no Brasil em 1963, não era tão desigual. Havia pobreza, mas na Europa também havia. Além disso, nas últimas décadas houve avanços em busca de mais justiça social no país."

A paixão e o entusiasmo que Eddy Stols transmite sobre o Brasil contagiam até mesmo alunos seus na Bélgica. Um deles, Lode Delputte, se especializou em Brasil e lança na próxima semana um livro sobre a emergência de um Brasil potência.

"Já visitei o Brasil mais de dez vezes. Certamente conheço mais Estados do país que muitos brasileiros. E, ainda assim, o Brasil é uma vastidão a ser descoberta, conhecida", afirma.

Stols concorda. "O Brasil é uma esponja. Quem se aproxima dele quer ficar e conhecer mais." (DANIELA ROCHA)

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Economia criativa em Cena

Em busca de viabilidade, grupo adota conselheiros de prestígio


DE SÃO PAULO





"Artista não tem visão empresarial", afirma a atriz Bete Coelho.

"Lugar de artista é no palco, e não na sala de espera das grandes empresas, mendigando patrocínio", acredita Maurício Magalhães, presidente da agência de comunicação Tudo.

Não é novidade a luta travada pela maior parte da classe teatral do país para viabilizar seus próprios projetos.

Foi em busca de alternativas a essa realidade que Bete Coelho e Ricardo Bittencourt, fundadores da companhia BR 116, criaram um novo modelo de grupo.

No coletivo, são acompanhados por Magalhães, pela advogada especializada em leis de incentivo cultural Cris Olivieri, e profissionais de diversas áreas de atuação.

Seguindo os princípios do voluntariado, o coletivo se ampara em conselheiros não remunerados, dispostos a disponibilizar tempo, conhecimento, prestígio e contatos com o objetivo de tornar a BR 116, fundada em 2010, uma companhia sustentável. Fazem parte do conselho da BR 116 o diretor regional do Sesc, Danilo Santos de Miranda, o ex-jogador de futebol Raí e a atriz Regina Braga, entre outras pessoas.

"Vou ajudar com contatos e com um olhar de fora. Minha contrapartida será aprender sobre arte", explica Raí.

Segundo Miranda, "a ideia de um grupo gerido profissionalmente e que não se deixa contaminar pelo capitalismo é novidade na área teatral"

Para ele, o renascimento da BR 116 sob o conceito de voluntariado cultural pode marcar "o início de um novo caminho para o teatro".

Já para Bete Coelho, é o primeiro passo para que o teatro possa "erguer-se como indústria, como já aconteceu com a música, o cinema, a literatura e a arte contemporânea". (GM)

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Estrelas globais das artes, Damien Hirst, Jeff Koons, Cindy Sherman e Matthew Barney estão em mostra comemorativa do aniversário da Bienal de SP

Estrelas globais das artes, Damien Hirst, Jeff Koons, Cindy Sherman e Matthew Barney estão em mostra comemorativa do aniversário da Bienal de SP




Eduardo Knapp/Folhapress



"Mother and Child Divided", obra de Damien Hirst, na mostra comemorativa



SILAS MARTÍ

DE SÃO PAULO



ma vaca e um bezerro cortados ao meio flutuam em um tanque cheio de formol.

Esse espetáculo de atração e repulsa ocupa um espaço central do pavilhão da Bienal de São Paulo, no Ibirapuera.

O britânico Damien Hirst é o artista por trás dessa natureza-morta literal.

Seus excessos visuais pautaram a geração de norte-americanos "blockbuster" escalados para a exposição "Em Nome dos Artistas", que celebra 60 anos da Bienal paulista -espécie de aquecimento para a sua 30ª edição, que ocorre apenas em 2012.

Nas últimas décadas, a produção de nomes como Jeff Koons, Richard Prince, Cindy Sherman e Matthew Barney deixou para trás a noção clássica de artistas plásticos em seus ateliês espartanos.

Eles se tornaram celebridades, esticando aqueles 15 minutos de fama tão propagados por Andy Warhol.

O flerte com a indústria do entretenimento se tornou, em certos casos, matrimônio: Koons foi casado com a ex-atriz pornô italiana Cicciolina e Barney divide a vida com a cantora islandesa Björk.

Suas contas bancárias também são dignas de estrelas. Em pleno cataclismo financeiro global de 2008, Hirst vendeu R$ 500 milhões em obras num leilão-espetáculo em Londres, um dos epicentros da crise do crédito.

No mesmo ano, uma escultura de Koons foi arrematada por R$ 48 milhões e Sherman bateu recorde com uma foto vendida por R$ 7 milhões.

"É verdade que esses artistas têm enorme visibilidade", diz Gunnar Kvaran, curador do museu norueguês Astrup Fearnley, que emprestou as obras da exposição. "Eles são como os netos de Warhol que entraram no 'star system'."

Na mostra é possível entender como isso aconteceu.

Numa pintura, Koons faz sexo oral com Cicciolina, Sherman se autorretrata como a Virgem lactante e Prince reinventa o cáuboi dos comerciais de Marlboro.

Todos se apropriam de fragmentos da cultura visual, pop e erudita, para articular imagens tão sedutoras e excêntricas como suas próprias personalidades.



EMERGENTES

Menos vistosos, também estão na mostra artistas consagrados que trilharam caminhos estéticos mais sutis.

Felix Gonzalez-Torres, cubano radicado nos Estados Unidos, explora questões autobiográficas em instalações que dialogam com o minimalismo, como um grande tapete feito de doces embrulhados em celofane azul.

Questões arquitetônicas e espaços ermos e vazios estão num vídeo de Doug Aitken, artista que já projetou uma série de curtas na fachada do MoMA, em Nova York.

Shirin Neshat, iraniana radicada em Manhattan, também cria videoinstalações mais sóbrias, em que discute a condição feminina no Irã e inventa fantasias utópicas para sublinhar as contradições do mundo muçulmano.

Na ala mais jovem e não menos controversa da América, artistas como Nate Lowman, Paul Chan, Frank Benson, Dan Colen e Terence Koh, chinês radicado em Nova York, reinventam noções de escultura e videoarte em obras críticas à hegemonia norte-americana no planeta e ao consumismo do país.

Entre os mais polêmicos, Koh, famoso por ser amigo da estrela pop Lady Gaga, já vendeu até seus próprios excrementos folhados a ouro e não se acanha em usar esperma e outras secreções como material de suas composições.

Na mostra comemorativa, ele exibe duas esculturas cobertas em ouro e purpurina, construídas com abelhas e a cabeça de um babuíno.

sábado, 6 de agosto de 2011

RADICANTE arte para alem do multiculturalismo

Num mundo atravessado por fluxos de todas as espécies - de cultura, de pessoas, de dinheiro -, Nicolas Bourriaud propõe uma nova cartografia para compreender a arte contemporânea. Contrapondo-se às propostas do multiculturalismo e da pós-modernidade, a estética radicante valoriza a errância, a diversidade. Enfim, uma arte que seja moderna por sua capacidade de criar novas raízes à medida que avança, em vez de ficar presa a uma fonte original ou submetida à homogeneização decorrente da globalização econômica.


Nos proximos dias estarei comentando o radical livro de Nicolas Bourriaud, um dos mais influentes pensadores da arte contemporanea.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Gilles Lipovetsky hipermodernidade

CULTURA MUNDO de  Gilles Lipovetsky: "Hoje, há demasiado de tudo"


FÁTIMA MARIANO



foto Reinaldo Rodrigues/Global Imagens
Gilles Lipovetsky defende que, com a cultura-mundo, caminhamos para um planeta cada vez mais individualista, tecnológico e comercial





A sociedade de consumo transformou por completo a noção de cultura. Hoje, todas as actividades, desde a moda, à indústria automóvel, do turismo ao urbanismo, obedecem às leis da economia, porque tudo tem de ser rentável.



Deixaram de vender produtos, para venderem um estilo de vida. A cultura deixou de ser um mundo exclusivo das elites, para ser um mundo de todos. Esta cultura-mundo, de que falam Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, que unifica as sociedades, é a mesma que permite a cada um de nós ser diferente de outro. É por isso que vivemos numa sociedade desorientada.



No seu mais recente livro aborda novamente a problemática da sociedade hipermoderna, mas centrando-se num novo conceito, o de cultura-mundo. O que é a cultura-mundo?

A cultura-mundo é constituída por cinco grandes lógicas: o mercado, a ciência, a informação, a indústria cultural e as novas tecnologias de comunicação e a individualização. Cinco vectores que estão a presentes em todo o planeta, em graus diferentes, e que fucionam como vectores de unificação planetária, uma vez que aproximam as sociedades, pois, de agora em diante, teremos estruturas e lógicas de modernidade semelhantes em todo o lado. Se formos à China encontraremos cidades similares às europeias, por exemplo. O que pretendo demonstrar é que a mundialização não é apenas o fim do comunismo, as novas tecnologias de informação e o capitalismo. É também uma cultura, uma maneira de pensar o mundo, uma forma de valorizar uma nova hierarquia de valores, e que, nesse universo, a cultura já não é algo nobre. A cultura, hoje, é constituída por esses cinco vectores.



Já não é uma cultura apenas das elites?

Exactamente. É uma cultura mundial, que obedece aos mesmos princípios que a economia. Hoje em dia, a cultura vende-se, compra-se, exporta-se. Com a cultura-mundo, a cultura tem que ser rentável, especialmente para os grandes grupos. Como refiro no livro, nos Estados Unidos, a indústria cultural é o bem que mais se exporta. Assistimos a uma mercantilização extrema da cultura, mas, ao mesmo tempo, a uma culturalização do consumo e da mercadoria.



Pode ser mais específico?

Tenhamos em conta o início da sociedade de consumo nos Estados Unidos, onde foi construído o modelo Ford-T. Ford queria um veículo universal, não muito caro, acessível à maioria das pessoas. Uma viatura utilitária, sem qualquer adorno, sólida e que andasse. Era este o modelo de Ford. Actualmente, não há indústria automóvel que funcione assim. Fazem-se filmes publicitários, comunicações, criam-se fundações para ajudar as crianças. Uma marca, hoje, não vende apenas um produto, vende uma cultura, um estilo de vida. Contratam-se designers, publicitários, creativos, que investem mais na marca do que no produto.



Ou seja, o mais importante não é o objecto, a sua utilidade, mas sim o que este representa?

Isso é a cultura. O mundo do primeiro capitalismo era o mundo do investimento, da construção - estradas, caminho-de-ferro, portos, pontes, produção de electricidade, indústria pesada. Com a sociedade de consumo tudo isso começou a mudar e a acelerar. Hoje, vivemos o capitalismo das marcas, do hiperconsumo, onde há tanta escolha entre produtos semelhantes. Antigamente, na moda, tinhamos a alta costura, representada por Paris, e a confecção industrial, que fabricava as calças e vestidos para as classes populares. Hoje, olhemos para a Zara. A Zara tem centenas e centenas de lojas, que não são lojas de luxo. O código de luxo foi absorvido pelas marcas populares. É uma cultura de massas, mas é a cultura do sentimento, do imaginário, do valor, do estilo.O consumidor dos bens de luxo, para fazerem a diferença, terão que apostar em algo mais do que o simples objecto.

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sexta-feira, 10 de junho de 2011

Museu da Inocencia

Escritor Orhan Pamuk fala de romance que inspirou museu







FABIO VICTOR

DE SÃO PAULO



Enquanto a ficção contemporânea brinca de realidade, Orhan Pamuk levou o jogo além. Em seu novo romance, "O Museu da Inocência", o Nobel turco prorrogou a invenção para a vida real.



O livro conta a paixão de Kemal por Füsun, tão intensa que leva o personagem a criar um museu com objetos ligados ao caso de amor.



Só que, enquanto escrevia o livro, Pamuk --que aparece algumas vezes na trama-- foi montando um museu de verdade com bugigangas que fazem parte da história.



Será aberto em breve em Istambul, e um ingresso impresso no livro dará acesso ao local.



Sobre o hábito humano de colecionar e sobre esses dois museus, o de verdade e o ficcional, ele falou à Folha, por telefone, de Istambul.



Pamuk, que esteve na Flip em 2005 e voltará ao Brasil em dezembro para participar do ciclo de conferências "Fronteiras do Pensamento", relembrou o país e comparou Rio e São Paulo a Istambul e Ancara.



Ed Oudenaarden - 26.ago.10/Efe



O escritor turco Orhan Pamuk, cujo livro terá ingresso para entrar no museu com objetos que estão na história



*

Folha - O que veio primeiro, o museu ou o romance?

Orhan Pamuk - Vieram juntos. O romance foi pensado na forma de um catálogo de museu, mas tem vida própria, você não precisa do museu para lê-lo. Neste sentido, parece com, e é para ser lido como, um romance clássico do século 19.

Você não precisa saber que há um museu nem que por anos eu reuni objetos. Mas eu comecei o romance com a ideia de fazer o museu.



O sr. começou a juntar objetos desde o início do livro?

Sim. Para mim, o desafio era criar e desenvolver a história ao mesmo tempo em que colecionava objetos que estavam na história. Ou seja, meus personagens estão vestindo um vestido, ou fumando um cachimbo ou um cigarro de marca antiga, ou olhando pela janela e vendo paisagens fotográficas. Eu tenha de ter as fotografias, os cigarros antigos, o vestido, o cachimbo.

Deixei claro para mim mesmo que primeiro eu teria de achar os objetos e então os colocaria no romance. Em seguida eu exibiria os objetos num museu.

Junto com isso veio a ideia de ambientar o romance numa casa que já existe, e de depois converter essa casa num museu.

E também sempre quis escrever um romance sobre o que ocorre quando nos apaixonamos, como a química e o espírito se comportam. Claro que o amor é algo universal e eterno, mas cada pessoa se comporta de um jeito. Por outro lado, a humanidade se comporta de modo mais ou menos parecido. Nesse sentido, meu personagem representa toda a humanidade, mas não representa toda a humanidade, porque é um homem turco de classe alta vivendo em Istambul nos anos 1970. Ele é restrito por sua história cultural.



O museu de verdade já existe, está funcionando?

Para lhe dar essa entrevista, eu tive de deixar as coisas de lá [no museu]. Hoje estou trabalhando com dez pessoas, estamos terminando. Mas meus fãs estão gozando, "Orhan, há um ano e meio você diz que está terminando o museu". Mas agora estamos mesmo. É um prédio que eu comprei há 12 anos, que foi convertido em museu. Todas as coisas mencionadas no romance estão lá. Mas, agora que você está perguntando tudo isso, deixe eu lhe dizer muito claramente que o romance veio primeiro. Para mim, a literatura está sempre na frente. O romance vale por si e eu não quero falar muito sobre o museu antes de falar o bastante sobre o livro.



Mas quando o museu deve abrir?

Acabamos de botar uma placa muito bonita na porta: "Infelizmente, o Museu da Inocência ainda está em construção. Lamentamos por não estarmos abertos ainda". Porque várias pessoas de todas as partes, que compraram o romance em diferentes traduções, estão vindo com o livro nas mãos e nos xingam. Meus amigos pintores e carpinteiros dizem: Mr. Pamuk não está. Eles ficam bravos. Avise aos leitores brasileiros que ainda não está aberto, mas que estará em breve.



O museu realmente vai existir? Porque eu penso se não poderia ser um truque...

Não, não é um truque. Não estou armando um jogo borgiano desses. Não faria isso. Será aberto. Venha a Istambul e verá o prédio.



É interessante que no livro está descrito inclusive que os guardas do museu deverão vestir ternos de veludo escuro e gravatas bordadas com o brinco de Füsun...

Sim, agora que estamos terminando estamos comprando essas roupas. Mas esse não é o foco. Você esqueceu do romance... Darei a você outra entrevista quando o museu abrir.



Ok, ótimo. Mas, uma vez que o romance fala sobre museus, qual é a função de um museu? Não falo do seu museu, mas de museus em geral.

Meu pobre Kemal pensa no desejo humano de colecionar e em como a civilização, particularmente a civilização ocidental, consegue reunir essas coleções, enquanto, no mundo não ocidental, raramente elas são colocadas em museus. Eles nem sequer chamam de coleção, chamam de coleta aleatória de objetos. Mas toda coleta aleatória de objetos tem por trás de si um espírito --por isso as pessoas colecionam objetos.

Meu livro mostra que há um desejo inato em nós de colecionar, que está profundamente relacionado com algum trauma, uma ferida espiritual, uma memória dolorosa. Não queremos saber por que colecionamos, mas continuamos colecionando. Nas civilizações em que as coleções não são vistas como algo importante e valioso, as pessoas têm vergonha de colecionar, escondem suas coleções, são chamadas de esquisitas, morrem sozinhas e assim por diante.

Mas, uma vez que coleções são valorizadas, há uma cultura de objetos colecionáveis --e não esqueça que essa cultura é muito mais visível graças à internet. Se não são valorizados, desaparecem.



A propósito, há um trecho do livro que diz: "(...) enquanto o Ocidente sente orgulho do que é, a maior parte do mundo vive tomada pela vergonha. Mas, quando os objetos que nos causam vergonha são expostos num museu, transformam-se imediatamente em pertence que podem nos orgulhar".

Até hoje, museus expõem símbolos de poder. O Louvre era um palácio, um lugar da monarquia, que virou um museu popular. Hoje não representa o poder dos reis franceses, mas do povo francês. Museus são lugares onde são exibidos o poder e o orgulho de uma comunidade, de uma nação. É tudo uma questão de exibir as coisas e sentir orgulho disso.

"O Museu da Inocência" é uma história de amor, na maior parte relata a paixão de Kemal, meu personagem, por uma prima na Istambul dos anos 1970. Mas ao mesmo tempo eu tento analisar, ver através do espírito dos colecionadores. Neste sentido, Kemal é, no começo do romance, um homem do mercado corporativo, uma pessoa normal. Mas, quando ele se apaixona e o romance o conduz a uma situação trágica, ele começa a colecionar objetos. Quando ele faz isso, pegando o brinco de Füsun, ele não se dá conta de que inicia uma coleção --está apenas respondendo a algo espiritual, a uma dor amorosa.

Então vem o segundo objeto, o terceiro, o quarto... quinhentos objetos. Algo que podemos chamar de uma coleção, se acreditamos em museus.

Então um colecionador real não começa com o desejo de fazer um museu, mas é alguém que está respondendo aos tormentos de um drama espiritual. Meu personagem, Kemal, é uma pessoa ferida, e "O Museu da Inocência", na superfície, é sobre uma paixão amorosa, como reagir a ela, uma espécie de catálogo sobre o que nos ocorre quando nos apaixonamos.



Claro que o livro vai além da história de amor, mas, até onde sei, é o seu primeiro romance baseado primordialmente numa história de amor. Por que falar de amor agora?

Sim. Em primeiro lugar, por que não agora? O amor é parte essencial da vida humana. Nos meus romances eu tratei do espírito cultural da Turquia: em "Neve", por meio da política; em "Meu Nome É Vermelho", por meio da arte; em "Istambul" e "O Livro Negro", por meio das camadas de Istambul. Queria há muito tempo escrever uma história de amor. Falando do amor, falo do tema mais universal da humanidade, mas também de um tema muito particular, num país islâmico onde um casal não se relacionava tão facilmente desse jeito fora do casamento, onde nos anos 70 sexo fora do casamento era quase impossível. Mas o amor é possível em qualquer lugar, é negociado por outros meios, silêncios, gestos etc



No fim do livro, o personagem Kemal pergunta ao escritor Pamuk se ele "alguma vez esteve apaixonado assim", e Pamuk desconversa dizendo que eles não estavam falando sobre ele. Agora, que estamos falando sobre o sr., pergunto: alguma vez o sr. esteve apaixonado assim?

Certamente há uma tendência em mim em dizer: "Claro, até mais que Kemal. Kemal sou eu e todas as coisas que estão no livro aconteceram comigo". Se disser o contrário, ouvirei boas risadas. Romances são exatamente isso. Escrever um romance é escrever um texto que o seu leitor pense ter sido vivido por você. Se você diz que não, o leitor dirá: "Não minta, é você. É tão franco, tão convincente, como você pode saber tudo isso?". E você diz: "É ficção". E ele: "Não, não".

Está na essência da arte do romance, fazer o leitor achar que o que aconteceu a Kemal ocorreu a Orhan também.

Bem, deixe o leitor pensar assim. Mesmo se eu disser que não, pensarão que estou mentindo. Sim, eu estou mentindo, eu gosto de mentir, porque sou um ficcionista.



Mas como era a sua vida na primavera de 1975 [período em que se passa o romance]?

Eu larguei os estudos enquanto escrevia meu "Istambul" e comecei a decidir que seria escritor. Eu tinha 23 anos. Meu autobiográfico "Istambul" termina exatamente, você apontou corretamente, no ano em que começa "O Museu da Inocência". Kemal se apaixona por Füsun. Orhan, que vemos no romance na festa de noivado no hotel Hilton, estava tentando ser um romancista, largando a faculdade de arquitetura com o sonho ambicioso de um dia publicar meus livros na Turquia.



Não vou perguntar se existiu uma prima Füsun na vida de Orhan Pamuk, ok?

Quem sabe... Fecharei minha boca sobre esse assunto [risos].



O sr. visitou o Brasil em 2005 para a Flip e voltará no fim deste ano para uma conferência [no ciclo "Fronteiras do Pensamento", em dezembro]. Que lembrança guarda do país?

Minha lembrança sobre o país é a das diferenças entre Rio e São Paulo, muito similares a Istambul e Ancara. Duas cidades grandes, mas muito diferentes e muito próximas uma da outra. E as praias no Rio e Paraty, meu Deus... a natureza, toda essa beleza eu guardo comigo.

E a renda média é muito parecida no Brasil e na Turquia. Acho que o Brasil é um pouco mais rico, mas percebi a mesma qualidade de vida, pessoas conversando nas ruas, vendedores ambulantes, muita gente, muita coisa acontecendo. Cafés, livrarias, ambulantes invadindo as ruas. Bem parecido com Istambul.

Mas tanto o Brasil quanto a Turquia estão mudando, ambos para melhor, eu acho.



O que mudou em sua vida após o Nobel?

Quando ganhei o Nobel, eles me ligaram da Suécia, eu estava em Nova York. Imediatamente eu disse: isso não vai mudar minha vida. Mas eu estava errado, mudou minha vida. Tornou-me uma pessoa muito ocupada, mas também me trouxe novos leitores e responsabilidades. Virei possivelmente uma pessoa mais responsável. Mas meu desejo de escrever, o modo como eu dedico todo o meu tempo à literatura, isso não mudou. Continuo trabalhando muito, até mais, porque há muitos leitores esperando por um novo livro.



O sr. está escrevendo um livro sobre vendedores ambulantes de Istambul, não? Como está o livro?

É sobre outra Istambul, uma Istambul pobre. Quando nasci, Istambul era uma cidade de um milhão [de habitantes], hoje tem 11 ou 12 milhões. A maior parte é de imigrantes de uma região pobre da Turquia, a Anatólia. Como essas pessoas chegaram? Como construíram as favelas? --que são melhores, acho, do que as que vi há 6 anos no Rio. Como elas vivem? Estou escrevendo a história de um vendedor de rua que começa a perder seu trabalho. Istambul do ponto de vista da classe trabalhadora.



O MUSEU DA INOCÊNCIA

AUTOR Orhan Pamuk

EDITORA Companhia das Letras

TRADUÇÃO Sergio Flaksman

QUANTO R$ 59 (568 págs.)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Slavoj Zizek e a novidade do comunismo

Slavoj Zizek e a novidade do comunismo










Sentado num hotel em Copacabana, um dia após fazer uma palestra sobre os impasses da democracia liberal para um Odeon lotado (a convite da PUC-Rio, Uerj, Boitempo e Flacso), o filósofo esloveno Slavoj Zizek parece tomado por um excedente de energia que o deixa num estado próximo à convulsão: durante uma hora de entrevista sobre seus livros “Em defesa das causas perdidas” e “Primeiro como tragédia, depois como farsa” (Boitempo, tradução de Maria Beatriz de Medina), seus braços se lançam em todas direções possíveis pontuando as respostas aceleradas, cheias de parênteses, diálogos encenados e exclamações. Ao mesmo tempo enfática e digressiva, a fala é fiel aos textos que fizeram de Zizek uma referência para a esquerda mundial, nos quais uma aproximação original dos pensamentos de Marx e Lacan serve de ferramenta para um ímpeto aparentemente inesgotável de interpretação crítica da cultura moderna e contemporânea, dos filmes de Hollywood aos pressupostos da democracia representativa até o pensamento de Deleuze ou Antonio Negri. Nessa entrevista ao GLOBO, Zizek explica (entre outras coisas) o que significa hoje ser comunista, e por que é preciso recuperar a ideia de revolução.







Seu livro “Em defesa das causas perdidas” começa pela constatação de que a ideia de revolução está hoje desacreditada no debate político. Esse descrédito, o senhor argumenta, não se explica simplesmente pelo fim da União Soviética ou pela queda do Muro de Berlim, como muitas vezes se diz. Ele estaria ligado a diversas críticas feitas no século XX às noções de verdade e totalidade. Quais são os principais argumentos dessas críticas, e como o senhor pretende contestá-los?



SLAVOJ ZIZEK: Há uma certa moda na filosofia pós-moderna de se tomar a verdade como algo opressivo, que deve ser subvertido. Questiona-se: “quem tem o direito de dizer que algo é verdade?” Em vez da verdade, existiriam apenas opiniões. Até as ciências naturais são tomadas como um fenômeno discursivo, que não teria nenhuma diferença de princípio em relação a superstições e formas de conhecimento baseadas na tradição. Discordo disso. Penso que existe a verdade, que existe a verdade universal, e que ela pode mesmo ser vista politicamente. Por exemplo, o que aconteceu recentemente no Egito foi a universalidade em sua forma mais pura. Não precisamos de nenhuma teoria multiculturalista para entender o que se passava nas ruas do Egito. Quando você tem uma rebelião pela liberdade, pode se identificar com ela de maneira imediata. Quanto à totalidade, esse é um grande mal entendido. A noção hegeliana de totalidade não significa que todos fenômenos particulares sejam no fundo parte de um mesmo todo orgânico. Não! Se você lê Hegel, vê que totalidade é quase o oposto disso. A totalidade é uma categoria crítica, que implica perceber as maneiras pelas quais um certo fenômeno dá errado como sendo parte da essência desse fenômeno. Detesto os marxistas que dizem: “Stalin traiu o verdadeiro espírito do marxismo”. Não, não se pode permitir que isso seja dito. Se as coisas deram tão terrivelmente errado com Stalin, isso significa que havia uma falha estrutural no próprio edifício de Marx. Não acredito nessa baboseira do tipo “a ideia era boa mas infelizmente foi mal realizada”. Aqui eu sou freudiano. O resultado da ideia é como um sintoma, que aponta para algo errado na ideia. Não acho que os liberais de hoje consigam admitir isso. Por exemplo, tive um debate na França com Guy Sorman, um defensor radical do capitalismo e ele dizia: “capitalismo significa justiça e democracia”. Então eu perguntei, “mas e a China hoje?”, e ele respondeu “Ah, mas isso não é capitalismo”. Isso é um pouco fácil demais. Quando você tem um capitalismo que não se encaixa no seu ideal, você diz “não, não, não é disso que se trata”. É como a piada contada por Lacan, “meu noivo nunca está atrasado pois no momento em que se atrasa ele deixa de ser meu noivo”. Claro que você pode dizer, “o comunismo é sempre democrático pois no momento em que não é democrático ele deixa de ser comunismo”. Ok, mas isso é fácil demais.



O senhor no entanto sugere em seu livro que as revoluções são violentas apenas quando não são de fato revolucionárias. Ou seja: quanto mais revolucionária for uma revolução, menos violenta ela será num sentido estrito. Poderia falar sobre isso?



ZIZEK: Escrevi num outro livro algo que me deu muitos problemas: eu disse, “o problema de Hitler é que ele não foi violento o bastante”. E as pessoas ficaram “aaai, você queria que ele tivesse matado todos os judeus?!” Não! Ele não foi violento o bastante nesse sentido autêntico, revolucionário, em que a violência significa transformação das relações sociais, e não tortura ou assassinato. Hitler matou milhões de judeus em nome da manutenção do sistema. O que estou dizendo é que não quero dar a Hitler sequer esse crédito, na linha “ele foi um criminoso, mas era um líder corajoso”. Não, ele não era. Nesse sentido, Mahatma Gandhi foi mais violento do que Hitler. Gandhi é sem dúvida um modelo de paz, mas nesse sentido básico ele foi violento, organizou protestos de massa com o objetivo de impedir o funcionamento do Estado colonial inglês na Índia. Isso é algo que Hitler nunca ousou fazer.



Os críticos da totalidade apontam um outro tipo de violência, que é a violência das ideias. Toda revolução tem pelo menos dois momentos. Um de suspensão total daquilo que é dado, o que o senhor chama de “evento”, citando o termo usado por Alain Badiou. E um segundo momento de estabelecimento de uma nova ordem. É este segundo momento que é percebido como inerentemente violento, na medida em que a nova ordem é estabelecida a partir de abstrações totalizantes que são impostas à sociedade.



ZIZEK: Sim, essa é a crítica padrão, iniciada por Edmund Burke e Joseph de Maistre. Mas, escute. A violência emerge, admito, como uma limitação desses modelos abstratos. Mas acho que essa análise é muito simplista. Há revoluções, afinal, que são bem sucedidas. Veja o milagre da democracia. Sou um crítico das democracias atuais, mas a ideia de democracia é um exemplo maravilhoso de como algo que era percebido na sociedade pré-moderna como o maior momento de perigo e instabilidade pode se tornar parte da estabilidade do novo sistema. Na época das monarquias, ou mesmo nos regimes totalitários, o momento de maior perigo se dá quando o líder morre e o trono fica vazio. Na União Soviética, quando Stalin morreu, mantiveram a morte em segredo por três dias. A ideia da democracia, no entanto, é muito engenhosa. Ela diz: “e se, em vez de tratar o fato de que o trono está vazio como um problema, nós o considerarmos uma solução? O trono está originariamente vazio, e apenas algumas pessoas eleitas democraticamente podem ocupá-lo por um certo período de tempo, de forma limitada. Ninguém tem um direito natural a ocupar o espaço do poder”. Esse é para mim um ótimo exemplo de algo que parecia violento e se torna o próprio fundamento da estabilidade. Então concordo que há um perigo das ideias, mas acho que o dia seguinte é a parte mais importante das revoluções. Não me sinto fascinado por esses momentos de grande mobilização onde todos estão nas ruas, juntos, pedindo mudança. Isso sempre me lembra da França, onde todo conservador hoje, a começa por Sarzoky, diz: “claro, em 1968 eu estive nas barricadas”. O que me interessa é o dia seguinte. A violência do dia seguinte é sinal de uma falha, mas não há sempre necessariamente violência. Se aqueles no poder resistem, é claro que deve haver alguma violência, mas apenas como forma de defesa.



O senhor argumenta, porém, que no interior do horizonte da democracia só é possível pensar em mudanças parciais, reformas...



ZIZEK: Não, aqui serei bem específico. Falo do horizonte da democracia atual. O problema é como revitalizar a democracia. Mesmo Badiou, que às vezes disse coisas malucas, como “o nome do inimigo hoje é democracia”, já especificou essa declaração, explicando que o que ele critica é o modelo atual de democracia representativa. Vou dar um exemplo. Estive na Inglaterra anos atrás, nas últimas eleições vencidas pelos Trabalhistas, quando Blair ainda era o líder do partido. Duas semanas antes da votação, houve na BBC uma grande eleição pública para se escolher a pessoa mais odiada da Inglaterra. Sabe quem ganhou? Tony Blair. E duas semanas depois, Tony Blair foi eleito. O que isso mostra? Mesmo críticos conservadores admitem isso: há uma disfunção da democracia, uma certa quantidade de energia de protesto, frustração, insatisfação, que não pode ser capturada por esses modelos tradicionais puramente partidários e representativos. E então há reações distintas a isso. Desde os “movimentos de uma questão só”, como um movimento pela redução de certos impostos, até essas revoltas aparentemente irracionais, como a queima de carros nos subúrbios de Paris. Isso deveria preocupar qualquer democrata sincero hoje. Como tornar o sistema democrático mais eficiente, de modo que não se tenha explosões de descontentamento que dão expressão a uma energia não capturada pela representação política?



Mas a criação de novos canais de expressão ou atuação política pode ser defendida dentro de uma agenda democrática puramente reformista. Por que seria necessário então recuperar, como o senhor propõe, a noção de revolução?



ZIZEK: Mas espere um minuto, por revolução não quero dizer estado de emergência, polícia revolucionária etc. Por revolução quero dizer apenas, num sentido puramente formal, mudança radical. Talvez nem mesmo uma mudança radical veloz. A revolução seria, simplesmente, por exemplo, que as pessoas no Japão ameaçadas pela radiação nuclear se unissem e exigissem algum tipo de regulação internacional eficiente... Revolução para mim é mudança nas relações sociais de poder.



Um lento processo de transformação não seria o oposto do “evento”, do qual fala Badiou?



ZIZEK: Badiou é muito preciso: para ele, um evento é algo que só pode ser reconhecido retroativamente. E aqui entra o que ele chama de fidelidade ao evento. Não é o grande evento, mas esse trabalho paciente de busca por novas formas, a reinscrição do evento na forma do ser, da vida cotidiana. Para mim, foda-se a revolução, o que me interessa é aquilo que permanece. Não ligo para o que aconteceu na Praça Tahrir. O que me importa é o que vai permanecer daquilo daqui a cinco anos. Nesse sentido, o evento é apenas um ponto de início mítico que abre um certo horizonte de atividade política, e esse é o verdadeiro trabalho, lento e duro. Badiou faz uma referência maravilhosa na qual ele lê esse processo revolucionário segundo as qualidades cristãs definidas por São Paulo: fé, esperança e amor, das quais o amor é a mais importante. Badiou diz: fé é a fé no evento, no sentido de que algo novo é possível; esperança é a esperança de que chegaremos ao objetivo; e amor é para Badiou, como disse São Paulo, o trabalho do amor. O que significa trabalho paciente. É disso que precisamos hoje. Deixe-me dar um exemplo: Obama. Gostei de Obama no começo, e mesmo agora ainda gosto dele em alguma medida, mas sabe por quê? John McCain falava uma língua que para mim era revolucionária de modo apenas superficial. Ele dizia “temos inimigos, como a burocracia, devemos combatê-los e tudo vai dar certo”. Obama, por sua vez, dizia: “nós temos problemas sérios e o que precisamos é de trabalho paciente”. Essa reabilitação do trabalho cinzento diário, talvez a esquerda precise de um pouco disso, não?





O comunismo vai vencer, como o senhor disse ao jornal inglês “The Guardian”?



ZIZEK: Ah, isso é uma provocação. Quis dizer: o comunismo vai vencer ou então estaremos todos na merda. Você tem que dizer algo assim de vez em quando para fazer as pessoas pensarem. Ainda sou um comunista, mas não um continuísta. O século XX acabou. O resultado geral do comunismo foi um fiasco. A social-democracia foi boa enquanto funcionou, mas está hoje em crise. E a lição do sucesso econômico da China e de Cingapura é que o casamento aparentemente eterno entre capitalismo e democracia está se desfazendo. Temos aqui uma forma de capitalismo ainda mais dinâmica do que o capitalismo ocidental, e que funciona perfeitamente em condições autoritárias. Isso deveria nos preocupar. A razão por que me considero ainda um comunista é que vejo uma série de problemas para os quais não há solução possível dentro do modelo do capitalismo liberal global. Entre eles, a questão ambiental, a biogenética, a propriedade intelectual. Para enfrentá-los vamos precisar de um esforço coordenado de larga escala, algo de que nem o mercado nem o Estado tradicional são capazes. Quando as pessoas me dizem “você é um utópico”, eu digo: “a única utopia de fato é acreditar que as coisas podem seguir indefinidamente seu curso atual”. É claro por exemplo que se a China continuar se desenvolvendo na escala atual haverá uma demanda materialmente impossível de se atender. Para mim, comunismo é o nome de um problema. Todos esses problemas são problemas de algo comum (“problems of commons”), de algo que deveria ser compartilhado por todos nós. É uma alegação muito modesta

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Companhia das Letras lançará romances de Foster Wallace


 Companhia das Letras lançará romances de Foster Wallace


 por Guilherme Freitas
, os romances "Infinite Jest" e "The Pale King", de David Foster Wallace, serão publicados no Brasil pela Companhia das Letras, anunciou nesta sexta-feira no Twitter o editor André Conti.

Em 1996, Wallace publicou "Infinte jest", um romance de mais de mil páginas no qual buscava colocar em prática as teorias que vinha desenvolvendo desde o início da década sobre a fusão entre técnicas narrativas pós-modernas e o humanismo dos autores realistas do século XIX (argumento desenvolvido longamente no ensaio "E unibus pluram", de 1993, que será lançado em português como parte de uma coletânea de não ficção de Wallace a ser publicada pela Companhia das Letras no ano que vem). Um amplo painel sobre a presença invasiva do entretenimento na cultura americana contemporânea, e o tipo particular de solidão que isso engendra, "Infinte jest" se tornou um best-seller inesperado, especialmente por se tratar de uma narrativa tão intricada (quando perguntado sobre isso, Wallace dizia, não totalmente de brincadeira, que determinara a disposição dos capítulos segundo o modelo geométrico do Triângulo de Sierpinski).


REPRODUZO ABAIXO UM TRECHO DO FAMOSO ENSAIO.

E Unibus Pluram: Televisão e Ficção nos Estados Unidos.
Por RUY VASCOCELOS

Aja Natural
Escritores de ficção, como espécie, tendem a comer com os olhos. Tendem a esconder-se e encarar. No momento em que escritores de ficção cessam de mover-se, começam a esconder-se e encarar. São observadores natos. São espectadores. São aqueles no metrô cuja desinteressada fixidez guarda, de algum modo, algo repugnante. Quase predatório. Isto se dá porque as situações humanas são o repasto dos escritores. Ficcionistas observam outros seres humanos do modo como basbaques diminuem o passo ante batidas de carro: eles cobiçam uma visão de si próprios como testemunhos.

Porém ficcionistas como espécie tendem a ser terrivelmente auto-conscientes. Mesmo para padrões norte-americanos. Dedicando jardas de tempo produtivo ao estudo meticuloso de como as pessoas deles se aproximam, ficcionistas também gastam um horror de tempo produtivo a especular achacosamente como eles se aproximam das outras pessoas. Como aparecem, como parecem, como a borda de suas jaquetas deve flutuar à solta, ou se há marcas de batom em seus dentes, ou se as pessoas que eles estão observando podem eventualmente surpreendê-los como repugnantes espiões e bisbilhoteiros.

O resultado é que a maioria dos escritores de ficção, observadores natos, tendem a não apreciar serem objetos da atenção alheia. Serem observados. As exceções à regra –Mailer, McInerney, Janowitz – criam a especiosa impressão que muitos tipos de beletristas gostam da atenção das pessoas. Não é assim com a maioria. Os poucos que gostam de atenção a obtêm naturalmente em maiores doses. O resto de nós, menos, e comemos com os olhos.

Muitos dos ficcionistas que conheço são americanos com menos de quarenta. Não sei se ficcionistas com menos de quarenta assistem mais televisão do que outras espécies americanas. Os estatísticos reportam que se assiste cerca de seis horas de televisão em um lar americano médio. Eu não conheço um único ficcionista que viva em um lar americano médio. Suspeito que Louise Erdrich talvez viva. Falar a verdade, eu nunca vi um lar americano médio. Exceto na TV.

Assim meio de cara se pode divisar um par de coisas que assomam potencialmente relevantes, quanto aos ficcionistas americanos e sua relação com a televisão nos Estados Unidos. Primeiro, a TV opera um bocado de pesquisa predatória por nós. Como seres humanos, americanos conformam um bando evasivo e proteico, na vida real, dificilmente passíveis de serem tratados univocamente por um território literário que moveu-se de um naturalismo darwinista a uma cibernetismo pós-posmoderno em oitenta anos. Mas a televisão sobrevêm equipada com esse trato sintético. Se desejarmos saber o que é a normalidade americana – o que os americanos aspiram encarar como normal – podemos confiar na televisão. Pois toda raison da televisão é refratar o que as pessoas querem ver. É um espelho. Não um espelho à Stendhal refletindo o azul do céu e a poça enlameada. Está mais para o espelho do armário de banheiro diante do qual o adolescente monitora seu bíceps e determina seu melhor perfil. Essa espécie de janela sobre a tensa auto-percepção norte-americana é de fato inestimável, friccionável em sabedoria. E escritores podem ter fé na televisão. Há um bocado de dinheiro em jogo, afinal; e a televisão contém a melhor amostra que demógrafos dedicados às ciências sociais aplicadas têm a oferecer, e esses pesquisadores podem assim determinar precisamente o que os americanos nos anos 90 são, querem, veem: o modo que nós como audiência desejamos nos entrever. A televisão, da superfície ao fundo, diz respeito a desejo. Falando ficcionalmente, desejo é o açúcar da dieta humana.

A segunda coisa notável é que a televisão parece ser uma absoluta dádiva divina para uma subespécie humana que adora observar as pessoas mas detesta ser observada. Pois a tela da TV propicia um acesso em mão única. Uma válvula física de teste para bolas. NÓS podemos vê-LOS; ELES não podem NOS ver. Podemos relaxar, desapercebidos, enquanto comemos com os olhos. Creio que é por isso que a televisão tem também tanto apelo para solitários. Para enclausuramentos voluntários. Cada ser humano solitário que conheço assiste bem mais que a seis horas médias diárias dos outros americanos. O solitário, como o ficcionista, adora a observação de mão única. Pois as pessoas solitárias são em geral solitárias não por conta de horrendas deformações ou odores ou algo que as torna repulsivas – de fato hoje existem grupos de suporte social para pessoas com essas precisas características. Solitários tendem a ser solitários porque se recusam a enfrentar o custo emocional associado a se estar cercado de outros seres humanos. Eles são alérgicos a pessoas. As pessoas os afetam de modo forte em excesso. Chamemos o americano solitário médio de Joe Briefcase [Nota do tr.: algo como Zé Pasta (de documentos, dessas usadas por executivos. Mas a expressão também pode ser traduzida como "breve caso": Zé Brevecaso.)]. Joe Briefcase tão-só detesta o fluxo de auto-consciência que tão estranhamente surge somente quando outros seres humanos reais estão à volta, fixando, suas antenas-humanas eriçadas. Joe B. teme o modo como ele pode aparecer para observadores. Ele se põe ao largo do estressante jogo americano do pôquer da aparência.

Mas solitários, em casa, sozinhos, ainda anseiam por visões e cenas. Daí a televisão. Joe pode encará-LOS, na tela; ELES permanecem cegos para Joe. É quase como voyeurismo. Conheço pessoas solitárias que enxergam a televisão como uma verdadeira deus ex machina para voyeurs. E boa parte da crítica, da virulenta crítica, menos ponderada e mais salpicada sobre as redes, anúncios comerciais, e os espectadores indistintamente, tem a ver com a acusação de que a televisão nos tornou uma nação de complacentes voyeurs de queixo caído. A acusação constitui uma inverdade, mas por estranhas razões.

O clássico voyeurismo é espiacional: observar pessoas que não sabem que você está lá no que prosseguem com as prosaicas mas eroticamente densas tarefas da vida privada. É interessante a medida de o quanto o clássico voyeurismo envolve instrumentos de janelas emolduradas por vidros, telescópios, etc. Talvez essa moldura vítrea é o que faz a analogia com a TV tão tentadora. Mas a assistência da TV é um animal diferente do peeping tourism. Porque as pessoas que assistimos pelo vidro emoldurado da TV não são realmente ignorantes do fato de que há alguém as assistindo. Em verdade, uma vasta porção de alguéns. Em verdade, as pessoas na televisão sabem que é em virtude dessa enorme massa de alguens comedores com os olhos a própria razão de elas estarem na tela, ocupadas com gestos largos, de nenhum modo prosaicos. A televisão não propicia o verdadeiro espiacionalismo, porque a televisão é performance, espetáculo, o que por definição requer observadores. Não somos voyeurs, aqui, portanto. Somos meros espectadores. Somos a Audiência, megametricamente numerosa, embora com frequência a assistamos sozinhos. E Unibus Pluram.

Uma das razões pelas quais escritores de ficção parecem repelentes no plano pessoal é o fato de serem realmente voyeurs por vocação. Eles precisam desse direto furto visual de observar alguém sem ter de contrapor uma individualidade especialmente assistível. A única real ilusão no espionalismo é sofrida pelo voyeurizado, que desconhece que está fornecendo imagens e impressões. Um problema para muitos de nós, escritores de ficção com menos de 40, lançando mão da televisão como substituto do verdadeiro espionalismo, no entanto, é o de que o voyeurismo da TV envolve toda uma opulenta orgia de ilusões para o pseudo-espião, quando o assistimos. Ilusões é tudo que voyeurizamos aqui: os voyeurizados do lado de lá da tela estão apenas sugerindo uma ignorância de serem vistos. Eles sabem perfeitamente que estamos do lado de cá. E a instância de nos encontrarmos aqui está por igual bem enfronhado nas mentes dos que se postam por detrás da segunda camada de vidros, as lentes e os monitores por intermeio dos quais técnicos e diretores empregam-se sem nenhuma ingenuidade em lançar a imagem até nós. O que nós vemos está longe de ser roubado. É ofertada – ilusão. E ilusão que assistimos pela moldura envidraçada; não se trata de pessoas em situações reais que agem ou mesmo movem-se sem a consciência da audiência. O que jovens escritores estão vasculhando, os dados de certas realidades a ficcionalizar, já se encontram compostos por personagens em narrativas altamente ritualizadas. E mais, nós não estamos sequer vendo personagens

[…]







A aparição auto-consciente da ausência de auto-consciência é a grande ilusão por detrás da sala de espelhos de ilusões da TV; e para nós, a audiência, é simultaneamente remédio e veneno. […] Pois reparamos nessas pessoas raras, altamente treinadas, aparentemente não assistidas, seis horas por dia. E adoramos esse pessoal. Ao ponto de atribuí-los verdadeiras propriedades sobrenaturais e desejarmos emulá-los, nós como que os veneramos.

[...]

domingo, 29 de maio de 2011

A Nova expressão do romance americano





Jonathan Franzen, autor de Liberdade, explica o seu território literário preferido, o Meio-Oeste dos EUA, fala do uso de diferentes pontos de vista em sua ficção e defende o hábito da leitura diante do avanço da web

Lúcia Guimarães - O Estado de S.Paulo

O endereço foi uma surpresa. Como o mais celebrado romancista americano de sua geração foi parar num prédio do Upper East Side, na esquina da Avenida Lexington? Longe dos restaurantes onde seus pares discutem e bebem? Não demorei a descobrir. O homem alto, que, havia pouco, me recebera na entrada do apartamento pisando o chão só de meias, se desmanchou num sorriso de gratidão quando, ao notar seu par de sapatos na porta, ofereci para tirar os meus também. Pergunto a Jonathan Franzen se lhe incomodam os modismos. A resposta: "Há algo menos cool do que o meu endereço em Manhattan?". Sou obrigada a concordar, tendo fugido da mesma rua tão logo deixei de depender da proximidade de uma certa escola de primeiro grau.





Veja também:

Leia o início de 'Liberdade' e compare com o romance anterior de Jonathan Franzen, 'As Correções'



Franzen, 51 anos, tem o olhar preocupado de quem se tornou o alvo de, nas suas palavras, uma carga de tijolos de louvor. Seu quarto romance, Liberdade, que chega ao Brasil - ele não virá lançá-lo aqui, mas garante presença na Flip de 2012 -, faz tanto sucesso dos dois lados do Atlântico que o autor já espera "pagar caro por isso" quando começar o próximo. Em tempo: o próximo livro de Franzen, Masafuera, não é um romance, é uma coleção de ensaios e já está a salvo de sua angústia, na editora.



Desde que Liberdade foi lançado nos Estados Unidos, em 2010, Franzen cumpriu uma turnê publicitária condizente com um astro das letras. Quem acompanhou seu esforço para sobreviver ao sucesso estrondoso de As Correções, em 2001, sucedido pelo apropriadamente intitulado livro de memórias A Zona do Desconforto, não deixa de notar um homem conformado com a fama que, ele admite, transformou sua vida.



Mas, além de uma ida à pedicure antes de se dirigir a seu apartamento, recomendo aos futuros visitantes atenção esmerada com as palavras. Como um artesão da escrita, ele monitora cada uma emitida na sua presença e sua reticência em busca do nirvana semântico pode abrir um intervalo de 10 segundos entre um sujeito e um predicado. Ao lembrar a Franzen que já nos encontramos outro dia, brevemente, ele enfatiza: "Sim, brevemente". Ao pedir para que diga uma segunda vez para a gravação a resposta sobre os muitos significados da "liberdade" do título de seu romance, sou comunicada de que essa foi a minha pergunta "menos favorita". Mas eu logo me lembraria que estava diante de um cavalheiro do Meio-Oeste que detesta ser indagado sobre o que isso quer dizer. Numa gentileza típica de Midwesterners, ele oferece a explicação. Mais do que isso, não deixa uma pergunta da entrevista a seguir sem resposta. Tijolos, afinal, servem para construir alguma coisa.



O seu romance, apesar de seguir a história de uma família por 30 anos, é rico em fatos da última década. Houve um momento específico em que a política americana foi decisiva para dar a partida da trama?



Sim, houve vários momentos. Provavelmente a decisão de invadir o Iraque, acima de tudo. O problema é que, toda vez que eu queria decolar, com um tema político, eu ficava paralisado pela minha própria raiva, pelo meu próprio partidarismo, como um democrata de esquerda. Não conseguia me separar das minhas convicções e a minha angústia como um americano por causa do que o governo estava fazendo. Então, não me parece acidental o fato de ter começado a escrever uma semana antes de Obama ser eleito, quando ficou claro que ele ia ganhar. Algo me fez relaxar e consegui me despreocupar de questões políticas e retornar ao trabalho de criar histórias complicadas e ambíguas. Até aquele momento, o que eu já tinha como trama era apenas a família da protagonista Patty e sua má experiência com o liberalismo americano. Eu tentava, há tempos, distribuir igualmente as ofensas à esquerda e à direita, mas só quando percebi que Bush ia embora me pareceu OK passar um ano escrevendo um romance.



O que é o seu Meio-Oeste, um elemento psicológico tão importante da sua ficção?



Eu acho que o Meio-Oeste não é um lugar, é uma síntese. As pessoas se identificam como midwesterners e têm algo em mente quando dizem isso. Se você mora na Califórnia ou em Nova York, também quer dizer algo quando se refere ao Meio-Oeste. Mas não tenho certeza se há um conjunto de características do Midwesterner que não são compartilhadas em outros locais do país. Pode ser um termo sem significado.



Mas por que você diz que por um lado é um "bom rapaz do Meio-Oeste"?



É quase uma redundância; se refere à ideia de que as pessoas nas costas Leste e Oeste são agressivas. O estereótipo do Midwesterner é extremamente bonzinho.



E não gosta de pretensão...



Isso mesmo, é despretensioso. Acho que podemos argumentar que F. Scott Fitzgerald e Sinclair Lewis inventaram o Meio-Oeste e o fizeram como pessoas que deixaram o lugar. Então, o Meio-Oeste parece se revelar só quando você vai embora. Hemingway foi embora, Kurt Vonnegut também. E o David Foster Wallace - todo mundo vai embora. E aí você percebe que vê as costas com um olhar diferente de quem cresceu lá e, desta posição, começa a argumentar que há algo sobre o Meio-Oeste.



Por que você gosta de usar múltiplos pontos de vista na sua narração?



Isso é muito natural para mim. Eu cresci numa casa com quatro vozes muito fortes. E cada uma muito diferente e todas em conflito entre elas. E todos falavam comigo, me incluíam na sua versão da história da família. Mas as versões estavam em grande conflito. Então acho que cresci, como o caçula, aprendendo a falar quatro línguas diferentes, olhando o mundo com quatro perspectivas diferentes. Seria difícil para mim um romance numa só voz narrativa.



Você comentou que cresceu como uma criança num mundo de adultos. Hoje, a cultura corteja segmentos jovens como se ser criança ou adolescente fossem um objetivo e não uma etapa do crescimento. Em Liberdade, nós vemos adultos se comportando como crianças e seus filhos tendo que amadurecer para compensar. Foi a sua experiência pessoal?



Eu pude observar isso. Há várias coisas. Os anos 60 inventaram a juventude e fizeram dela um território de acontecimentos na cultura. Foi algo liderado pela indústria da publicidade e muito útil para uma sociedade de consumo que gosta de transformar as pessoas em adolescentes eternos. Então, você começa por antecipar a adolescência - crianças de 8 anos já têm que se preocupar se usam roupas cool, com os aparelhos que têm que comprar e, no outro extremo, não termina aos 20 anos, vai continuando até os 65! Foi um fenômeno inventado pelos baby boomers. Há essa anulação da diferença de idade que, quando eu crescia, ainda era crucial. Eu não gostava especialmente de ser criança, queria me tornar adulto logo, mas desfrutava dos privilégios de ser criança. E me sentia grato porque meus pais faziam seu papel de adultos. Essa falta de distinção entre o que é ser adulto e ser criança na cultura me assusta.



A personagem Patty, a certa altura, critica a geração do filho, diz como deve ser difícil, por um momento, ter que sair do seu próprio mundo de fones de ouvido e gadgets pessoais. Muitos perguntam se o maciço assalto aos sentidos vai afetar o hábito da leitura solitária, que exige do leitor se desligar da internet e dos aparelhos.



Acho que ainda há muitos leitores. A minha visão é quase oposta. Muitas pessoas estão oprimidas por este mundo virtual e pelo bombardeio de comunicações. Nem todos, é claro. À medida que aumenta a diferença entre ler um livro e as outras experiências de hoje, o livro emerge como uma alternativa real e deve ser mais atraente por causa disso. É um refúgio. Num bom romance, você consegue se reconhecer e pensar: "Eu poderia estar nessa situação". Não é uma confusão de identidade, mas uma alternativa. Escrever e ler um romance tem muito a ver com uma perda voluntária do eu - o oposto de se sentir no centro do mundo virtual.



Quando o personagem músico Richard Katz dá uma entrevista sarcástica para o estudante adolescente sobre a canção avulsa em mp3, isso reflete o que você vê acontecendo com a música?



Ah, sim. A música está num lugar ruim, acho. O arquivo mp3 transformou completamente o uso cultural da música. E fez dela uma espécie de goma de mascar e também um tipo de droga, muito longe de uma experiência singular e coerente. Quem ouve um álbum completo hoje em dia? E quem grava um bom álbum completo? Poucos.



Mas exatamente porque os músicos não conseguem sobreviver com gravações, eles estão em tours constante - há muito mais música ao vivo.



Eu sei disso. Pode ser uma coisa boa. Mas é como dizer que há mais bares para tomar café. Eu não acho que a música ao vivo seja uma atividade que carregue significância. Você pode desfrutar dela. O que estou dizendo pode ser anátema para um público brasileiro. Porém não há conteúdo. É um prazer, mas, e daí? Quando você vê um músico que um dia respeitou tendo sua obra como trilha de comerciais para produtos deploráveis, você percebe que a música não tem centro moral e não tem mais conteúdo intelectual. É pura diversão.



Quando o jovem personagem Joey enfrenta dificuldades e se vê sozinho, ele pensa que deve satisfações ao seu pai "severo e com princípios". O que há de especial na necessidade de um filho ser aceito pelo pai - algo que me parece ser um elemento essencial do seu romance?



No meu caso não foi assim, o meu pai me aceitava. Ele era severo, duro, assustador. Minha mãe era bem mais militante na sua desaprovação. Ele era rígido, mas doce. O problema que você cita era mais o caso de um dos meus irmãos. Há um tipo de história que vai sempre me fazer chorar - qualquer história sobre um pai e um filho superando uma separação por desavença.



Por quê?



Bem, não queremos traficar estereótipos entre os sexos....



Fique à vontade, nós brasileiros temos tolerância alta para o politicamente incorreto.



Tradicionalmente, o esforço de construir redes de relacionamento é deixado com as mulheres, e tradicionalmente, os homens vão à luta para se definir por conta própria. Não sei se deve ser ou tem que ser assim, no entanto você olha para as outras espécies e, geralmente, as fêmeas estão organizando o lar e os machos estão por aí lutando uns com os outros. Pode chamar de conflito edipiano, não importa, o filho sempre está lutando por um certo espaço. E, por causa dessa história de conflito entre pais e filhos, eu fico muito emocionado quando eles superam isso.



Você já se referiu aos seus dois primeiros romances, The 27th City e Strong Motion como produtos de um período da sua vida em que queria a todo custo impedir qualquer risco de sentimentalismo na escrita. E que, com a doença e morte do seu pai, ao escrever As Correções, queria experimentar a perda de controle.



Eu ainda me preocupo em evitar o sentimentalismo - que é diferente de sentimento, claro. Sim, havia muita ironia e sátira nos dois primeiros livros. E me remete ao que acabamos de mencionar. Meu pai era esta presença masculina tão contida e inteligente e eu, o menino da família, queria me afirmar intelectualmente através do meu trabalho, ser invulnerável a qualquer ataque emocional. À medida que nos tornamos mais velhos, podemos assumir mais riscos.