sexta-feira, 10 de junho de 2011

Museu da Inocencia

Escritor Orhan Pamuk fala de romance que inspirou museu







FABIO VICTOR

DE SÃO PAULO



Enquanto a ficção contemporânea brinca de realidade, Orhan Pamuk levou o jogo além. Em seu novo romance, "O Museu da Inocência", o Nobel turco prorrogou a invenção para a vida real.



O livro conta a paixão de Kemal por Füsun, tão intensa que leva o personagem a criar um museu com objetos ligados ao caso de amor.



Só que, enquanto escrevia o livro, Pamuk --que aparece algumas vezes na trama-- foi montando um museu de verdade com bugigangas que fazem parte da história.



Será aberto em breve em Istambul, e um ingresso impresso no livro dará acesso ao local.



Sobre o hábito humano de colecionar e sobre esses dois museus, o de verdade e o ficcional, ele falou à Folha, por telefone, de Istambul.



Pamuk, que esteve na Flip em 2005 e voltará ao Brasil em dezembro para participar do ciclo de conferências "Fronteiras do Pensamento", relembrou o país e comparou Rio e São Paulo a Istambul e Ancara.



Ed Oudenaarden - 26.ago.10/Efe



O escritor turco Orhan Pamuk, cujo livro terá ingresso para entrar no museu com objetos que estão na história



*

Folha - O que veio primeiro, o museu ou o romance?

Orhan Pamuk - Vieram juntos. O romance foi pensado na forma de um catálogo de museu, mas tem vida própria, você não precisa do museu para lê-lo. Neste sentido, parece com, e é para ser lido como, um romance clássico do século 19.

Você não precisa saber que há um museu nem que por anos eu reuni objetos. Mas eu comecei o romance com a ideia de fazer o museu.



O sr. começou a juntar objetos desde o início do livro?

Sim. Para mim, o desafio era criar e desenvolver a história ao mesmo tempo em que colecionava objetos que estavam na história. Ou seja, meus personagens estão vestindo um vestido, ou fumando um cachimbo ou um cigarro de marca antiga, ou olhando pela janela e vendo paisagens fotográficas. Eu tenha de ter as fotografias, os cigarros antigos, o vestido, o cachimbo.

Deixei claro para mim mesmo que primeiro eu teria de achar os objetos e então os colocaria no romance. Em seguida eu exibiria os objetos num museu.

Junto com isso veio a ideia de ambientar o romance numa casa que já existe, e de depois converter essa casa num museu.

E também sempre quis escrever um romance sobre o que ocorre quando nos apaixonamos, como a química e o espírito se comportam. Claro que o amor é algo universal e eterno, mas cada pessoa se comporta de um jeito. Por outro lado, a humanidade se comporta de modo mais ou menos parecido. Nesse sentido, meu personagem representa toda a humanidade, mas não representa toda a humanidade, porque é um homem turco de classe alta vivendo em Istambul nos anos 1970. Ele é restrito por sua história cultural.



O museu de verdade já existe, está funcionando?

Para lhe dar essa entrevista, eu tive de deixar as coisas de lá [no museu]. Hoje estou trabalhando com dez pessoas, estamos terminando. Mas meus fãs estão gozando, "Orhan, há um ano e meio você diz que está terminando o museu". Mas agora estamos mesmo. É um prédio que eu comprei há 12 anos, que foi convertido em museu. Todas as coisas mencionadas no romance estão lá. Mas, agora que você está perguntando tudo isso, deixe eu lhe dizer muito claramente que o romance veio primeiro. Para mim, a literatura está sempre na frente. O romance vale por si e eu não quero falar muito sobre o museu antes de falar o bastante sobre o livro.



Mas quando o museu deve abrir?

Acabamos de botar uma placa muito bonita na porta: "Infelizmente, o Museu da Inocência ainda está em construção. Lamentamos por não estarmos abertos ainda". Porque várias pessoas de todas as partes, que compraram o romance em diferentes traduções, estão vindo com o livro nas mãos e nos xingam. Meus amigos pintores e carpinteiros dizem: Mr. Pamuk não está. Eles ficam bravos. Avise aos leitores brasileiros que ainda não está aberto, mas que estará em breve.



O museu realmente vai existir? Porque eu penso se não poderia ser um truque...

Não, não é um truque. Não estou armando um jogo borgiano desses. Não faria isso. Será aberto. Venha a Istambul e verá o prédio.



É interessante que no livro está descrito inclusive que os guardas do museu deverão vestir ternos de veludo escuro e gravatas bordadas com o brinco de Füsun...

Sim, agora que estamos terminando estamos comprando essas roupas. Mas esse não é o foco. Você esqueceu do romance... Darei a você outra entrevista quando o museu abrir.



Ok, ótimo. Mas, uma vez que o romance fala sobre museus, qual é a função de um museu? Não falo do seu museu, mas de museus em geral.

Meu pobre Kemal pensa no desejo humano de colecionar e em como a civilização, particularmente a civilização ocidental, consegue reunir essas coleções, enquanto, no mundo não ocidental, raramente elas são colocadas em museus. Eles nem sequer chamam de coleção, chamam de coleta aleatória de objetos. Mas toda coleta aleatória de objetos tem por trás de si um espírito --por isso as pessoas colecionam objetos.

Meu livro mostra que há um desejo inato em nós de colecionar, que está profundamente relacionado com algum trauma, uma ferida espiritual, uma memória dolorosa. Não queremos saber por que colecionamos, mas continuamos colecionando. Nas civilizações em que as coleções não são vistas como algo importante e valioso, as pessoas têm vergonha de colecionar, escondem suas coleções, são chamadas de esquisitas, morrem sozinhas e assim por diante.

Mas, uma vez que coleções são valorizadas, há uma cultura de objetos colecionáveis --e não esqueça que essa cultura é muito mais visível graças à internet. Se não são valorizados, desaparecem.



A propósito, há um trecho do livro que diz: "(...) enquanto o Ocidente sente orgulho do que é, a maior parte do mundo vive tomada pela vergonha. Mas, quando os objetos que nos causam vergonha são expostos num museu, transformam-se imediatamente em pertence que podem nos orgulhar".

Até hoje, museus expõem símbolos de poder. O Louvre era um palácio, um lugar da monarquia, que virou um museu popular. Hoje não representa o poder dos reis franceses, mas do povo francês. Museus são lugares onde são exibidos o poder e o orgulho de uma comunidade, de uma nação. É tudo uma questão de exibir as coisas e sentir orgulho disso.

"O Museu da Inocência" é uma história de amor, na maior parte relata a paixão de Kemal, meu personagem, por uma prima na Istambul dos anos 1970. Mas ao mesmo tempo eu tento analisar, ver através do espírito dos colecionadores. Neste sentido, Kemal é, no começo do romance, um homem do mercado corporativo, uma pessoa normal. Mas, quando ele se apaixona e o romance o conduz a uma situação trágica, ele começa a colecionar objetos. Quando ele faz isso, pegando o brinco de Füsun, ele não se dá conta de que inicia uma coleção --está apenas respondendo a algo espiritual, a uma dor amorosa.

Então vem o segundo objeto, o terceiro, o quarto... quinhentos objetos. Algo que podemos chamar de uma coleção, se acreditamos em museus.

Então um colecionador real não começa com o desejo de fazer um museu, mas é alguém que está respondendo aos tormentos de um drama espiritual. Meu personagem, Kemal, é uma pessoa ferida, e "O Museu da Inocência", na superfície, é sobre uma paixão amorosa, como reagir a ela, uma espécie de catálogo sobre o que nos ocorre quando nos apaixonamos.



Claro que o livro vai além da história de amor, mas, até onde sei, é o seu primeiro romance baseado primordialmente numa história de amor. Por que falar de amor agora?

Sim. Em primeiro lugar, por que não agora? O amor é parte essencial da vida humana. Nos meus romances eu tratei do espírito cultural da Turquia: em "Neve", por meio da política; em "Meu Nome É Vermelho", por meio da arte; em "Istambul" e "O Livro Negro", por meio das camadas de Istambul. Queria há muito tempo escrever uma história de amor. Falando do amor, falo do tema mais universal da humanidade, mas também de um tema muito particular, num país islâmico onde um casal não se relacionava tão facilmente desse jeito fora do casamento, onde nos anos 70 sexo fora do casamento era quase impossível. Mas o amor é possível em qualquer lugar, é negociado por outros meios, silêncios, gestos etc



No fim do livro, o personagem Kemal pergunta ao escritor Pamuk se ele "alguma vez esteve apaixonado assim", e Pamuk desconversa dizendo que eles não estavam falando sobre ele. Agora, que estamos falando sobre o sr., pergunto: alguma vez o sr. esteve apaixonado assim?

Certamente há uma tendência em mim em dizer: "Claro, até mais que Kemal. Kemal sou eu e todas as coisas que estão no livro aconteceram comigo". Se disser o contrário, ouvirei boas risadas. Romances são exatamente isso. Escrever um romance é escrever um texto que o seu leitor pense ter sido vivido por você. Se você diz que não, o leitor dirá: "Não minta, é você. É tão franco, tão convincente, como você pode saber tudo isso?". E você diz: "É ficção". E ele: "Não, não".

Está na essência da arte do romance, fazer o leitor achar que o que aconteceu a Kemal ocorreu a Orhan também.

Bem, deixe o leitor pensar assim. Mesmo se eu disser que não, pensarão que estou mentindo. Sim, eu estou mentindo, eu gosto de mentir, porque sou um ficcionista.



Mas como era a sua vida na primavera de 1975 [período em que se passa o romance]?

Eu larguei os estudos enquanto escrevia meu "Istambul" e comecei a decidir que seria escritor. Eu tinha 23 anos. Meu autobiográfico "Istambul" termina exatamente, você apontou corretamente, no ano em que começa "O Museu da Inocência". Kemal se apaixona por Füsun. Orhan, que vemos no romance na festa de noivado no hotel Hilton, estava tentando ser um romancista, largando a faculdade de arquitetura com o sonho ambicioso de um dia publicar meus livros na Turquia.



Não vou perguntar se existiu uma prima Füsun na vida de Orhan Pamuk, ok?

Quem sabe... Fecharei minha boca sobre esse assunto [risos].



O sr. visitou o Brasil em 2005 para a Flip e voltará no fim deste ano para uma conferência [no ciclo "Fronteiras do Pensamento", em dezembro]. Que lembrança guarda do país?

Minha lembrança sobre o país é a das diferenças entre Rio e São Paulo, muito similares a Istambul e Ancara. Duas cidades grandes, mas muito diferentes e muito próximas uma da outra. E as praias no Rio e Paraty, meu Deus... a natureza, toda essa beleza eu guardo comigo.

E a renda média é muito parecida no Brasil e na Turquia. Acho que o Brasil é um pouco mais rico, mas percebi a mesma qualidade de vida, pessoas conversando nas ruas, vendedores ambulantes, muita gente, muita coisa acontecendo. Cafés, livrarias, ambulantes invadindo as ruas. Bem parecido com Istambul.

Mas tanto o Brasil quanto a Turquia estão mudando, ambos para melhor, eu acho.



O que mudou em sua vida após o Nobel?

Quando ganhei o Nobel, eles me ligaram da Suécia, eu estava em Nova York. Imediatamente eu disse: isso não vai mudar minha vida. Mas eu estava errado, mudou minha vida. Tornou-me uma pessoa muito ocupada, mas também me trouxe novos leitores e responsabilidades. Virei possivelmente uma pessoa mais responsável. Mas meu desejo de escrever, o modo como eu dedico todo o meu tempo à literatura, isso não mudou. Continuo trabalhando muito, até mais, porque há muitos leitores esperando por um novo livro.



O sr. está escrevendo um livro sobre vendedores ambulantes de Istambul, não? Como está o livro?

É sobre outra Istambul, uma Istambul pobre. Quando nasci, Istambul era uma cidade de um milhão [de habitantes], hoje tem 11 ou 12 milhões. A maior parte é de imigrantes de uma região pobre da Turquia, a Anatólia. Como essas pessoas chegaram? Como construíram as favelas? --que são melhores, acho, do que as que vi há 6 anos no Rio. Como elas vivem? Estou escrevendo a história de um vendedor de rua que começa a perder seu trabalho. Istambul do ponto de vista da classe trabalhadora.



O MUSEU DA INOCÊNCIA

AUTOR Orhan Pamuk

EDITORA Companhia das Letras

TRADUÇÃO Sergio Flaksman

QUANTO R$ 59 (568 págs.)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Slavoj Zizek e a novidade do comunismo

Slavoj Zizek e a novidade do comunismo










Sentado num hotel em Copacabana, um dia após fazer uma palestra sobre os impasses da democracia liberal para um Odeon lotado (a convite da PUC-Rio, Uerj, Boitempo e Flacso), o filósofo esloveno Slavoj Zizek parece tomado por um excedente de energia que o deixa num estado próximo à convulsão: durante uma hora de entrevista sobre seus livros “Em defesa das causas perdidas” e “Primeiro como tragédia, depois como farsa” (Boitempo, tradução de Maria Beatriz de Medina), seus braços se lançam em todas direções possíveis pontuando as respostas aceleradas, cheias de parênteses, diálogos encenados e exclamações. Ao mesmo tempo enfática e digressiva, a fala é fiel aos textos que fizeram de Zizek uma referência para a esquerda mundial, nos quais uma aproximação original dos pensamentos de Marx e Lacan serve de ferramenta para um ímpeto aparentemente inesgotável de interpretação crítica da cultura moderna e contemporânea, dos filmes de Hollywood aos pressupostos da democracia representativa até o pensamento de Deleuze ou Antonio Negri. Nessa entrevista ao GLOBO, Zizek explica (entre outras coisas) o que significa hoje ser comunista, e por que é preciso recuperar a ideia de revolução.







Seu livro “Em defesa das causas perdidas” começa pela constatação de que a ideia de revolução está hoje desacreditada no debate político. Esse descrédito, o senhor argumenta, não se explica simplesmente pelo fim da União Soviética ou pela queda do Muro de Berlim, como muitas vezes se diz. Ele estaria ligado a diversas críticas feitas no século XX às noções de verdade e totalidade. Quais são os principais argumentos dessas críticas, e como o senhor pretende contestá-los?



SLAVOJ ZIZEK: Há uma certa moda na filosofia pós-moderna de se tomar a verdade como algo opressivo, que deve ser subvertido. Questiona-se: “quem tem o direito de dizer que algo é verdade?” Em vez da verdade, existiriam apenas opiniões. Até as ciências naturais são tomadas como um fenômeno discursivo, que não teria nenhuma diferença de princípio em relação a superstições e formas de conhecimento baseadas na tradição. Discordo disso. Penso que existe a verdade, que existe a verdade universal, e que ela pode mesmo ser vista politicamente. Por exemplo, o que aconteceu recentemente no Egito foi a universalidade em sua forma mais pura. Não precisamos de nenhuma teoria multiculturalista para entender o que se passava nas ruas do Egito. Quando você tem uma rebelião pela liberdade, pode se identificar com ela de maneira imediata. Quanto à totalidade, esse é um grande mal entendido. A noção hegeliana de totalidade não significa que todos fenômenos particulares sejam no fundo parte de um mesmo todo orgânico. Não! Se você lê Hegel, vê que totalidade é quase o oposto disso. A totalidade é uma categoria crítica, que implica perceber as maneiras pelas quais um certo fenômeno dá errado como sendo parte da essência desse fenômeno. Detesto os marxistas que dizem: “Stalin traiu o verdadeiro espírito do marxismo”. Não, não se pode permitir que isso seja dito. Se as coisas deram tão terrivelmente errado com Stalin, isso significa que havia uma falha estrutural no próprio edifício de Marx. Não acredito nessa baboseira do tipo “a ideia era boa mas infelizmente foi mal realizada”. Aqui eu sou freudiano. O resultado da ideia é como um sintoma, que aponta para algo errado na ideia. Não acho que os liberais de hoje consigam admitir isso. Por exemplo, tive um debate na França com Guy Sorman, um defensor radical do capitalismo e ele dizia: “capitalismo significa justiça e democracia”. Então eu perguntei, “mas e a China hoje?”, e ele respondeu “Ah, mas isso não é capitalismo”. Isso é um pouco fácil demais. Quando você tem um capitalismo que não se encaixa no seu ideal, você diz “não, não, não é disso que se trata”. É como a piada contada por Lacan, “meu noivo nunca está atrasado pois no momento em que se atrasa ele deixa de ser meu noivo”. Claro que você pode dizer, “o comunismo é sempre democrático pois no momento em que não é democrático ele deixa de ser comunismo”. Ok, mas isso é fácil demais.



O senhor no entanto sugere em seu livro que as revoluções são violentas apenas quando não são de fato revolucionárias. Ou seja: quanto mais revolucionária for uma revolução, menos violenta ela será num sentido estrito. Poderia falar sobre isso?



ZIZEK: Escrevi num outro livro algo que me deu muitos problemas: eu disse, “o problema de Hitler é que ele não foi violento o bastante”. E as pessoas ficaram “aaai, você queria que ele tivesse matado todos os judeus?!” Não! Ele não foi violento o bastante nesse sentido autêntico, revolucionário, em que a violência significa transformação das relações sociais, e não tortura ou assassinato. Hitler matou milhões de judeus em nome da manutenção do sistema. O que estou dizendo é que não quero dar a Hitler sequer esse crédito, na linha “ele foi um criminoso, mas era um líder corajoso”. Não, ele não era. Nesse sentido, Mahatma Gandhi foi mais violento do que Hitler. Gandhi é sem dúvida um modelo de paz, mas nesse sentido básico ele foi violento, organizou protestos de massa com o objetivo de impedir o funcionamento do Estado colonial inglês na Índia. Isso é algo que Hitler nunca ousou fazer.



Os críticos da totalidade apontam um outro tipo de violência, que é a violência das ideias. Toda revolução tem pelo menos dois momentos. Um de suspensão total daquilo que é dado, o que o senhor chama de “evento”, citando o termo usado por Alain Badiou. E um segundo momento de estabelecimento de uma nova ordem. É este segundo momento que é percebido como inerentemente violento, na medida em que a nova ordem é estabelecida a partir de abstrações totalizantes que são impostas à sociedade.



ZIZEK: Sim, essa é a crítica padrão, iniciada por Edmund Burke e Joseph de Maistre. Mas, escute. A violência emerge, admito, como uma limitação desses modelos abstratos. Mas acho que essa análise é muito simplista. Há revoluções, afinal, que são bem sucedidas. Veja o milagre da democracia. Sou um crítico das democracias atuais, mas a ideia de democracia é um exemplo maravilhoso de como algo que era percebido na sociedade pré-moderna como o maior momento de perigo e instabilidade pode se tornar parte da estabilidade do novo sistema. Na época das monarquias, ou mesmo nos regimes totalitários, o momento de maior perigo se dá quando o líder morre e o trono fica vazio. Na União Soviética, quando Stalin morreu, mantiveram a morte em segredo por três dias. A ideia da democracia, no entanto, é muito engenhosa. Ela diz: “e se, em vez de tratar o fato de que o trono está vazio como um problema, nós o considerarmos uma solução? O trono está originariamente vazio, e apenas algumas pessoas eleitas democraticamente podem ocupá-lo por um certo período de tempo, de forma limitada. Ninguém tem um direito natural a ocupar o espaço do poder”. Esse é para mim um ótimo exemplo de algo que parecia violento e se torna o próprio fundamento da estabilidade. Então concordo que há um perigo das ideias, mas acho que o dia seguinte é a parte mais importante das revoluções. Não me sinto fascinado por esses momentos de grande mobilização onde todos estão nas ruas, juntos, pedindo mudança. Isso sempre me lembra da França, onde todo conservador hoje, a começa por Sarzoky, diz: “claro, em 1968 eu estive nas barricadas”. O que me interessa é o dia seguinte. A violência do dia seguinte é sinal de uma falha, mas não há sempre necessariamente violência. Se aqueles no poder resistem, é claro que deve haver alguma violência, mas apenas como forma de defesa.



O senhor argumenta, porém, que no interior do horizonte da democracia só é possível pensar em mudanças parciais, reformas...



ZIZEK: Não, aqui serei bem específico. Falo do horizonte da democracia atual. O problema é como revitalizar a democracia. Mesmo Badiou, que às vezes disse coisas malucas, como “o nome do inimigo hoje é democracia”, já especificou essa declaração, explicando que o que ele critica é o modelo atual de democracia representativa. Vou dar um exemplo. Estive na Inglaterra anos atrás, nas últimas eleições vencidas pelos Trabalhistas, quando Blair ainda era o líder do partido. Duas semanas antes da votação, houve na BBC uma grande eleição pública para se escolher a pessoa mais odiada da Inglaterra. Sabe quem ganhou? Tony Blair. E duas semanas depois, Tony Blair foi eleito. O que isso mostra? Mesmo críticos conservadores admitem isso: há uma disfunção da democracia, uma certa quantidade de energia de protesto, frustração, insatisfação, que não pode ser capturada por esses modelos tradicionais puramente partidários e representativos. E então há reações distintas a isso. Desde os “movimentos de uma questão só”, como um movimento pela redução de certos impostos, até essas revoltas aparentemente irracionais, como a queima de carros nos subúrbios de Paris. Isso deveria preocupar qualquer democrata sincero hoje. Como tornar o sistema democrático mais eficiente, de modo que não se tenha explosões de descontentamento que dão expressão a uma energia não capturada pela representação política?



Mas a criação de novos canais de expressão ou atuação política pode ser defendida dentro de uma agenda democrática puramente reformista. Por que seria necessário então recuperar, como o senhor propõe, a noção de revolução?



ZIZEK: Mas espere um minuto, por revolução não quero dizer estado de emergência, polícia revolucionária etc. Por revolução quero dizer apenas, num sentido puramente formal, mudança radical. Talvez nem mesmo uma mudança radical veloz. A revolução seria, simplesmente, por exemplo, que as pessoas no Japão ameaçadas pela radiação nuclear se unissem e exigissem algum tipo de regulação internacional eficiente... Revolução para mim é mudança nas relações sociais de poder.



Um lento processo de transformação não seria o oposto do “evento”, do qual fala Badiou?



ZIZEK: Badiou é muito preciso: para ele, um evento é algo que só pode ser reconhecido retroativamente. E aqui entra o que ele chama de fidelidade ao evento. Não é o grande evento, mas esse trabalho paciente de busca por novas formas, a reinscrição do evento na forma do ser, da vida cotidiana. Para mim, foda-se a revolução, o que me interessa é aquilo que permanece. Não ligo para o que aconteceu na Praça Tahrir. O que me importa é o que vai permanecer daquilo daqui a cinco anos. Nesse sentido, o evento é apenas um ponto de início mítico que abre um certo horizonte de atividade política, e esse é o verdadeiro trabalho, lento e duro. Badiou faz uma referência maravilhosa na qual ele lê esse processo revolucionário segundo as qualidades cristãs definidas por São Paulo: fé, esperança e amor, das quais o amor é a mais importante. Badiou diz: fé é a fé no evento, no sentido de que algo novo é possível; esperança é a esperança de que chegaremos ao objetivo; e amor é para Badiou, como disse São Paulo, o trabalho do amor. O que significa trabalho paciente. É disso que precisamos hoje. Deixe-me dar um exemplo: Obama. Gostei de Obama no começo, e mesmo agora ainda gosto dele em alguma medida, mas sabe por quê? John McCain falava uma língua que para mim era revolucionária de modo apenas superficial. Ele dizia “temos inimigos, como a burocracia, devemos combatê-los e tudo vai dar certo”. Obama, por sua vez, dizia: “nós temos problemas sérios e o que precisamos é de trabalho paciente”. Essa reabilitação do trabalho cinzento diário, talvez a esquerda precise de um pouco disso, não?





O comunismo vai vencer, como o senhor disse ao jornal inglês “The Guardian”?



ZIZEK: Ah, isso é uma provocação. Quis dizer: o comunismo vai vencer ou então estaremos todos na merda. Você tem que dizer algo assim de vez em quando para fazer as pessoas pensarem. Ainda sou um comunista, mas não um continuísta. O século XX acabou. O resultado geral do comunismo foi um fiasco. A social-democracia foi boa enquanto funcionou, mas está hoje em crise. E a lição do sucesso econômico da China e de Cingapura é que o casamento aparentemente eterno entre capitalismo e democracia está se desfazendo. Temos aqui uma forma de capitalismo ainda mais dinâmica do que o capitalismo ocidental, e que funciona perfeitamente em condições autoritárias. Isso deveria nos preocupar. A razão por que me considero ainda um comunista é que vejo uma série de problemas para os quais não há solução possível dentro do modelo do capitalismo liberal global. Entre eles, a questão ambiental, a biogenética, a propriedade intelectual. Para enfrentá-los vamos precisar de um esforço coordenado de larga escala, algo de que nem o mercado nem o Estado tradicional são capazes. Quando as pessoas me dizem “você é um utópico”, eu digo: “a única utopia de fato é acreditar que as coisas podem seguir indefinidamente seu curso atual”. É claro por exemplo que se a China continuar se desenvolvendo na escala atual haverá uma demanda materialmente impossível de se atender. Para mim, comunismo é o nome de um problema. Todos esses problemas são problemas de algo comum (“problems of commons”), de algo que deveria ser compartilhado por todos nós. É uma alegação muito modesta

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Companhia das Letras lançará romances de Foster Wallace


 Companhia das Letras lançará romances de Foster Wallace


 por Guilherme Freitas
, os romances "Infinite Jest" e "The Pale King", de David Foster Wallace, serão publicados no Brasil pela Companhia das Letras, anunciou nesta sexta-feira no Twitter o editor André Conti.

Em 1996, Wallace publicou "Infinte jest", um romance de mais de mil páginas no qual buscava colocar em prática as teorias que vinha desenvolvendo desde o início da década sobre a fusão entre técnicas narrativas pós-modernas e o humanismo dos autores realistas do século XIX (argumento desenvolvido longamente no ensaio "E unibus pluram", de 1993, que será lançado em português como parte de uma coletânea de não ficção de Wallace a ser publicada pela Companhia das Letras no ano que vem). Um amplo painel sobre a presença invasiva do entretenimento na cultura americana contemporânea, e o tipo particular de solidão que isso engendra, "Infinte jest" se tornou um best-seller inesperado, especialmente por se tratar de uma narrativa tão intricada (quando perguntado sobre isso, Wallace dizia, não totalmente de brincadeira, que determinara a disposição dos capítulos segundo o modelo geométrico do Triângulo de Sierpinski).


REPRODUZO ABAIXO UM TRECHO DO FAMOSO ENSAIO.

E Unibus Pluram: Televisão e Ficção nos Estados Unidos.
Por RUY VASCOCELOS

Aja Natural
Escritores de ficção, como espécie, tendem a comer com os olhos. Tendem a esconder-se e encarar. No momento em que escritores de ficção cessam de mover-se, começam a esconder-se e encarar. São observadores natos. São espectadores. São aqueles no metrô cuja desinteressada fixidez guarda, de algum modo, algo repugnante. Quase predatório. Isto se dá porque as situações humanas são o repasto dos escritores. Ficcionistas observam outros seres humanos do modo como basbaques diminuem o passo ante batidas de carro: eles cobiçam uma visão de si próprios como testemunhos.

Porém ficcionistas como espécie tendem a ser terrivelmente auto-conscientes. Mesmo para padrões norte-americanos. Dedicando jardas de tempo produtivo ao estudo meticuloso de como as pessoas deles se aproximam, ficcionistas também gastam um horror de tempo produtivo a especular achacosamente como eles se aproximam das outras pessoas. Como aparecem, como parecem, como a borda de suas jaquetas deve flutuar à solta, ou se há marcas de batom em seus dentes, ou se as pessoas que eles estão observando podem eventualmente surpreendê-los como repugnantes espiões e bisbilhoteiros.

O resultado é que a maioria dos escritores de ficção, observadores natos, tendem a não apreciar serem objetos da atenção alheia. Serem observados. As exceções à regra –Mailer, McInerney, Janowitz – criam a especiosa impressão que muitos tipos de beletristas gostam da atenção das pessoas. Não é assim com a maioria. Os poucos que gostam de atenção a obtêm naturalmente em maiores doses. O resto de nós, menos, e comemos com os olhos.

Muitos dos ficcionistas que conheço são americanos com menos de quarenta. Não sei se ficcionistas com menos de quarenta assistem mais televisão do que outras espécies americanas. Os estatísticos reportam que se assiste cerca de seis horas de televisão em um lar americano médio. Eu não conheço um único ficcionista que viva em um lar americano médio. Suspeito que Louise Erdrich talvez viva. Falar a verdade, eu nunca vi um lar americano médio. Exceto na TV.

Assim meio de cara se pode divisar um par de coisas que assomam potencialmente relevantes, quanto aos ficcionistas americanos e sua relação com a televisão nos Estados Unidos. Primeiro, a TV opera um bocado de pesquisa predatória por nós. Como seres humanos, americanos conformam um bando evasivo e proteico, na vida real, dificilmente passíveis de serem tratados univocamente por um território literário que moveu-se de um naturalismo darwinista a uma cibernetismo pós-posmoderno em oitenta anos. Mas a televisão sobrevêm equipada com esse trato sintético. Se desejarmos saber o que é a normalidade americana – o que os americanos aspiram encarar como normal – podemos confiar na televisão. Pois toda raison da televisão é refratar o que as pessoas querem ver. É um espelho. Não um espelho à Stendhal refletindo o azul do céu e a poça enlameada. Está mais para o espelho do armário de banheiro diante do qual o adolescente monitora seu bíceps e determina seu melhor perfil. Essa espécie de janela sobre a tensa auto-percepção norte-americana é de fato inestimável, friccionável em sabedoria. E escritores podem ter fé na televisão. Há um bocado de dinheiro em jogo, afinal; e a televisão contém a melhor amostra que demógrafos dedicados às ciências sociais aplicadas têm a oferecer, e esses pesquisadores podem assim determinar precisamente o que os americanos nos anos 90 são, querem, veem: o modo que nós como audiência desejamos nos entrever. A televisão, da superfície ao fundo, diz respeito a desejo. Falando ficcionalmente, desejo é o açúcar da dieta humana.

A segunda coisa notável é que a televisão parece ser uma absoluta dádiva divina para uma subespécie humana que adora observar as pessoas mas detesta ser observada. Pois a tela da TV propicia um acesso em mão única. Uma válvula física de teste para bolas. NÓS podemos vê-LOS; ELES não podem NOS ver. Podemos relaxar, desapercebidos, enquanto comemos com os olhos. Creio que é por isso que a televisão tem também tanto apelo para solitários. Para enclausuramentos voluntários. Cada ser humano solitário que conheço assiste bem mais que a seis horas médias diárias dos outros americanos. O solitário, como o ficcionista, adora a observação de mão única. Pois as pessoas solitárias são em geral solitárias não por conta de horrendas deformações ou odores ou algo que as torna repulsivas – de fato hoje existem grupos de suporte social para pessoas com essas precisas características. Solitários tendem a ser solitários porque se recusam a enfrentar o custo emocional associado a se estar cercado de outros seres humanos. Eles são alérgicos a pessoas. As pessoas os afetam de modo forte em excesso. Chamemos o americano solitário médio de Joe Briefcase [Nota do tr.: algo como Zé Pasta (de documentos, dessas usadas por executivos. Mas a expressão também pode ser traduzida como "breve caso": Zé Brevecaso.)]. Joe Briefcase tão-só detesta o fluxo de auto-consciência que tão estranhamente surge somente quando outros seres humanos reais estão à volta, fixando, suas antenas-humanas eriçadas. Joe B. teme o modo como ele pode aparecer para observadores. Ele se põe ao largo do estressante jogo americano do pôquer da aparência.

Mas solitários, em casa, sozinhos, ainda anseiam por visões e cenas. Daí a televisão. Joe pode encará-LOS, na tela; ELES permanecem cegos para Joe. É quase como voyeurismo. Conheço pessoas solitárias que enxergam a televisão como uma verdadeira deus ex machina para voyeurs. E boa parte da crítica, da virulenta crítica, menos ponderada e mais salpicada sobre as redes, anúncios comerciais, e os espectadores indistintamente, tem a ver com a acusação de que a televisão nos tornou uma nação de complacentes voyeurs de queixo caído. A acusação constitui uma inverdade, mas por estranhas razões.

O clássico voyeurismo é espiacional: observar pessoas que não sabem que você está lá no que prosseguem com as prosaicas mas eroticamente densas tarefas da vida privada. É interessante a medida de o quanto o clássico voyeurismo envolve instrumentos de janelas emolduradas por vidros, telescópios, etc. Talvez essa moldura vítrea é o que faz a analogia com a TV tão tentadora. Mas a assistência da TV é um animal diferente do peeping tourism. Porque as pessoas que assistimos pelo vidro emoldurado da TV não são realmente ignorantes do fato de que há alguém as assistindo. Em verdade, uma vasta porção de alguéns. Em verdade, as pessoas na televisão sabem que é em virtude dessa enorme massa de alguens comedores com os olhos a própria razão de elas estarem na tela, ocupadas com gestos largos, de nenhum modo prosaicos. A televisão não propicia o verdadeiro espiacionalismo, porque a televisão é performance, espetáculo, o que por definição requer observadores. Não somos voyeurs, aqui, portanto. Somos meros espectadores. Somos a Audiência, megametricamente numerosa, embora com frequência a assistamos sozinhos. E Unibus Pluram.

Uma das razões pelas quais escritores de ficção parecem repelentes no plano pessoal é o fato de serem realmente voyeurs por vocação. Eles precisam desse direto furto visual de observar alguém sem ter de contrapor uma individualidade especialmente assistível. A única real ilusão no espionalismo é sofrida pelo voyeurizado, que desconhece que está fornecendo imagens e impressões. Um problema para muitos de nós, escritores de ficção com menos de 40, lançando mão da televisão como substituto do verdadeiro espionalismo, no entanto, é o de que o voyeurismo da TV envolve toda uma opulenta orgia de ilusões para o pseudo-espião, quando o assistimos. Ilusões é tudo que voyeurizamos aqui: os voyeurizados do lado de lá da tela estão apenas sugerindo uma ignorância de serem vistos. Eles sabem perfeitamente que estamos do lado de cá. E a instância de nos encontrarmos aqui está por igual bem enfronhado nas mentes dos que se postam por detrás da segunda camada de vidros, as lentes e os monitores por intermeio dos quais técnicos e diretores empregam-se sem nenhuma ingenuidade em lançar a imagem até nós. O que nós vemos está longe de ser roubado. É ofertada – ilusão. E ilusão que assistimos pela moldura envidraçada; não se trata de pessoas em situações reais que agem ou mesmo movem-se sem a consciência da audiência. O que jovens escritores estão vasculhando, os dados de certas realidades a ficcionalizar, já se encontram compostos por personagens em narrativas altamente ritualizadas. E mais, nós não estamos sequer vendo personagens

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A aparição auto-consciente da ausência de auto-consciência é a grande ilusão por detrás da sala de espelhos de ilusões da TV; e para nós, a audiência, é simultaneamente remédio e veneno. […] Pois reparamos nessas pessoas raras, altamente treinadas, aparentemente não assistidas, seis horas por dia. E adoramos esse pessoal. Ao ponto de atribuí-los verdadeiras propriedades sobrenaturais e desejarmos emulá-los, nós como que os veneramos.

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