sexta-feira, 10 de junho de 2011

Museu da Inocencia

Escritor Orhan Pamuk fala de romance que inspirou museu







FABIO VICTOR

DE SÃO PAULO



Enquanto a ficção contemporânea brinca de realidade, Orhan Pamuk levou o jogo além. Em seu novo romance, "O Museu da Inocência", o Nobel turco prorrogou a invenção para a vida real.



O livro conta a paixão de Kemal por Füsun, tão intensa que leva o personagem a criar um museu com objetos ligados ao caso de amor.



Só que, enquanto escrevia o livro, Pamuk --que aparece algumas vezes na trama-- foi montando um museu de verdade com bugigangas que fazem parte da história.



Será aberto em breve em Istambul, e um ingresso impresso no livro dará acesso ao local.



Sobre o hábito humano de colecionar e sobre esses dois museus, o de verdade e o ficcional, ele falou à Folha, por telefone, de Istambul.



Pamuk, que esteve na Flip em 2005 e voltará ao Brasil em dezembro para participar do ciclo de conferências "Fronteiras do Pensamento", relembrou o país e comparou Rio e São Paulo a Istambul e Ancara.



Ed Oudenaarden - 26.ago.10/Efe



O escritor turco Orhan Pamuk, cujo livro terá ingresso para entrar no museu com objetos que estão na história



*

Folha - O que veio primeiro, o museu ou o romance?

Orhan Pamuk - Vieram juntos. O romance foi pensado na forma de um catálogo de museu, mas tem vida própria, você não precisa do museu para lê-lo. Neste sentido, parece com, e é para ser lido como, um romance clássico do século 19.

Você não precisa saber que há um museu nem que por anos eu reuni objetos. Mas eu comecei o romance com a ideia de fazer o museu.



O sr. começou a juntar objetos desde o início do livro?

Sim. Para mim, o desafio era criar e desenvolver a história ao mesmo tempo em que colecionava objetos que estavam na história. Ou seja, meus personagens estão vestindo um vestido, ou fumando um cachimbo ou um cigarro de marca antiga, ou olhando pela janela e vendo paisagens fotográficas. Eu tenha de ter as fotografias, os cigarros antigos, o vestido, o cachimbo.

Deixei claro para mim mesmo que primeiro eu teria de achar os objetos e então os colocaria no romance. Em seguida eu exibiria os objetos num museu.

Junto com isso veio a ideia de ambientar o romance numa casa que já existe, e de depois converter essa casa num museu.

E também sempre quis escrever um romance sobre o que ocorre quando nos apaixonamos, como a química e o espírito se comportam. Claro que o amor é algo universal e eterno, mas cada pessoa se comporta de um jeito. Por outro lado, a humanidade se comporta de modo mais ou menos parecido. Nesse sentido, meu personagem representa toda a humanidade, mas não representa toda a humanidade, porque é um homem turco de classe alta vivendo em Istambul nos anos 1970. Ele é restrito por sua história cultural.



O museu de verdade já existe, está funcionando?

Para lhe dar essa entrevista, eu tive de deixar as coisas de lá [no museu]. Hoje estou trabalhando com dez pessoas, estamos terminando. Mas meus fãs estão gozando, "Orhan, há um ano e meio você diz que está terminando o museu". Mas agora estamos mesmo. É um prédio que eu comprei há 12 anos, que foi convertido em museu. Todas as coisas mencionadas no romance estão lá. Mas, agora que você está perguntando tudo isso, deixe eu lhe dizer muito claramente que o romance veio primeiro. Para mim, a literatura está sempre na frente. O romance vale por si e eu não quero falar muito sobre o museu antes de falar o bastante sobre o livro.



Mas quando o museu deve abrir?

Acabamos de botar uma placa muito bonita na porta: "Infelizmente, o Museu da Inocência ainda está em construção. Lamentamos por não estarmos abertos ainda". Porque várias pessoas de todas as partes, que compraram o romance em diferentes traduções, estão vindo com o livro nas mãos e nos xingam. Meus amigos pintores e carpinteiros dizem: Mr. Pamuk não está. Eles ficam bravos. Avise aos leitores brasileiros que ainda não está aberto, mas que estará em breve.



O museu realmente vai existir? Porque eu penso se não poderia ser um truque...

Não, não é um truque. Não estou armando um jogo borgiano desses. Não faria isso. Será aberto. Venha a Istambul e verá o prédio.



É interessante que no livro está descrito inclusive que os guardas do museu deverão vestir ternos de veludo escuro e gravatas bordadas com o brinco de Füsun...

Sim, agora que estamos terminando estamos comprando essas roupas. Mas esse não é o foco. Você esqueceu do romance... Darei a você outra entrevista quando o museu abrir.



Ok, ótimo. Mas, uma vez que o romance fala sobre museus, qual é a função de um museu? Não falo do seu museu, mas de museus em geral.

Meu pobre Kemal pensa no desejo humano de colecionar e em como a civilização, particularmente a civilização ocidental, consegue reunir essas coleções, enquanto, no mundo não ocidental, raramente elas são colocadas em museus. Eles nem sequer chamam de coleção, chamam de coleta aleatória de objetos. Mas toda coleta aleatória de objetos tem por trás de si um espírito --por isso as pessoas colecionam objetos.

Meu livro mostra que há um desejo inato em nós de colecionar, que está profundamente relacionado com algum trauma, uma ferida espiritual, uma memória dolorosa. Não queremos saber por que colecionamos, mas continuamos colecionando. Nas civilizações em que as coleções não são vistas como algo importante e valioso, as pessoas têm vergonha de colecionar, escondem suas coleções, são chamadas de esquisitas, morrem sozinhas e assim por diante.

Mas, uma vez que coleções são valorizadas, há uma cultura de objetos colecionáveis --e não esqueça que essa cultura é muito mais visível graças à internet. Se não são valorizados, desaparecem.



A propósito, há um trecho do livro que diz: "(...) enquanto o Ocidente sente orgulho do que é, a maior parte do mundo vive tomada pela vergonha. Mas, quando os objetos que nos causam vergonha são expostos num museu, transformam-se imediatamente em pertence que podem nos orgulhar".

Até hoje, museus expõem símbolos de poder. O Louvre era um palácio, um lugar da monarquia, que virou um museu popular. Hoje não representa o poder dos reis franceses, mas do povo francês. Museus são lugares onde são exibidos o poder e o orgulho de uma comunidade, de uma nação. É tudo uma questão de exibir as coisas e sentir orgulho disso.

"O Museu da Inocência" é uma história de amor, na maior parte relata a paixão de Kemal, meu personagem, por uma prima na Istambul dos anos 1970. Mas ao mesmo tempo eu tento analisar, ver através do espírito dos colecionadores. Neste sentido, Kemal é, no começo do romance, um homem do mercado corporativo, uma pessoa normal. Mas, quando ele se apaixona e o romance o conduz a uma situação trágica, ele começa a colecionar objetos. Quando ele faz isso, pegando o brinco de Füsun, ele não se dá conta de que inicia uma coleção --está apenas respondendo a algo espiritual, a uma dor amorosa.

Então vem o segundo objeto, o terceiro, o quarto... quinhentos objetos. Algo que podemos chamar de uma coleção, se acreditamos em museus.

Então um colecionador real não começa com o desejo de fazer um museu, mas é alguém que está respondendo aos tormentos de um drama espiritual. Meu personagem, Kemal, é uma pessoa ferida, e "O Museu da Inocência", na superfície, é sobre uma paixão amorosa, como reagir a ela, uma espécie de catálogo sobre o que nos ocorre quando nos apaixonamos.



Claro que o livro vai além da história de amor, mas, até onde sei, é o seu primeiro romance baseado primordialmente numa história de amor. Por que falar de amor agora?

Sim. Em primeiro lugar, por que não agora? O amor é parte essencial da vida humana. Nos meus romances eu tratei do espírito cultural da Turquia: em "Neve", por meio da política; em "Meu Nome É Vermelho", por meio da arte; em "Istambul" e "O Livro Negro", por meio das camadas de Istambul. Queria há muito tempo escrever uma história de amor. Falando do amor, falo do tema mais universal da humanidade, mas também de um tema muito particular, num país islâmico onde um casal não se relacionava tão facilmente desse jeito fora do casamento, onde nos anos 70 sexo fora do casamento era quase impossível. Mas o amor é possível em qualquer lugar, é negociado por outros meios, silêncios, gestos etc



No fim do livro, o personagem Kemal pergunta ao escritor Pamuk se ele "alguma vez esteve apaixonado assim", e Pamuk desconversa dizendo que eles não estavam falando sobre ele. Agora, que estamos falando sobre o sr., pergunto: alguma vez o sr. esteve apaixonado assim?

Certamente há uma tendência em mim em dizer: "Claro, até mais que Kemal. Kemal sou eu e todas as coisas que estão no livro aconteceram comigo". Se disser o contrário, ouvirei boas risadas. Romances são exatamente isso. Escrever um romance é escrever um texto que o seu leitor pense ter sido vivido por você. Se você diz que não, o leitor dirá: "Não minta, é você. É tão franco, tão convincente, como você pode saber tudo isso?". E você diz: "É ficção". E ele: "Não, não".

Está na essência da arte do romance, fazer o leitor achar que o que aconteceu a Kemal ocorreu a Orhan também.

Bem, deixe o leitor pensar assim. Mesmo se eu disser que não, pensarão que estou mentindo. Sim, eu estou mentindo, eu gosto de mentir, porque sou um ficcionista.



Mas como era a sua vida na primavera de 1975 [período em que se passa o romance]?

Eu larguei os estudos enquanto escrevia meu "Istambul" e comecei a decidir que seria escritor. Eu tinha 23 anos. Meu autobiográfico "Istambul" termina exatamente, você apontou corretamente, no ano em que começa "O Museu da Inocência". Kemal se apaixona por Füsun. Orhan, que vemos no romance na festa de noivado no hotel Hilton, estava tentando ser um romancista, largando a faculdade de arquitetura com o sonho ambicioso de um dia publicar meus livros na Turquia.



Não vou perguntar se existiu uma prima Füsun na vida de Orhan Pamuk, ok?

Quem sabe... Fecharei minha boca sobre esse assunto [risos].



O sr. visitou o Brasil em 2005 para a Flip e voltará no fim deste ano para uma conferência [no ciclo "Fronteiras do Pensamento", em dezembro]. Que lembrança guarda do país?

Minha lembrança sobre o país é a das diferenças entre Rio e São Paulo, muito similares a Istambul e Ancara. Duas cidades grandes, mas muito diferentes e muito próximas uma da outra. E as praias no Rio e Paraty, meu Deus... a natureza, toda essa beleza eu guardo comigo.

E a renda média é muito parecida no Brasil e na Turquia. Acho que o Brasil é um pouco mais rico, mas percebi a mesma qualidade de vida, pessoas conversando nas ruas, vendedores ambulantes, muita gente, muita coisa acontecendo. Cafés, livrarias, ambulantes invadindo as ruas. Bem parecido com Istambul.

Mas tanto o Brasil quanto a Turquia estão mudando, ambos para melhor, eu acho.



O que mudou em sua vida após o Nobel?

Quando ganhei o Nobel, eles me ligaram da Suécia, eu estava em Nova York. Imediatamente eu disse: isso não vai mudar minha vida. Mas eu estava errado, mudou minha vida. Tornou-me uma pessoa muito ocupada, mas também me trouxe novos leitores e responsabilidades. Virei possivelmente uma pessoa mais responsável. Mas meu desejo de escrever, o modo como eu dedico todo o meu tempo à literatura, isso não mudou. Continuo trabalhando muito, até mais, porque há muitos leitores esperando por um novo livro.



O sr. está escrevendo um livro sobre vendedores ambulantes de Istambul, não? Como está o livro?

É sobre outra Istambul, uma Istambul pobre. Quando nasci, Istambul era uma cidade de um milhão [de habitantes], hoje tem 11 ou 12 milhões. A maior parte é de imigrantes de uma região pobre da Turquia, a Anatólia. Como essas pessoas chegaram? Como construíram as favelas? --que são melhores, acho, do que as que vi há 6 anos no Rio. Como elas vivem? Estou escrevendo a história de um vendedor de rua que começa a perder seu trabalho. Istambul do ponto de vista da classe trabalhadora.



O MUSEU DA INOCÊNCIA

AUTOR Orhan Pamuk

EDITORA Companhia das Letras

TRADUÇÃO Sergio Flaksman

QUANTO R$ 59 (568 págs.)

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