sábado, 19 de dezembro de 2009

Como fazer escândalo e ficar rico com a arte



Calvin Tomkins, biógrafo de Duchamp, dá lições no livro As Vidas dos Artistas


Antonio Gonçalves Filho

Originalmente publicados na revista The New Yorker ao longo da década passada, os dez perfis traçados pelo veterano crítico norte-americano Calvin Tomkins em As Vidas dos Artistas (Editora Bei, tradução de Denise Bottmann, 280 págs., R$ 57) foram reeditados pelo autor e constituem, sem exagero, uma súmula da arte contemporânea com todas as suas contradições. Tomkins, autor de uma biografia séria do inventor do ready-made, Duchamp (Cosac Naify, disponível apenas na edição especial, R$ 520), não é um crítico formalista. Considera, como considerava o pintor, arquiteto e crítico Giorgio Vasari (1511-1574) no século 16, que a biografia de um artista é essencial para a compreensão de sua obra. Por isso, não só surrupiou o título da clássica obra de Vasari sobre os artistas do Renascimento (Le vite de" più eccelenti pittori, scultori e architettori), como seguiu seu modelo. Ganham os leitores: seu livro é bastante esclarecedor.



É possível, por exemplo, associar o oportunismo de Damien Hirst e Jeff Koons às dificuldades que enfrentaram para se impor num mundo exclusivo como o da arte, sendo ambos de origem suburbana. E, também, entender como a fama e o dinheiro banalizaram a arte deliberadamente escandalosa dos dois, a ponto de serem incorporados sem grandes traumas à lógica funcional do mercado e produzirem obras cada vez menos chocantes. Aconteceu a Hirst e Koons o que se passou com o cineasta espanhol Pedro Almodóvar à medida que seus filmes conseguiram ser consumidos pela classe média: viraram anódinos, inofensivos, mas extremamente úteis para o comércio de arte.



Tomkins não entra em discussões morais. Seleciona dez artistas tão diferentes entre si que mal suportam a convivência num só livro. Gente espalhafatosa como o inglês Damien Hirst, de 44 anos, que expõe tubarões em vitrines, bebe como um gambá e exibe o aparelho reprodutor depois de duas doses, não é mesmo muito difícil de definir. Vale o mesmo para o norte-americano Jeff Koons, de 54 anos, que fez a fama em cima (literalmente) da ex-companheira e atriz pornô Cicciolina, ou seu conterrâneo Matthew Barney, de 43 anos, que se casou com a cantora Björk. Todos adoram circular pelo mundo do rock e andar acompanhados de outras celebridades.



Na outra ponta do salão, ocupada pelos discretos, destacam-se o pintor Jasper Johns e o escultor Richard Serra, ambos norte-americanos, respectivamente com 79 e 70 anos. Os outros cinco artistas selecionados por Tomkins pendem mais para o lado dos escandalosos ou narcisistas incuráveis: Cindy Sherman, Maurizio Cattelan, Julian Schnabel, James Turrell e John Currin, cujas telas são povoadas por gente nua ou seminua fazendo sexo. Sinal dos tempos: quando não são açougueiros como Hirst, são erotômanos como Currin. No fundo, excetuando-se Jasper Johns e Serra, dois mestres, tudo se resume a uma questão de carne, de superfície, nas obras dos contemporâneos selecionados pelo biógrafo, o que torna válido o empréstimo de uma máxima de D.H. Lawrence: vivemos numa era essencialmente trágica. Talvez a infantilização da arte - e os bonequinhos de Jeff Koons e os humanoides de Mathew Barney constituem provas dela - seja um contrapeso para suportar essa condição.



Tomkins não arrisca nenhuma teoria. Se esses artistas têm alguma coisa em comum, argumenta, "é algo que não fica evidente em suas obras". Bem, pelo menos os preços das obras dessas celebridades se equivalem. Há 10 mil artistas só em Nova York, loucos para chegar ao patamar de Damien Hirst, que começou colando lixo em madeira e hoje gruda 8.601 diamantes numa caveira e a vende por US$ 100 milhões (a um grupo privado de investidores). Mais exemplos? A escultura da pantera cor-de-rosa (1988) assinada por Jeff Koons foi vendida por US$ 8 milhões num leilão. Isso é arte? Tomkins, cauteloso, responde que esse é o tipo de armadilha que não prende seu pé. Evoca, em defesa, o que disse seu biografado Duchamp a respeito dos ready-made, aqueles objetos corriqueiros, fabricados industrialmente, dos quais Marcel se apropriou e assinou como seus. O ready-made, disse Duchamp, é "uma forma de negar a possibilidade de definir a arte". Ora, se tudo é arte, tudo é permitido, mas você trocaria uma natureza-morta de Cézanne por uma vaca de Damien Hirst ou um autorretrato de Cindy Sherman?



Tomkins tenta justificar a ausência de gosto de Sherman apelando para sua infância suburbana em Long Island, tendo como pai uma figura detestada pelos cinco filhos, um dos quais se matou aos 27 anos. Cindy, quando criança, tinha a mania - quando não estava vendo televisão - de usar as roupas da avó para se transformar em bruxa. Adulta, passou a fotografar gente deformada, naturezas-mortas com vômito e paródias dos grandes mestres da pintura. Fez fortuna com isso e a revista Artnews, num gesto extremo de insolência jornalística, a colocou junto a Jasper Johns e Bruce Nauman entre os dez principais artistas vivos.



O que o livro de Tomkins revela é como ela e Damien Hirst conseguiram criar, com a ajuda de uma rede de colecionadores, galeristas, curadores e críticos, uma maneira de legitimar uma arte que seria nada se o dinheiro de poderosos colecionadores não estivesse em jogo. Damien Hirst, por exemplo, é amigo de Jay Joplin, filho de ministro do governo Thatcher, que lhe garantiu dinheiro para sua primeira extravagância, um grande armário de vidro com 38 compartimentos, cada um com uma espécie diferente de peixe. Depois, fez uma cabeça de vaca podre, rodeada de moscas, "escultura" comprada pelo colecionador Charles Saatchi, esperto o suficiente para pagar 60 mil libras por um tubarão em formol (depois vendido por milhões).



Saatchi é tão poderoso que destruiu o mercado do transvanguardista Sandro Chia, vendendo suas obras a preços de liquidação. Também brigou com Hirst, mas não conseguiu destruir sua carreira. Outros colecionadores igualmente poderosos investiram em seus bichos e não estavam dispostos a perder dinheiro por causa da briga. Só o crítico David Sylvester, convidado a escrever uma monografia sobre ele, teve uma atitude decente ao dizer que Hirst não tinha autocrítica, era medíocre, banal e comodista.



Esperto mesmo foi Julian Schnabel, o Midas da pintura nos anos 1980. Veio o declínio e Schnabel, antes de migrar para o cinema, passou a fazer retratos de bilionários como o armador Stavros Niarchos. Seus filmes são melhores que suas telas (O Escafandro e a Borboleta ganhou prêmio de direção em Cannes há dois anos). O mesmo não se pode dizer de Matthew Barney. Seus hipersexuados cinco filmes do ciclo Cremaster (de 1994 a 2003) foram saudados há seis anos como uma experiência inaudita. Hoje, a crítica torce o nariz para Barney, cujo consolo é ter Björk cantando em seu banheiro. Poderia ser pior. Poderia ser Madonna.