sábado, 21 de julho de 2012

Antologia de autores populares se apoia em falso dilema entre narrativa e experimentação

'Geração subzero' mostra impasses da ficção de entretenimento

Antologia de autores populares se apoia em falso dilema entre narrativa e experimentação


*Por João Cezar de Castro Rocha

"Geração subzero: 20 autores congelados pela crítica, mas adorados pelos leitores", organizado por Felipe Pena. Editora Record, 322 pgs. R$ 39,90


A antologia organizada por Felipe Pena, “Geração subzero”, possui um subtítulo muito bem escolhido. Trata-se do primeiro manifesto da literatura brasileira escrito na era do twitter: “20 autores congelados pela crítica, mas adorados pelos leitores”.

Na introdução, o organizador desenvolve o tema: “A literatura brasileira contemporânea tem poucos autores dispostos a contar uma boa história, sem a preocupação de produzir experimentalismos e jogos de linguagem”.

Seria útil nomear esses hipotéticos escritores, ou o espírito polêmico se dilui na generalização estéril. Considero equivocada a avaliação de Pena, pois a novidade mais relevante da literatura brasileira refere-se precisamente à superação do falso dilema entre experimentação e narrativa.

Porém, esse anacrônico hiato é a base de sua crítica, estimulando a publicação programática de escritores comprometidos com a defesa da “literatura que considera o entretenimento um valor estético”. Como se esclarece, entreter é a arte da “sedução pela palavra”.

O poeta, crítico e tradutor José Paulo Paes já havia refletido acerca da necessidade de conquistar o público leitor, em ensaios como “Por uma literatura brasileira de entretenimento” (1990). De igual modo, a crítica Marlyse Meyer realizou estudos pioneiros acerca de uma “ficção popular” no século XIX, assinalando seu diálogo com autores como Machado de Assis. Porém, eles nunca pensaram em termos binários.

Afinal de contas, existe uma única forma de “entretenimento”? E ela se confunde necessariamente com os pressupostos defendidos por Pena?

Daí, a introdução da antologia não pode evitar um involuntário paradoxo, pois Pena valoriza demais a crítica universitária, atribuindo-lhe a capacidade de destruir carreiras! Trata-se de ato falho: hoje em dia, crítico algum possui influência suficiente para determinar o êxito ou fracasso de um autor. O subtítulo da antologia, portanto, alude a um poder que há décadas deixou de existir.

Não é tudo: se, de fato, os postulados do “Manifesto do Grupo Silvestre” — lançado em 2010 por vários autores, entre eles Felipe Pena, “em defesa da narrativa, do entretenimento e da popularização da literatura” — são corretos, então, a “Geração subzero” deveria ter sido publicada sem reflexão alguma! Bastaria uma nota sucinta, pois assim o leitor entraria em contato imediato “simplesmente [com] o prazer da leitura”.

Como definir o prazer da leitura? No juízo de Paul Valéry, por exemplo, ele se encontra na própria dificuldade. Já no critério de Pena, ele reside na fluência da narrativa. Leia-se o oitavo mandamento do “Manifesto do Grupo Silvestre”: “Gostamos de enredos ágeis e cativantes”.

“Geração subzero” possui o mérito de ampliar o horizonte da discussão, por meio da incorporação de autores que se dedicam prioritariamente a gêneros considerados “menores”: terror, thriller, ficção científica, histórias de vampiros etc. Muitos dos selecionados apresentam números eloquentes: Thalita Rebouças ultrapassou a marca de um milhão de exemplares vendidos; André Vianco já vendeu 700 mil livros. Tais números são expressivos e exigem uma reflexão séria. Contudo, dados brutos nem sempre valem o quanto pesam.

Ora, com poucas exceções — e aqui incluiria Thalita Rebouças e Luiz Bras (pseudônimo usado pelo escritor Nelson de Oliveira, organizador das antologias “Geração 90” e “Geração 00”, em alguns livros) — os textos precisariam de um trabalho rigoroso de edição. Há de tudo um pouco nas vinhas desta antologia: lugares-comuns em série; finais previsíveis; escolhas vocabulares difíceis de justificar; estruturas sintáticas que soam como inglês mal traduzido.

Em “O preço de uma escolha”, Ana Cristina Rodrigues imagina uma narrativa à la Blade Runner. Talvez o hábito de leituras em língua inglesa favoreça a dicção de suas frases: “Muito para seu desgosto e constrangimento, Rita também era registrada: neo-humano telepata nível beta e telecinética alfa mais”. A sintaxe e mesmo a pontuação parecem uma tradução literal do inglês. O efeito poderia ser até interessante, mas exigiria consciência artística.

Em “A filha do diabo”, Luis Eduardo Matta cria uma trama de possessão diabólica, reproduzindo ponto por ponto o roteiro de um thriller, cujo final anuncia a sequência do filme: “Da porta do quarto, João assistiu, impassível, ao pai ser dilacerado e morto pela turba furiosa. Não havia mais nenhum ferimento ou mancha em seu corpo. Apenas um olhar gélido e uma insinuação de sorriso”. João, claro, é o próprio demônio.

Sérgio Pereira Couto, em “Dê-me abrigo”, reescreve a trama do clássico de Richard Condon, “The Manchurian Candidate”, ambientando o conto no contexto do terrorismo internacional. A música dos Rolling Stones, “Gimme Shelter”, é transformada em instrumento pavloviano. Afinal, “as músicas despertavam sentimentos guardados em algum recanto esquecido de sua psique”. Lugares-comuns desse nível dominam a escrita de quase todos os textos.


Autores podem aprimorar capacidade de expressão

Aliás, a reescrita é o procedimento-chave da antologia. Carolina Munhóz, em “Outra vez na escuridão”, produz uma fusão do misticismo de Paulo Coelho com a magia de Harry Potter para refletir sobre a carreira e a morte de Amy Winehouse, como as últimas frases sugerem: “Mas ela teimava em dizer não. E não. E não”. Afinal, “muitos humanos talentosos jogavam fora os dons comedidos pelos deuses”. Não seriam dons “concedidos”?

O problema é recorrente em outros textos. No conto de Vera Carvalho Assumpção, o leitor é informado: “Na alba do amanhecer, a cidade toda andou até o rio para ver a cruz”. O pleonasmo involuntário parece traduzir uma sequência cinematográfica.

Paro por aqui, pois não desejo inviabilizar o diálogo. Um crítico honesto deve parabenizar tanto o organizador pela iniciativa inovadora quanto os autores pela comunicação estabelecida com os leitores. Contudo, ele também não pode deixar de se surpreender com a ingenuidade linguística e narrativa da maioria dos selecionados.

Muitos já conquistaram um público numeroso e estão de parabéns. O próximo passo, porém, exige que se dediquem a aprimorar sua capacidade de expressão. Todos terão muito a ganhar: a literatura e o público leitor. No fundo, é só o que importa, pois entretenimento não é sinônimo de descaso.


*João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura da Uerj e autor de “Crítica literária: Em busca do tempo perdido” e “Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo”

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