quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Dois livros narram episódios biográficos de alguns dos principais nomes da arte contemporânea no Brasil e no exterior



Com a voz dos artistas, livro retrata a arte contemporânea


SILAS MARTÍ

Foi pelo outro lado da câmera que Matthew Barney virou artista. Pagou o curso em Yale com o dinheiro que ganhou como modelo, posando para a Ralph Lauren. Cindy Sherman transformou um "divórcio doloroso" em bonecas mutiladas.

No Brasil, Cildo Meireles lembra a alucinação que teve aos seis anos de idade, paralisado numa cama. Cao Guimarães descobriu o "desejo pelo proibido" quando viu o arquivo de fotos do avô médico, com xifópagos e vítimas de barriga d'água. A prisão do marido, na ditadura, também foi motor para a obra de Anna Bella Geiger.

Dois livros lançados agora exploram a biografia dos maiores nomes da arte contemporânea no Brasil e no exterior. Buscam nos relatos desses artistas o lastro para a produção que inundou o mercado e arrebatou a crítica ao mesmo tempo.

Em "As Vidas dos Artistas", Calvin Tomkins, crítico de arte da "New Yorker", perfila dez artistas que viraram grifes, entre eles Matthew Barney, Damien Hirst, Jeff Koons, Richard Serra. Nos trópicos, Felipe Scovino lança "Arquivo Contemporâneo", coleção de 13 entrevistas com gigantes da arte brasileira -Cildo Meireles, Tunga, Adriana Varejão.

Fazem uma análise sintética da última geração de criadores alçados à condição de celebridade. Dão a palavra aos próprios artistas, que esquadrinham desde o sucesso em leilões e galerias à presença nas maiores exposições do planeta e estripulias no plano pessoal.

Tomkins, 84, partiu com a missão de separar o joio do trigo. De milhares de artistas que conheceu, escolheu os que julgou pertinentes. "Um resultado da liberdade ilimitada na arte é a superprodução de coisas medíocres", constata o autor, em entrevista à Folha. "Essa situação tem atraído muitos não artistas, que acham que fazer arte é coisa fácil."

Ele tenta provar o contrário narrando a odisseia de Damien Hirst atrás dos tubarões e vacas que mergulhou em formol.

Lembra a viagem ao deserto do Arizona para ver a cratera de luz de James Turrell, os excessos de maquiagem, roupas e perucas de Cindy Sherman.

No meio do caminho, sobra tempo para falar dos amigos roqueiros de Hirst, como o baixista do Blur, Alex James, do romance de Cindy Sherman com o ator Steve Martin, do egocentrismo embaraçoso de Julian Schnabel, da briga de Richard Serra com Frank Gehry.

São ecos da era que começou com Andy Warhol e o culto à personalidade que passou a valer também nas artes visuais. É um contraste gritante com a situação brasileira. Enquanto os Estados Unidos viveram o boom econômico do pós-guerra, artistas nacionais extraíram forças da repressão militar.

A máxima de Hélio Oiticica -"da adversidade vivemos"- se ajusta quase com perfeição aos relatos dessa geração. Cildo Meireles esmiúça o contexto em que circulou suas garrafas de Coca-Cola com mensagens subversivas. Cao Guimarães lembra como fazia todos os filmes na cozinha de seu apartamento em Londres.

Oiticica e Lygia Clark, pioneiros da arte invendável, surgem como grandes referências dessa geração, mas não evitaram que, mesmo no Brasil, tudo se rendesse ao mercado. Artista que desponta lá fora, Adriana Varejão conta que a única lembrança que tem da primeira vez que viu a obra de Clark é o autógrafo que ganhou da artista. Meireles reduz tudo a um "universo do fetiche".

Na obra de Cindy Sherman, Tomkins vê o que se aplica à situação atual -o desejo de se agarrar "às coisas, à juventude, ao glamour, à esperança".



Em tom literário, Calvin Tomkins investiga de perto a vida e o processo criativo de dez estrelas da produção artística atual




FABIO CYPRIANO

DA REPORTAGEM LOCAL



Poucos são os livros que conseguem abordar a produção atual sem cair em estereótipos ou mesmo forçar a barra ao encaixar certos artistas como meros oportunistas que se aproveitam da recente explosão do mercado de arte contemporânea.

"As Vidas dos Artistas", de Calvin Tomkins, faz parte do seleto grupo que traz uma abrangente visão dos procedimentos de produção contemporânea ao dar a voz, em primeiro plano, aos próprios artistas. Nos últimos dez anos, Tomkins, autor da ótima biografia de Marcel Duchamp, "Duchamp" (Cosac Naify, 2005), publicou perfis de protagonistas da arte contemporânea, como Jeff Koons, Damien Hirst e Matthew Barney para a revista "The New Yorker".

O livro, uma reunião de dez desses perfis, revela-se um típico exercício de jornalismo literário, com textos extensos, que mostram intimidade entre o autor e os artistas: Tomkins vai ao cinema com Cindy Sherman, visita a casa de veraneio de Jasper Johns em St. Martin, no Caribe, anda de táxi com Hirst, caminha pela cratera de James Turrel, no norte do Arizona (EUA).

Em cada situação, o autor revela detalhes que ilustram o procedimento criativo de cada um, acrescentando ainda depoimentos de outros artistas, galeristas, críticos e amigos. Os demais escolhidos são Julian Schnabel, Richard Serra, Maurizio Cattelan e John Currin.



Estrelas contemporâneas

O próprio autor afirma, na introdução do livro, que a seleção não apresenta "nenhum denominador comum, entre eles", mas, na verdade, todos são estrelas de primeira grandeza no cenário atual, afinal Sherman é uma das principais renovadoras da fotografia, Serra, da escultura e Johns, da pintura. No entanto, tal divisão por suporte, como se sabe em arte contemporânea, é inútil, e aí está um dos méritos de Calvin Tomkins, que, em vez de investigar o meio usado pelo artista, interessa-se pela sua própria forma de vida.

Contudo isso não é realizado em um desenrolar de fofocas, como o universo das celebridades tanto preza, mas de forma discreta e contextualizada, onde o autor aborda desde a formação de cada artista até suas relações com museus e galerias.



Momentos-chave

Há muitas passagens intrigantes. Uma das melhores é quando Kim Levin, crítica do "Village Voice", arrasou, em um texto, as pinturas de mulheres um tanto deformadas de Currin, por considerá-las machistas, quando de sua primeira individual na galeria Andrea Rosen, em 1992. Dez anos depois, em 2003, ela assume e diz "Eu estava errada", o que atesta como o escrever da história pode ser alterado quando o artista segue sua carreira.

Claro, há histórias mais extravagantes, como os surtos hedonistas de Hirst, que costumava baixar a calça e mostrar a genitália nas festas, mas tais situações são apenas detalhes de uma inteligente e intrigante narrativa da produção atual, principalmente daquela produzida nos Estados Unidos, para onde os textos foram criados. Quem ler "As Vidas dos Artistas", se usar as lentes corretas, vai compreender muito melhor o que é a arte contemporânea.









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AS VIDAS DOS ARTISTAS



Autor: Calvin Tomkins

Editora: Bei

Quanto: R$ 57 (280 págs.)



ARQUIVO CONTEMPORÂNEO



Autor: Felipe Scovino

Editora: 7Letras

Quanto: R$ 48 (310 págs.)

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