quarta-feira, 30 de setembro de 2009

papa nem é pop, mas quer a arte



O papa nem é pop, mas quer a arte No dia 21 de novembro, Bento XVI tem encontro marcado com 500 artistas do mundo inteiro, de olho no 'processo criativo'
Sérgio Augusto
Será num sábado, no Dia de São Gelásio. E no mais valioso espaço artístico da Igreja, a Capela Sistina. Sob o afresco de Leonardo Da Vinci, Bento XVI terá um encontro com cerca de 500 artistas do mundo inteiro. O Vaticano não esconde o jogo: a Igreja quer melhorar suas relações com o mundo da arte contemporânea, aparar arestas, eliminar tensões e, na medida do possível, "participar mais ativamente do processo criativo" - razão pela qual marcará presença na Bienal de Veneza de 2011.
Por razões protocolares, a lista completa dos convidados de Bento XVI ainda não foi divulgada. O diretor de teatro de vanguarda americano Bob Wilson, o compositor de cinema Ennio Morricone e o cineasta Giuseppe Tornatore já aceitaram o convite. Seria imprudente apostar na presença dos escritores Dan Brown (O Código Da Vinci) e Philip Pullman (A Bússola de Ouro), e, mais ainda, na do escultor milanês Paolo Schmidlin, aquele que há dois anos esculpiu Bento XVI como um transexual chamado "Miss Kitty". O papa abriu-se ao diálogo, não fez restrições religiosas e ideológicas (notórios ateus integrariam a lista), mas para tudo há um limite. O artista plástico alemão Martin Kippenberger, por exemplo, dificilmente seria convidado.
Foi Kippenberger, morto em 1997, quem pregou aquele blasfemo sapo na cruz, que tanto horror causou a Bento XVI quando exposto num museu de Bolzano, no ano passado. Sabina Guzzanti? Tem mais chances, mas é de se supor que se recusaria a confraternizar com o sumo pontífice. A popular comediante italiana tornou-se a maior inimiga pública do atual pontificado. Um ano atrás, durante uma manifestação em Roma contra o conservadorismo da Igreja, mandou o papa para o inferno. Desde Dante nenhuma figura pública italiana condenava um papa ao caldeirão do diabo. Mas o Bonifácio 8 º de Dante ao menos não era atormentado por capetas homossexuais, como na praga que Guzzanti rogou para Bento XVI.
Oficialmente, a data do encontro (21 de novembro) foi agendada meio ao acaso. Não deve, portanto, ser vista como uma homenagem sibilina aos 155 anos do papa Bento 15. A Voltaire, outro aniversariante do dia, muito menos, embora, à luz dos últimos acontecimentos e do atual projeto de distenção artística do Vaticano, talvez fizesse sentido homenageá-lo. Se até Oscar Wilde já foi admitido no rebanho da Igreja, por que não Voltaire?
Porque Voltaire morreu sem aceitar o Vaticano, ao contrário de Wilde, "o homossexual dissoluto" na pleonástica definição de um bispo, que no leito de morte se converteu ao catolicismo. Ninguém podia imaginar que um dia o Vaticano fosse incorporá-lo ao seu rebanho. Logo ele, que além de dissoluto passou boa parte da vida maldizendo o papa e a Igreja católica. De origem protestante, abominava todas as crenças (a verdade religiosa, dizia, nada mais é que a opinião que sobreviveu), e se afinal encantou-se pelo catolicismo foi por considerá-lo uma religião exclusiva para "santos e pecadores". Para as "pessoas respeitáveis", acrescentou, "a Igreja Anglicana serve".
Satisfeito entre os pecadores, nunca, na vida plena, Wilde se esforçou para rever sua posição sobre o Vaticano. Dez anos antes de morrer ainda considerava o papa "um déspota que tiraniza as almas", uma criatura a serviço do mal. "É preferível para o artista não viver com os papas", aconselhou quase ao final do ensaio A Alma do Homem Sob o Socialismo. Claro que nenhuma dessas afirmações entrou na antologia de tiradas do escritor, organizada em 2007 pelo padre Leonardo Sapienza, chefe do protocolo do Vaticano, mas ela marcou o início da reabilitação de Wilde pela Igreja.
Recentemente o jornal oficioso do Vaticano, L"Osservatore Romano, publicou um artigo de Paolo Giuliano pondo Wilde nas alturas. "Ele foi muito mais que "um esteta e um amante do efêmero", muito mais que um inconformista que adorava chocar a sociedade conservadora da Inglaterra vitoriana", escreveu Giuliano. Wilde, prosseguiu, "foi uma das personalidades do século 19 que analisaram com mais lucidez o mundo moderno em todos os seus aspectos, dos mais perturbadores aos mais positivos", sempre a se perguntar "sobre o que era justo e o que era errado, o que era verdadeiro e o que era falso".
Abril ou maio teriam sido meses mais adequados para o encontro de Bento XVI com os artistas, já que o evento é um tributo ao décimo aniversário da Carta aos Artistas, divulgada por João Paulo 2º em 4 de abril de 1999, e aos 45 anos de uma histórica confabulação de Paulo 6º com um grupo de artistas, também na Capela Sistina, em 7 de maio de 1964. Em sua epístola aos artistas, João Paulo 2º alertava para o bem que a arte faz à Igreja, necessidade de que nunca descurou Paulo 6º, ligado na arte contemporânea e mentor da ala moderna do Museu do Vaticano.
Ele próprio artista, do piano, Bento XVI é um tradicionalista assumido, inclusive, dizem, no gosto musical. Ele abriu espaço para a missa em latim, estimulou a presença, nos templos, do canto gregoriano e da música renascentista, e reforçou todos os dogmas do catolicismo. Seu estilo de vestir (mitras, mozetas púrpuras, casulas muito bordadas) é puro vintage, remonta aos séculos 15 e 16. Tais escolhas trazem o seguinte recado: a Igreja não muda, nem nas vestimentas. Sua próxima "volta ao passado" não se destina, felizmente, à Idade Média, mas à Renascença.
Conforme salientou monsenhor Guido Marini, mestre das celebrações litúrgicas pontificiais, "o santo padre apenas deseja que os católicos vejam o amplo espectro de sua tradição cultural". Amplidão que nem o mais ímpio dos ateus é capaz de negar ou, mesmo, subestimar.
Faz pouco tempo o filósofo alemão Jürgen Habermas, de cujo ateísmo ninguém duvida, reconheceu publicamente o cristianismo como "a referência da civilização ocidental, o supremo guardião da liberdade, da consciência, dos direitos humanos e da democracia", passando por cima de seus pecados remotos e recentes. Camille Paglia, pagã juramentada, feroz inimiga do "moralismo e da pudicícia das crenças organizadas", também já se manifestou em favor da recuperação da religião como fonte de inspiração artística. Há dois anos, num ensaio sobre o empobrecimento cultural da América, recomendou aos artistas maior atenção ao "complexo sistema simbólico" das religiões e menor apego ao materialismo narcisístico da sociedade secularizada, herança maldita da iconoclastia puritana.
Eis aí dois intelectuais que mereciam ter sido convidados para o encontro de 21 de novembro. Se é que não foram.

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