segunda-feira, 17 de maio de 2010

As lendas de Roberto Bolaño











(Leia na edição impressa do Prosa & Verso uma resenha de "2666" por Celina Manzoni, professora de literatura latino-americana da Universidade de Buenos Aires e organizadora do volume de ensaios "Roberto Bolaño. La escritura como tauromaquia")



Numa longa entrevista que deu à "Playboy" mexicana em 2003, já muito debilitado pela doença hepática que o mataria naquele mesmo ano, Roberto Bolaño fez piada com os críticos que o anunciavam como o escritor latino-americano com mais futuro. "Mas eu sou o escritor latino-americano com menos futuro", respondeu, aproveitando para desdenhar da palavra "póstumo" ("Soa a nome de gladiador romano"). Bolaño morreu em julho daquele ano, na mesma semana em que a revista chegou às bancas, e a entrevista, aconchegada entre fotos de mulheres seminuas, acabou sendo seu obituário mais eloquente.



Nos anos que se seguiram à sua morte, as bravatas de Bolaño sobre a posteridade se tornaram, ironicamente, um dos traços mais distintivos de sua imagem póstuma. Imagem que se construiu em velocidade vertiginosa desde a publicação de "2666", o romance no qual trabalhava ao morrer, e que será lançado no dia 20 pela Companhia das Letras (com tradução de Eduardo Brandão, 856 pgs, R$ 55).



Publicado na Espanha em 2004, "2666" sedimentou o prestígio do autor entre leitores e críticos de língua espanhola. Mas foi a chegada de sua tradução aos EUA, em 2008, que detonou o que a britânica "The Economist" chamou de "bolañomania", fenômeno marcado por uma mistura de reconhecimento literário e mistificação biográfica sobre o escritor. O sucesso inesperado do livro num mercado conhecido por ser refratário a traduções despertou curiosidade em todo o mundo e deu nova dimensão à imagem de Bolaño.



Em entrevista ao GLOBO por e-mail, o editor espanhol Jorge Herralde, diretor da Anagrama, que publicou "2666" e os principais títulos de Bolaño, recorre a uma frase do escritor Enrique Vila-Matas para comentar o furor, às vezes exagerado, em torno do chileno.



— Vila-Matas disse que "com a morte de Bolaño, começa uma lenda". Por um lado, há uma lenda literária: para muitos jovens autores latino-americanos, Bolaño é um "farol", o escritor mais influente, desbancando os grandes do boom. Mas também se elaborou uma lenda nos Estados Unidos, onde Bolaño foi aparentado com os beats de "On the road", e sua morte prematura, sua oposição a Pinochet e o suposto vício em drogas reforçaram uma aura maldita e romântica — diz Herralde, lembrando que os boatos sobre drogas surgiram de um conto em primeira pessoa confundido com relato autobiográfico, apesar dos desmentidos.



Entre as lendas e a consagração crítica



A história por trás de "2666" já é quase tão conhecida quanto o cavalo-de-pau que García Márquez teria dado no carro ao vislumbrar subitamente a primeira frase de "Cem anos de solidão". Depois de trabalhar por anos num romance que dava vazão à sua obsessão pelos assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez, Bolaño viu a saúde piorar muito em meados de 2003, quando se aproximava do fim da quinta parte de um livro que já ultrapassava mil páginas. À beira da morte, teria pedido ao editor Jorge Herralde que publicasse a obra em cinco volumes, calculando que assim garantiria o futuro financeiro da mulher e dos dois filhos.



Herralde confirma a lenda em parte, mas em tons menos lúgubres. Lembra o último encontro com Bolaño, quando o escritor apareceu em seu escritório de camisa florida, fragilizado pela doença mas falante e empolgado com o romance. Nestes encontros, diz Herralde, Bolaño costumava provocá-lo ameaçando incluí-lo no livro — o que de fato fez, através do personagem do editor alemão Jacob Bubis, que publica ao longo de quase meio século as obras do recluso escritor Benno von Archimboldi, cuja história se liga de forma misteriosa com os crimes de Ciudad Juárez.



— Ele brincava que Bubis seria inspirado em alguns traços meus e eu respondia "Assim você me assusta" — diverte-se o editor (na foto abaixo, Herralde com Bolaño).



A decisão de contrariar o desejo de Bolaño e publicar "2666" em volume único foi tomada por Herralde e pelo crítico literário Ignacio Echevarría, amigo do autor e encarregado por ele de administrar seu espólio literário. Os dois consideram a escolha um "acerto literário e financeiro", diz Herralde.



Após o lançamento do romance, algumas resenhas levantaram questões sobre o caráter inacabado da obra. Num posfácio incluído na edição espanhola (e reproduzido na brasileira), Echevarría esclarece que o texto publicado corresponde à última versão de cada uma das cinco partes deixadas por Bolaño. Em 2009, porém, o jornal "La Vanguardia", de Barcelona, anunciou a descoberta da suposta "sexta parte" de "2666", que retomaria a narrativa de um dos protagonistas do livro, o professor chileno Oscar Amalfitano.



Em entrevista por e-mail, o crítico Ignacio Echevarría diz que esses rascunhos são apenas "linhas exploratórias descartadas" pelo autor. O crítico também diminui a importância dos textos inéditos encontrados nos arquivos da casa de Bolaño, no balneário catalão de Blanes, como a novela "O Terceiro Reich", recém-lançada na Espanha.



— Até onde eu sei, os inéditos que podem ter sido conservados ou são obras iniciais que ele mesmo decidiu não publicar (como "O Terceiro Reich" e provavelmente "Diorama") ou textos fragmentários, esboços (como "Los sinsabores del verdadero policía o Asesinos de Sonora"). Em todo caso, nada que vá alterar substancialmente a figura e a entidade do escritor que todos já conhecemos — diz Echevarría.







Uma nova geografia literária da América Latina







Relevância literária à parte, os inéditos movimentam a indústria que se ergueu em torno do nome de Bolaño. "O Terceiro Reich" já foi publicado em Portugal e chegará em breve aos EUA e ao Brasil. A tradutora Natasha Wimmer, responsável pelas versões norte-$de "Os detetives selvagens", "2666" e da novela inédita, se diz surpresa com o sucesso do chileno em seu país. Embora reconheça que houve certo exagero nos rumores sobre a vida pessoal do escritor, ela acredita que hoje a atenção de leitores e críticos americanos está mais voltada para sua obra. Natasha cita como exemplo disso o prêmio concedido a "2666" pelo National Book Critics Circle em 2009, feito inédito para um livro póstumo e traduzido.



— Há uma combinação de motivos para o sucesso dele nos EUA. Em primeiro lugar, a fluência sedutora e a ambição estonteante de "Os detetives selvagens" e "2666". Num plano mais abstrato, acho que Bolaño cria uma nova geografia mental para os leitores dos EUA, redefinindo a literatura latino-americana em suas mentes como algo urbano, cerebral e global, em vez de rural, mágico e local. Também acho que Bolaño é lido aqui como uma espécie de visionário, alguém que esteve nas margens esfarrapadas do mundo industrializado e viu o futuro distópico daquele mundo — diz Natasha por e-mail.







A versão brasileira de "O Terceiro Reich", ainda sem data de lançamento, está a cargo do tradutor Eduardo Brandão. Responsável por quase todas as obras de Bolaño publicadas no país (com exceção de "Estrela distante", traduzida por Bernardo Ajzenberg), Brandão vê uma continuidade entre os dois principais livros do chileno:



— São dois romances que contam sagas latino-americanas. "Os detetives selvagens" fala de uma geração de refugiados, que também é a minha, pessoas que deixaram seus países por questões políticas ou sociais. Já "2666" fala de refugiados econômicos, das levas de imigrantes que buscam a fronteira do México com os EUA — diz por telefone Brandão, para quem o público de Bolaño no Brasil é formado por um número crescente e fiel de leitores.



“A posteridade é um mal-entendido”



A esses leitores fiéis, o crítico Ignacio Echevarría recomenda que ignorem as lendas a respeito de um escritor que "não acreditava na posteridade e sentia, por isso mesmo, fascinação pelo esquecimento, pelas empreitadas falidas e pelos poetas ignorados":



— Não é o escritor que inventa sua posteridade e sim a posteridade que inventa os escritores. Como Borges disse a respeito da fama, a posteridade também é um mal-entendido. Mas a obra de Bolaño durará. E chegará o dia em que será preciso abrir espaço através das lendas em busca do verdadeiro Roberto, que terá se tornado, então, um dos escritores secretos que tanto admirava.



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Enviado por Guilherme Freitas - 15.5.2010
8h25m

'2666' e a 'metáfora do horror contemporâneo'



Um dos principais responsáveis pelas denúncias dos assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez, o jornalista mexicano Sergio González Rodríguez tornou-se também a maior fonte de informações de Roberto Bolaño sobre o caso. Autor de "Huesos en el desierto" (2002, inédito no Brasil), livro-reportagem que se tornou referência sobre os crimes, González manteve uma longa correspondência com o escritor chileno durante a escrita de "2666" e acabou sendo incorporado ao romance quando, num misto de piada interna e homenagem, o autor o transformou num de seus personagens. Em entrevista ao GLOBO por e-mail, o jornalista fala sobre sua amizade com Bolaño e sobre a violência em Ciudad Juárez.



Como começou seu envolvimento com o caso de Ciudad Juárez? Você conta em "Huesos en el desierto" que foi sequestrado, agredido e ameaçado durante sua investigação. As ameaças continuam?



SERGIO GONZÁLEZ: Em 1996, chamaram minha atenção as notícias reiteradas sobre cadáveres de mulheres jovens encontrados em Ciudad Juárez. Elas eram vítimas de abusos sexuais depois de desaparecer de locais públicos, foram sequestradas a caminho do trabalho, de casa, da escola. Ou simplesmente desapareciam quando iam fazer compras. Quis indagar a veracidade destes fatos: logo descobri que naqueles casos se encontrava um drama de enorme transcendência. No livro registro as ameaças, sequestros e golpes que sofri enquanto investigava. Uma vez acabei no hospital e fui salvo por pouco. Depois de publicar o livro recebi mais ameaças de morte e sequestro. E vivo sob o assédio constante das intervenções em minha comunicação por telefone e e-mail. Mas tenho sorte. Nos últimos dez anos, foram assassinados 59 jornalistas no México e oito estão desaparecidos. Estudei Letras, trato de fazer muitas outras coisas: escrevo e publico sobre literatura, cinema, artes etc. Acabo de publicar um romance que não tem nada a ver com os femicídios nem com o narcotráfico. E insisto em exigir que as autoridades cumpram suas responsabilidades. As ameaças estão sempre aí, latentes. Não escolhi isso, mas tenho que me manter à altura do desafio.



Como você conheceu Roberto Bolaño? Em que momento ele começou a buscar informações para o romance?



GONZÁLEZ: Conheci Bolaño pessoalmente quando fui apresentar "Huesos en el desierto" em Barcelona, em 2002, mas já trocávamos e-mails há alguns anos. Em 1999, decidi escrever um livro sobre os assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez e comuniquei Jorge Herralde, meu editor na Anagrama e também editor de Bolaño. Ele soube do meu livro por Herralde e quis lê-lo antes que fosse publicado. Enquanto ele trabalhava o tema do ponto de vista ficcional, eu queria escrever um livro de não-ficção. Com o tempo, passei a pensar no meu livro como a contraparte indicial-documental de "2666". Suponho que Bolaño começou a se informar sobre o tema no fim da década anterior. Nas mensagens, ele demonstrava um conhecimento profundo do tema, embora desse um foco romanesco a suas leituras.



Os assassinatos de Ciudad Juárez ocupam um lugar central em "2666" e na cosmogonia de Bolaño: um personagem do romance chega a dizer que "ninguém presta atenção nestes assassinatos, mas neles se esconde o segredo do mundo". Em sua correspondência, Bolaño falava sobre o que Ciudad Juárez significava para ele?



GONZÁLEZ: Para Bolaño, Ciudad Juárez, que em seu romance se chama Santa Teresa, era a metáfora do horror contemporâneo. A extensão do extermínio dos campos de concentração nazistas. A barbárie sem limites. Bolaño me dizia que era contra toda forma de violência. Escrever com detalhes e reconstruir um a um os assassinatos cometidos durante um período específico deve ter sido uma tarefa exaustiva e terminal. Ele morreu pouco depois de entregar o romance a Herralde. É o caso arrepiante de um escritor que dá a vida para escrever um romance, uma obra-prima.



Em uma crônica sobre "Huesos en el desierto", Bolaño escreve que Ciudad Juárez é uma metáfora "do incerto futuro de toda América Latina". Como você interpreta esta declaração?



GONZÁLEZ: O pessimismo de Bolaño era fundamentado: o que acontece em Ciudad Juárez expressa, infelizmente, as diretrizes comuns das sociedades latino-americanas, onde os desejos democráticos são sufocados por inúmeras limitações. E a corrupção, a exploração, a ganância desmedida por parte dos poderes corporativos, as classes políticas corruptas e o auge do crime organizado, entrelaçado com a esfera jurídica. Se a isso acrescentamos a pobreza e a desigualdade seculares, a situação é muito adversa. O diagnóstico de Bolaño a cada dia se torna mais correto.



No livro, você cita o filósofo Paul Ricoeur para justificar sua investigação: "Há crimes que não devem ser esquecidos, vítimas que pedem menos vingança do que narração". Como narrativas de ficção, como a de Bolaño, e não-ficção, como a sua, desempenham esse "dever de memória"?



GONZÁLEZ: Acredito que Bolaño queria escrever um romance global sobre os horrores do século XX. As premissas da ficção lhe permitiram interconectar tempos e espaços distintos, e erguer uma trama expansiva. Distinguem-se ali os imperativos de um romancista. Minha perspectiva e exigência eram distintas: eu tinha que documentar uma série de fenômenos, situar um contexto, reconstruir a atmosfera da época, incluir múltiplos relatos, revelar um processo temporal, fazer com que as vítimas falassem, além de incluir meu ponto de vista. O pano de fundo era a obrigação da memória, sobretudo num país como o México, e como muitos da América Latina. Você sabe que até agora as autoridades mexicanas afirmam que nunca houve assassinatos sistemáticos de mulheres em Ciudad Juárez, que nunca houve esse tipo de vítimas, que tudo aquilo é um mito, uma lenda obscura mal-intencionada? Sem meu livro e os de outros, sem os informes dos especialistas da ONU e da Anistia Internacional, os fatos teriam ficado reduzidos a aquilo que desejam assassinos e autoridades cúmplices: mera fantasia.



Como você se sentiu ao ler "2666"? O que pensa do personagem que leva seu nome?



GONZÁLEZ: Levei meses para conseguir ler "A parte dos crimes". Em cada página eu voltava a enfrentar o horror que tinha vivido. Quando o visitei em Blanes, em 2002, Bolaño me contou, rindo, que ia me incluir em "2666". Era uma brincadeira intertextual que me instalava com um pé na literatura e outro na realidade. Acho que até hoje não saí desse lugar onde Bolaño me deixou. E nem acho que vou conseguir. O personagem com meu nome em "2666" é uma sombra que gravita ao meu redor todos os dias. É o legado de Bolaño que devo resguardar. "Com Sergio, sim, eu iria à guerra", ele escreveu sobre mim. Era como me dizer: "Amanhã na batalha pensa em mim". Não há um dia em que eu não pense em Roberto Bolaño.



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