quarta-feira, 31 de março de 2010

Festival de Curitiba mostra o esfacelamento de fronteira entre teatro








Festival de Curitiba mostra o esfacelamento de fronteira entre teatro


e artes plásticas; o trabalho de cenógrafos ascende a um primeiro

plano e faz com que cenário, luz e trilha deixem de ser elementos

ilustrativos





Lenise Pinheiro/Folha Imagem





O ator Germano Mello, em cena de ‘Travesties’, com direção de Caetano

Vilela





GUSTAVO FIORATTI

ENVIDADO ESPECIAL A CURITIBA





No momento em que o ator Ranieri Gonzales toma impulso para um

mergulho de cabeça contra a parede cenográfica do espetáculo "Vida",

fica em suspensão não só o ritmo alucinante de uma peça cheia de

dilemas íntimos, com base na obra de Paulo Leminski, mas também uma

espécie de simbologia metalinguística apontando o esfacelamento de

fronteiras entre expressões artísticas, mais especificamente entre

teatro e artes visuais.

Com essa peça sobretudo, mas também em "Cinema", de Felipe Hirsch,

"Travesties", da Companhia de Ópera Seca, e "Um Navio no Espaço ou Ana

Cristina César", dirigida por Paulo José, o festival representou um

grupo de encenadores empenhados em reverter uma tradicional hierarquia

das artes cênicas. Nestes trabalhos, cenário, luz e trilha sonora

deixam de ser elementos ilustrativos.

Sinais dos tempos, estavam presentes na mostra contemporânea desta

edição do festival cenografias assinadas por Daniela Thomas

("Cinema"), William Pereira ("Travesties"), Márcio Medina ("Till, a

Saga de um Herói Torto") e Bia Lessa ("Formas Breves"). São nomes

habituados a lidar com essa quebra; todos eles já exerceram alguma

outra representação artística, ou como diretores, ou como escritores e

intérpretes, ou como escultores até.

"Estive na Bienal de Veneza de 2009, e ali ficou muito evidente que as

fronteiras entre expressões artísticas caducaram", diz Daniela Thomas.

Sua cenografia para "Cinema" praticamente fundamenta a composição

dramatúrgica da peça. É sobre o cenário, pensado também por Hirsch

antes do texto, que surge o protagonista de uma história: o próprio

cinema. Não é literal, mas está ali "o retrato de uma sala de rua de

São Paulo, dessas que estão desaparecendo", define o diretor.

A iluminação reflete no rosto dos personagens, sentados numa plateia,

a luz emitida por um projetor. Foi concebida por Beto Bruel,

iluminador que já venceu três vezes o Shell.

De volta ao ator que se jogou contra o cenário de "Vida", atravessando

uma de suas paredes, rasgando com o próprio corpo um ambiente onírico

e claustrofóbico: quão próximo estaria ele de uma ação performática,

expressão hoje mais relacionada às artes visuais?

Muito próximo, responde o diretor da peça, Márcio Abreu. "A interface

com artes de outra natureza abre o campo de leitura do texto." Por

trás daquela cena, existe um trabalho de materiais. O próprio

cenógrafo, Fernando Marés, ganhou arranhões, testando a possibilidade

de romper a parede com o corpo. Faz lembrar a dupla Marina Abramovic e

Ulay em "Interruption in Space", de 1977, em que ambos se jogam contra

a parede à exaustão.

O cenário de "Travesties" é outro exemplo, chegou ao teatro Guaíra em

dois caminhões. Um amontoado de jornais e livros, além de mesas e

cadeiras, que William Pereira usou para compor um tipo de fundo

grandioso, mais comum em óperas, com estética acentuada pela

iluminação do diretor Caetano Vilela. Impactante, o que era fundo veio

à frente do espetáculo. Especialmente na chuva de livros do primeiro

ato.

Para a curadora do festival, Tânia Brandão, a ascensão do trabalho de

cenógrafos a um primeiro plano reflete o aprofundamento de pesquisas

que, em parte, deriva do suporte financeiro de políticas públicas e

leis de incentivo. "Se não fosse esse inchaço, acho que não teríamos

conseguido fazer essa representação na Mostra Contemporânea", diz.

Para o diretor do festival, o exemplo contrário é a própria edição do

ano passado, que minguou por contra da crise mundial.

O repórter GUSTAVO FIORATTI viaja a convite do Festival de Teatro de

Curitiba





ANÁLISE





Teatro brasileiro foge da tradição

LUIZ FERNANDO RAMOS

ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA





O teatro brasileiro está estranho. Como o teatro no mundo todo,

reflete os impasses de uma época em que a dramaturgia já não é a

mesma, mas resiste o impulso humano de criar narrativas cênicas. A

considerar por uma amostragem do Festival de Curitiba, englobando

tanto espetáculos da Mostra Oficial como do Fringe, percebe-se algumas

recorrências que permitem agrupar em zonas comuns a diversidade

exibida.

Como tendência dominante, estão os espetáculos construídos em processo

colaborativo.

Entre esses, há aqueles em que o encenador assume a dramaturgia, como

é o caso de "Vida", de Márcio Abreu, talvez o grande destaque do

Festival, "Escuro", de Leonardo Moreira, e "Ruído Branco da Palavra

Noite", da dupla Caetano Gotardo e Marina Trajan.

Há também alguns em que o encenador escreve a cena a partir de

material anterior, mas ainda conta com a colaboração dos atores e

atrizes, como nos casos de "Formas Breves", de Bia Lessa, com texto de

Maria Borba, e "De como Me Tornei Bruta Flor", de Cibele Forjaz a

partir de poema de Cláudia Schapira.

Outra vertente de colaborativo é aquela em que um texto dramático é

reprocessado na encenação, como mostram os impactantes "Memória da

Cana" de Newton Moreno, cruzando "Álbum de Família" de Nelson

Rodrigues e "Casa Grande e Senzala" de Gilberto Freyre, ou

"Travesties", de Caetano Vilela, relendo a peça de Tom Stoppard na

chave da Ópera Seca.

Num outro grupo, que confirma de perspectiva distinta a mesma

tendência, agrupam-se peças montadas a partir de dramaturgias fortes e

autônomas, mas que encerram em si a dissolução da estrutura dramática

tradicional. Incluem-se aí "In on It", de Daniel Macivor, encenado por

Enrique Diaz, "Psicose 4h48", de Sarah Kane na leitura de Marcos

Damaceno, ou "Como se Fosse o Mundo", texto do novíssimo Paulo

Zwolinski apresentado em vertente radical por Roberto Alvim.

Ainda há dramas propriamente, mas mesmo esses transpiram os ares do

espírito do tempo, quando mais que histórias acabadas com personagens

bem definidos, o teatro oferece atos performativos que sobressaem às

tramas. É o caso de "Música para Ninar Dinossauros", de Bortolotto,

"Navio Ancorado no Espaço", evocação de Paulo José da poeta Ana

Cristina César, partindo de texto de Maria Helena Kühner e dramaturgia

de Walter Daguerre, "A Idade da Ameixa", de Aristides Vargas, dirigido

por Guilherme Leme, e do bizarro "grand-guinol" de Paulo Biscaia,

"Manson Superstar".

Na tradição do teatro épico, que desde meados do século passado lida

com as alternativas de narrar o mundo para além do drama, destacam-se

"Till", de Luiz Alberto de Abreu, com o grupo Galpão, "Macbeth", de

Shakespeare, na versão de Aderbal Freire Filho, ou a adaptação de

Edson Bueno das crônicas e da biografia de Nelson Rodrigues em "A Vida

como Ela É".

As pulsões antidramáticas, e que chamam o público a se deter na

matéria cênica bruta, poderiam ser apontadas mesmo em trabalhos

irregulares, como os experimentais curitibanos "Chiclete e Som", de

Nina Rosa Sá, e "Primeiro Crime", de Darlei Fernandes, ou os mineiros

"Barba Azul" e "John e Joe", dos grupos Andante e Trama.

De algum modo, percebe-se em toda essa produção, ao lado da vontade de

continuar contando histórias, a dificuldade de fazê-lo com as formas

convencionais. É dessa tensão que advém a estranheza detectada.





O crítico LUIZ FERNANDO RAMOS viajou a convite do festival

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