quinta-feira, 22 de maio de 2008

EU SOU A HISTORIA, Sobre testemunhos Pessoais

QUE HISTÓRIA É ESSA?

Depender de relatos pessoais para construir parte da história de um pais pode ser considerado um registro legítimo de acontecimentos fatuais. Essa é uma questão delicada para as ciências humanas na pós-modernidade e motivo de controvérsia entre historiadores, antropólogos e críticos literários. Há motivos para apontar os limites do poder desses depoimentos, muito embora isso seja fazer papel de estraga-prazeres. Mesmo assim, escolhi abordar o assunto e andar sobre brasas

Falo aqui do excelente Tempo Passado, da socióloga Beatriz Sarlo, uma das mais importantes intelectuais vivas da Argentina. No livro ela critica a importância que se tem dado ultimamente ao relato em primeira pessoa, tanto por parte da imprensa como da comunidade acadêmica. O assunto sempre me interessou e, sem dúvida, é de grande importância para todos que queremos pensar a cultura em todas as suas dimensões e implicações.

Segundo Sarlo, a autoridade que o testemunho vem ganhando dentro desse preocesso que ela chama de “guinada subjetiva” diminui a importância do debate teórico e da necessidade de cruzar versões para que se possa chegar próximo da realidade. Vivemos uma época em que a primeira pessoa reclama para si uma legitimidade e uma verdade, sustentadas pela idéia de que aquele que viveu determinado acontecimento está, simplesmente por esse fato, em uma posição privilegiada para narrá-lo. É a época do depoimento. É notável como essa visão se reproduz nos programas de TV; dos noticiários aos programas de auditório, e até em jornais com grande projeção, testemunhos pessoais dos mais variados e sobre os mais diversos assuntos são indispensáveis para dar força à noticia.

Já na academia, a história oral tomou grande impulso nas últimas duas décadas, ajudada pelo movimento pós-moderno, que criticou fortemente a autoridade documental, e transformou-se em uma linha de pesquisa bem estabelecida entra historiadores. Por outro lado, a historiografia produzida pela Universidade vem perdendo influência na sociedade por não querer responder a uma história mais comercial, que se torna cada vez mais popular por meio da proliferação de best-sellers pseudo-históricos e com grandes exposições temáticas. Cabe aqui uma breve análise de como essa perda de público deu força à banalização (se podemos usar esse termo) da história.

Mesmo não sendo um exemplo de relato pessoal, o Código da Vinci ilustra bem esse anseio pela simplificação fácil de temas históricos. Como todo mundo sabe, ele conta a história do suposto segredo, guardado a sete chaves pela Igreja, de que Jesus teria gerado filhos com Maria Madalena, dando origem a uma linhagem sagrada. O autor chegou a afirmar que se baseou em documentos de época e relatos apócrifos anônimos para escrever o livro – embora qualquer pessoa bem informada, não necessariamente um acadêmico, saiba que a obra não passa de um romance sensacionalista com algumas referências históricas.

É claro, porém, que a razão para esse desinteresse por obras sérias de história, baseadas em documentação confiável e análise critica das fontes, feitas por acadêmicos honestos, não é apenas a preguiça intelectual de encarar um livro mais árduo. Penso que isso se deve à dificuldade que os historiadores profissionais têm para escrever uma história que seja ativa e de interesse entre a população. Além disso, já vai o tempo em que, influenciadas pelas grandes crônicas nacionais escritas por romancistas, a historiografia primava pela narrativa inspirada, gerando assim grande interesse. É importante notar que a história bem escrita e que se beneficia da narrativa não é necessariamente sensacionalista e de puro entretenimento.

Ironicamente, já há anos, e influenciados pela antropologia, o olhar de muitos historiadores deslocou-se para a vida cotidiana de pessoas normais e cidadãos sem grandes feitos históricos. Dentre eles um em especial, pelo qual tenho grande admiração, escreveu a história de um moleiro italiano, chamado Menochio, que passou pelo Tribunal da Inquisição. Em seu depoimento extraordinário, Menochio desconcertou a todos ao explicitar sua tese de que o mundo era um enorme queijo; de que este pequeno cosmos seria a morada de vermes que dariam sentido ao Todo; e de que esses vermes seriam os homens. Sem dúvida, uma explicação diferente de tudo o que os inquisidores já tinham ouvido. Essa obra muito conhecida, O Queijo e os Vermes, de Carlo Ginsburg, foi um grande sucesso de vendas, traduzido em diversas linuas, mostrando que livros de historia com qualidade podem ter um bom público.

Retomando a questão específica da hipervalorizaçao do relato pessoal e da criação de uma “indústria cultural da memória”, podemos reparar que elas se tornam problemas maiores quando a única fonte que resta são os depoimentos, como no caso da Argentina do período da ditadura. Nesse caso eles foram fundamentais para provar os crimes do Estado, dando uma dimensão jurídica do testemunho pessoal, que não pode ser substituído. É praticamente a única coisa de que se dispõe para julgar e condenar os culpados pelas torturas e mortes. Nesses casos específicos não há discussão.

O que precisamos estar atentos, talvez, é para o fato de que simplesmente confiar no relato pessoal – como se todo o século XX, de Freud a Derrida, não tivesse sido precisamente uma época de critica da experiência – é um erro. Não há relação direta entre fato e recordação. Mas, ao que parece, muitos de nós, entre eles intelectuais e artistas, não se deram conta disso, e continuam vivendo sob a super-estimaçao da vivência pessoal, esse engano que não deixa de ser uma certa vaidade, e que foi chamado por Richard Sennett, em seu clássico O Declínio do Homem Público, de “ditadura da intimidade”. Em resumo, o testemunho traz uma carga do presente que deve ser contrastada com outras fontes, escritas ou não, e que permitam submetê-lo à crítica.

Jimmy Brandon Ávila

Um comentário:

  1. Essa critica esta sainda na minha editoria da revista 'Antena & Raizes" do Laboratorio de Poeticas.

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