domingo, 3 de janeiro de 2010

As possibilidades da escrita teatral na cena brasileira contemporanea

As possibilidades da escrita teatral na cena brasileira contemporanea


Daniel Schenker






José Da Costa amplia a noção de texto teatral a partir da análise de espetáculos de diretores de grupo como Gerald Thomas, Antunes Filho, José Celso Martinez Corrêa, Bia Lessa, Enrique Diaz e Antonio Araujo.



Em Teatro contemporâneo no Brasil: criações partilhadas e presença diferida, o autor evidencia como estes encenadores se distanciaram de uma abordagem textocentrista, ao destronarem o texto do posto de elemento soberano. Pelo menos, o texto em seu sentido mais convencional, de literatura dramática, de peça de teatro a ser montada a partir de uma postura subserviente do diretor em relação ao dramaturgo.



Gerald Thomas dessacraliza o texto verbal ao fazer dele um entre os muitos elementos que compõem seus espetáculos, nem mais, nem menos importante que os demais.



Antunes Filho sobrepõe referências, sem necessariamente confinar os trabalhos em contextos específicos, e coloca, vez por outra, o público diante do desafio de uma linguagem ininteligível, caminho também apontado por Enrique Diaz, diretor que aborda as fronteiras entre ator e personagem, realidade e ficção. José Celso Martinez Corrêa cria imagens poderosas na passarela do Teatro Oficina – imagens capazes de exprimir ou de propor novas abordagens em relação ao material original.



Bia Lessa investiga aquilo que o texto não diz (pelo menos, numa perspectiva de análise mais imediata) através da conexão entre teatro e outras manifestações artísticas, principalmente as artes plásticas e o cinema.



E Antonio Araujo aproveita a carga dos espaços não convencionais onde apresenta suas montagens, que exigem dos atores uma disponibilidade ao risco algo kamikaze.



Todos esses encenadores redimensionam a noção de texto, estendido, de certa maneira, aos demais componentes da cena. É como se existisse texto na cenografia, na iluminação, na presença dos atores. Sob este ponto de vista, parece haver uma aproximação entre os conceitos de texto e de cena. Um dos principais tópicos abordados por José Da Costa se refere à distinção entre texto literário e texto cênico. O primeiro visa mais à publicação e sobrevive independentemente da cena; o segundo, não. Foi escrito para o palco e assim deve ser analisado. O principal representante desse segundo estatuto é, de acordo com Da Costa, Gerald Thomas, “um dramaturgoencenador para quem não se pode separar ou distinguir, na escritura teatral, a emergência criativa do aspecto cênico ou imagético-visual em relação à criação dramatúrgicoverbal”. No teatro de Thomas, a noção de texto transcende a esfera verbal: a ela o encenador soma trabalhos de iluminação que parecem verdadeiras esculturas; a utilização de gelo seco, que redimensiona a profundidade do espaço; o emprego de voz gravada, que pode formar uma espessura com aquilo que é dito no palco. Em Rainha mentira, um de seus últimos espetáculos, havia um contraste entre o tom confessional contido na fala de Thomas, em off, e o modo propositadamente exagerado como retratou sua família em cena.



Processo de colaboração As montagens analisadas por José Da Costa em Teatro Contemporâneo no Brasil, livro que conta com introdução consistente de Angela Materno, partiram de textos escritos pelos próprios diretores, de criações de autores inseridos dentro das companhias ou de obras da chamada dramaturgia clássica. No primeiro caso estão, principalmente, os espetáculos de Gerald Thomas, que, como já foi dito, concentra duas escrituras – a de dramaturgo e a de encenador. No segundo, algumas montagens da Cia. dos Atores, concebidas em parceria com o dramaturgo Filipe Miguez, e a trilogia bíblica do Teatro da Vertigem, que surgiu da interação com Sérgio Carvalho, Luís Alberto de Abreu e Fernando Bonassi. José Da Costa aponta aqui para a constância do processo colaborativo no teatro de hoje, no qual o texto é trabalhado de modo impuro, na medida em que escrito dentro da sala de ensaios, no contato direto com os atores. Neste corpo a corpo, o acaso é assimilado como importante matéria-prima. Mas Da Costa toma cuidado para não incorrer num reducionista jogo de contrários ao comprovar que existe conciliação possível entre a imprevisibilidade do acaso e o rigor da construção do espetáculo, muitas vezes revelado diante do espectador.



No terceiro caso, diretores adotam determinadas peças do repertório clássico como ponto de partida para investigações personalizadas, apropriandose delas com o intuito de revelar o que não surge explicitado na leitura. “... o personagem já não é mais apenas o de Shakespeare. A tradução marcada pelo hífen do título impôs à obra e aos personagens de Shakespeare deslocamentos importantes”, assinala Da Costa, em relação a Ham-let, versão de José Celso Martinez Corrêa para a tragédia de William Shakespeare. Num certo sentido, o diretor teria reinventado o texto original, sem, porém, torná-lo aleatório.



José Da Costa estende a noção de escrita cênica para o espectador e para o ator. Não por acaso, o autor selecionou espetáculos que conferem ao público uma posição ativa, distante da de mero apreciador de um trabalho descortinado à sua frente.



Cabe a cada integrante da plateia fazer uma seleção e montagem particularizada a partir daquilo que vê. É claro que os diretores podem deixar mais ou menos lacunas a descoberto para o espectador preencher, mas vale lembrar que para aquele que assiste não é possível abarcar a totalidade do espetáculo. Seja como for, Da Costa destaca a autoria do espectador por meio da peregrinação pelos espaços internos de igrejas, hospitais e presídios nos espetáculos do Vertigem. “Levados a percorrer as várias salas em que se representam os estágios ou paradas na trajetória de João, os espectadores também escrevem, por assim dizer, sua recepção do espetáculo do Teatro da Vertigem, traduzindo reciprocamente os temas bíblicos e as referências sociais e históricas fornecidas tanto pelas dependências do edifício quanto pelas situações ficcionais que nelas se encenam”, observa Da Costa, referindo-se a Apocalipse 1,11, apresentado, no Rio de Janeiro, nas dependências do antigo Dops. Antes mesmo de começar a percorrer os espaços claustrofóbicos, o público é afetado pela carga do lugar escolhido pelo grupo para sediar o espetáculo. Há texto nesta carga, uma espécie de força presente decorrente da realidade do lugar ou de uma herança que não se dissolve com a passagem do tempo.



Ator na primeira pessoa A presença do ator como escrita personalizada também está no foco de José Da Costa. O ator não é aquele que tão-somente diz um texto que não escreveu, mas alguém que busca respaldo em suas próprias experiências com o intuito de conferir credibilidade às vivências que não são as suas. Mais do que isto, Da Costa problematiza o conceito tradicional de personagem ao evocar um ator que se expressa em primeira pessoa.



“O intérprete parecia, em parte, estar falando em nome dele próprio, como um performer e não como um ator que representam um personagem de ficção com um nome definido, com uma identidade especificada e com uma pertinência a contextos sociais, familiares ou profissionais determinados (...) A ausência desses dados nos fazia perceber o ator e aquilo que ele relatava mais como um performer exibindo-se a si mesmo do que como intérprete representando um personagem”, constata Da Costa, acerca de Ventriloquist, de Gerald Thomas.



Teatro contemporâneo no Brasil: criações partilhadas e presença diferida José Da Costa 7Letras 247 páginas, R$ 38

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